Bloomberg — Produzir o iogurte do futuro exige uma série de ajudantes do século XXI: machine learning, ciência do sistema digestório e até um estômago artificial.
Em uma nova fábrica da Danone perto de Paris, os pesquisadores colocam doses de iogurte em recipientes de vidro globulares e tubos de plástico projetados para imitar o intestino humano.
Quando as bactérias presentes no interior do iogurte demonstram que podem sobreviver aos sucos digestivos, a inteligência artificial é colocada em ação para investigar seus possíveis benefícios à saúde.
Para os consumidores bombardeados com alegações sobre o suposto poder dos probióticos, o objetivo pode parecer familiar: um iogurte aprimorado.
Mas a empresa, proprietária das marcas Activia e da Actimel, está apostando que a tecnologia pode fornecer respostas sobre quais ‘bactérias do bem’ funcionam melhor e por quê, dando a seus produtos uma vantagem científica em um momento em que a receita está diminuindo e os consumidores estão cada vez mais cautelosos em relação aos ultraprocessados.
“A estratégia de negócios de longo prazo da Danone tem muito a ver com a transformação do setor de laticínios”, diz o CEO adjunto Juergen Esser. “Tudo o que diz respeito a trazer os fermentos certos, os benefícios certos para a saúde e fazer com que eles brilhem para o consumidor é fundamental”.
Sendo este o início de uma revolução impulsionada pela tecnologia ou apenas mais uma camada de marketing destinada a fazer com que os consumidores paguem mais, a Danone precisa dessa novidade.
A empresa francesa de 104 anos está em seu segundo ano de um esforço de recuperação orquestrado pelo chefe de Esser, Antoine de Saint-Affrique.
A unidade de laticínios sofreu uma queda nos volumes em sete dos últimos nove anos. Os volumes de vendas da divisão – a maior da empresa, que também conta com leites vegetais como o Alpro – caíram 4% no ano passado, quando os consumidores passaram a usar marcas mais baratas devido à crise do custo de vida.
“A única forma para a Danone reviver seus negócios é investir em um produto superior que possa sustentar um melhor poder de precificação”, diz Bruno Monteyne, analista da Bernstein.
A Danone está apostando que sua experiência com laticínios e sua própria gama de bactérias lhe darão uma vantagem sobre rivais como a Nestlé.
A empresa gastou cerca de US$ 100 milhões na nova fábrica inaugurada em fevereiro, reunindo o laboratório de pesquisa que abriga o estômago artificial, espaços de coworking e uma área de testes para consumidores em um subúrbio.
Os laboratórios obtiveram acesso a amostras de pacientes e prontuários de saúde para que a IA ajudasse com colaborações, incluindo um projeto com a Universidade da Califórnia em San Diego e outro mais próximo de casa, chamado Le French Gut, que visa analisar o microbioma de 100 mil voluntários.
Na raiz da abordagem está a fermentação, um processo químico que existe há milênios. Mas nem todas as bactérias e leveduras são criadas da mesma forma, por isso o estômago artificial da Danone monitora a jornada dos probióticos depois que eles saem do pote de iogurte.
Mantido em uma caixa de vidro do tamanho de um tronco, o estômago simula a absorção de alimentos durante o processo digestivo. Ele ajuda a Danone a determinar quais candidatos suportam os ácidos e as enzimas do estômago, avaliando sua capacidade de se estabelecer no intestino.
“Se você está estudando um probiótico, ele precisa sobreviver”, explica Raish Oozeer, diretor de pesquisa de microbioma e probióticos da Danone.
As bactérias promissoras serão estudadas mais a fundo para ver como elas interagem com as fibras e as vitaminas dos alimentos. A Danone não permite que o estômago, desenvolvido com a empresa holandesa TNO, seja fotografado porque seu funcionamento é ultrassecreto.
Em seguida, o machine learning assume o controle para encontrar conexões entre as bactérias escolhidas e as condições de saúde. A IA examina amostras de fezes, históricos médicos e descobertas científicas passadas, buscando ligações com qualquer coisa, desde perda de peso até imunidade.
“Os avanços tecnológicos ajudam muito”, diz Jan Knol, diretor sênior de pesquisa e inovação da Danone. “É um ecossistema extremamente complexo que só podemos entender medindo muitas coisas, e depois temos que compreender todos esses dados”.
Parte da IA ainda está em desenvolvimento para pesquisas diferentes, mas relacionadas, como a avaliação da qualidade da flora intestinal dos bebês com base em fotos de suas fezes, com o objetivo de melhorar a qualidade da fórmula infantil. Os parceiros da Danone incluem a plataforma Azure da Microsoft (MSFT) e a Amazon Web Services da Amazon (AMZN).
Os pesquisadores trabalham há anos nas interações entre o microbioma e a imunidade. Mas, ao explorar anos de dados, a Danone não precisa inventar nada. Evidências para enquadrar uma mensagem de marketing que conecte as bactérias aos benefícios podem ser suficientes para que um novo iogurte ou leite tenha um preço mais alto.
“Não é como um medicamento que precisa passar por testes muito rigorosos”, diz Kim Barrett, que estudou o microbioma e é vice-reitor de pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em Davis. “Praticamente qualquer pessoa pode fazer uma afirmação sobre qualquer coisa, porque esses tipos de produtos são geralmente reconhecidos como seguros”.
Barrett elogia empresas como a Danone e a Nestlé por investirem em pesquisas para documentar os benefícios à saúde de seus produtos.
Os esforços da companhia ocorrem em um momento em que o setor de alimentos enfrenta uma espécie de crise de identidade. Depois de erradicar a variedade e o frescor de seus produtos, que alimentavam um microbioma intestinal próspera, as empresas recorreram aos probióticos para agora sobrecarregar seus produtos com bactérias benéficas, depois que seus próprios cientistas reconhecerem como a comunidade de trilhões de organismos que vivem no intestino de cada pessoa é crucial para a imunidade, o envelhecimento e até mesmo a saúde mental.
A Archer-Daniels-Midland, que fornece ingredientes para todo o setor, investiu mais de US$ 30 milhões em uma unidade espanhola de produção de probióticos no início deste ano. A Nestlé vende mais de uma dúzia de formas diferentes de suplementos por meio de sua marca Garden of Life. As empresas de bebidas também aderiram ao movimento com produtos como a kombucha, um chá fermentado. Mas o selo de probiótico nem sempre é suficiente para garantir o sucesso. A Kellogg abandonou uma versão de seus cereais Special K com adição de probióticos no ano passado, dizendo que não havia conquistado um número suficiente de fãs fiéis.
Na Danone, o renascimento do iogurte é tradição. O fundador Isaac Carasso era um médico dos Bálcãs que começou a vender iogurte para farmácias na Espanha, preocupado com a desnutrição e as doenças intestinais das crianças locais. Ele batizou a empresa de Danone em homenagem a seu filho Daniel. A empresa se tornou global depois que Daniel, que se mudou da França para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, comprou uma pequena loja de iogurte na cidade de Nova York e acrescentou uma camada de geleia aos iogurtes comuns.
O produto mais doce foi um sucesso, e Carasso rebatizou a filial local de Dannon. A reformulação é emblemática da tensão entre tornar os alimentos saudáveis e atrativos.
Durante anos, as empresas seduziram os consumidores com açúcar, contribuindo para uma epidemia global de obesidade. A tendência está mostrando sinais de reversão, mas alguns ainda veem os esforços mais recentes do setor como uma tentativa de resolver os problemas que ajudaram a criar – e o fazem oferecendo outra camada de alimentos ultraprocessados.
Tim Spector, um autor britânico e pesquisador de microbioma, aconselha o consumo de trinta plantas diferentes por semana, incluindo nozes e sementes. Os alimentos fabricados por empresas como a Danone e a Nestlé podem parecer saudáveis, segundo ele, mas “metade de seus produtos está nos envenenando e a outra metade está fingindo que nos torna saudáveis”.
A maioria dos laticínios da Danone tem baixo teor de açúcar e sal – a empresa destaca sua alta pontuação em um índice global de nutrição. Mas, assim como outros grandes grupos alimentícios, a Danone usa aditivos como amido de milho e adoçantes como a sucralose, que tem sido associada a uma saúde intestinal ruim.
O que a Danone traz de fato para a mesa é poder. Isabelle Esser, responsável por pesquisa e inovação na empresa, diz que é difícil fazer mudanças sem atender às massas.
A empolgada engenheira belga entrou para o setor justamente porque criar impacto requer volume, diz ela, e ela sonha que a empresa possa um dia criar um produto para ajudar diabéticos.
O objetivo é que “você tome o produto todos os dias e não seja uma pílula, mas um alimento como remédio”, diz Esser, que não é parente do CEO adjunto da Danone. “E, com o tempo, aumentaremos sua imunidade ou sua resiliência”.
A ciência também poderia ajudar a Danone a evitar alguns obstáculos do passado. A empresa foi obrigada a mudar a rotulagem e o marketing de seu iogurte Activia e da bebida láctea DanActive há cerca de 15 anos nos EUA para eliminar “alegações exageradas de saúde”.
Ela teve que pagar até US$ 35 milhões para reembolsar os clientes que argumentaram que a subsidiária da Danone nos EUA estava cobrando um preço mais alto devido a afirmações científicas que não podiam ser comprovadas, como o alívio da constipação. Um ano mais tarde, a empresa enfrentou restrições na União Europeia, onde os órgãos reguladores também restringiram as afirmações sobre saúde, limitando sua capacidade de anunciar benefícios específicos.
O novo impulso para “garantir que tenhamos substância”, como Saint-Affrique descreveu, deu início a uma corrida de licenciamento para garantir as alegações terapêuticas. A Nestlé, que tem suas próprias culturas de bactérias, patenteou uma cepa da mesma espécie da presente no Actimel da Danone, focando em uma forma termicamente tratada que oferece a vantagem de uma vida útil mais longa e documentando sua capacidade de aumentar a produção de interleucina-10, uma proteína essencial para a inflamação e a imunidade.
Os pesquisadores da Danone, por sua vez, mostraram que o consumo de seu iogurte reduziu o desenvolvimento de resistência à insulina e gordura no fígado em camundongos obesos. O estudo patrocinado pela empresa apontou um aumento de compostos benéficos nos fígados dos animais, o que a levou a obter patentes que lhe permitem falar dos benefícios para o fígado e para o metabolismo do açúcar de pelo menos três tipos desses ingredientes.
A empresa francesa afirma que há muito mais a ser feito nesse espaço em expansão na interseção entre alimentos e medicamentos.
“Se quisermos garantir que o consumidor considere nossos produtos superiores aos outros, precisamos ter certeza de que temos os argumentos certos sustentados pela ciência certa”, diz Esser, CEO adjunto que supervisiona as finanças e a tecnologia na Danone. “Você verá que isso fará a diferença”.
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