Bloomberg Línea — A captação e o uso de dados como análogos à forma como ocorre com o dinheiro no sistema financeiro, além da remuneração aos usuários pelo valor que geram às companhias, têm sido tema de estudos de Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central.
Em entrevista à Bloomberg Línea, Franco - um dos “pais” do Plano Real, que completou 30 anos nesta semana - traçou paralelos entre o sistema financeiro tradicional e a economia emergente dos dados, com o argumento que, assim como os bancos contam com o dinheiro dos depositantes para criar valor, as empresas de tecnologia utilizam dados de usuários para gerar riqueza. E isso vai acabar sendo remunerado.
“Há séculos existe a dinâmica do banco que recebe dinheiro e cria valor, que fica com essa Mais Valia e remunera o depositante. O que se tem agora com dados parece a mesma coisa”, disse, citando o exemplo do YouTube, que remunera criadores de conteúdo pela captação de dados (visualizações e interações).
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No entanto ele apontou que a regulamentação dos dados ainda está em seus estágios iniciais. E comparou com a regulamentação bancária internacional, como o Acordo da Basileia, para prever que convenções internacionais sobre dados, com foco em privacidade e titularidade, podem emergir.
“Essa economia de dados tem as similaridades com o sistema financeiro. Foi nesse contexto que surgiu essa conversa de que existem dispositivos internacionais de regulação bancária que são em geral concedidos na Basileia, são padrões, boas práticas”, disse o ex-presidente do Banco Central.
“Algumas são muito consagradas, das quais a principal das quais é o capital regulatório, o fato de instituições financeiras terem que manter um nível de capital proporcional aos riscos que correm”, disse.
“No terreno dessa relação entre fornecedores de dados e instituições que trabalham dados e que criam valor, é muito possível que no futuro existam convenções internacionais sugerindo boas práticas em temas como privacidade”, completou.
Ainda assim, há diferenças fundamentais entre dinheiro e dados, especialmente no contexto de quebras e privacidade, ressaltou Franco, que é também sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos.
Franco afirmou que, se um banco quebrar, o dinheiro pode não ser recuperado acima de determinados valores. Com dados, a dinâmica é diferente: mesmo que uma empresa vá à falência, os dados não deixam de existir ou de pertencer ao usuário na sua integralidade. Eles são um recurso cujo uso não diminui sua quantidade, comparável com o uso de um parque, que não reduz sua oferta.
“Assim como dados, a utilização de um parque não reduz a sua quantidade. É um pouco diferente porque dinheiro não é a mesma coisa que dados nesse aspecto”, explicou.
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LGPD e remuneração dos dados
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira já estabelece direitos de titularidade dos dados pessoais, o que implica responsabilidades para as empresas. Franco disse acreditar que o próximo passo lógico será a remuneração desses direitos.
Ele sugere que, assim como a propriedade de um bem físico confere ao proprietário o direito de cobrar pelo seu uso, a titularidade dos dados pessoais poderia permitir aos indivíduos serem remunerados pelo seu uso.
“Dados de terceiros não podem ser expostos se não houver consentimento expresso do titular. Veja que já está implícita uma estrutura de titularidade. Claro que o próximo passo é a remuneração da titularidade [...] Isso pode vir em diferentes países de diferentes maneiras e em algum momento alcançar uma convenção internacional. Está muito no começo, mas tem muita coisa nova acontecendo”, disse.
Nubank e Drumwave
Franco contou que passou a se dedicar a estudos dos temas de dados e sua remuneração quando começou a trabalhar com o Nubank (NU) em 2017 como consultor estratégico e regulatório.
“[O Nubank] foi uma experiência particularmente rica de instituição de pagamento e banco digital. Talvez seja o maior dos aproveitamentos da lei dos arranjos de pagamento do Brasil de 2013, nenhuma outra instituição aproveitou tanto a nova regra”, disse.
Mais recentemente, o economista conheceu a Drumwave, fundada por Andre Vellozo, da qual se tornou sócio e consultor. A empresa fundada no Vale do Silício desenvolve a aplicabilidade do conceito da wallet de dados de cada pessoa que permita rastrear o seu uso e efetivar a sua remuneração.
Essa abordagem busca valorizar e remunerar os dados dos usuários de forma proporcional à sua utilidade, um conceito que Franco compara com a teoria da mais-valia do século XIX.
“Há um desafio tecnológico importante de conseguir rastrear a utilização dos dados que pertencem aos usuários listados na companhia e que têm suas respectivas D-Wallets (carteira digital de dados da Drumwave) e criar como se fosse um crédito moeda, que algum momento vai ter valor de mercado proporcional à utilidade dos dados que estão nas carteiras. Esse é o modelo de negócio”, explicou.
“A depender da jurisdição, já é possível fazer tudo o que Drumwave planeja. Basta pensar que se existe uma legislação estrita sobre privacidade e proteção de dados pessoais”, afirmou.
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Dados que alimentam modelos de IA
Em sua visão, o debate sobre a distribuição do valor gerado por dados pessoais remete às discussões históricas sobre valor e trabalho.
“Não há dúvida de que os dados que são utilizados e criam tanto valor para grandes companhias de tecnologia como se fosse o dinheiro dos outros no mundo financeiro, que são a forma como os bancos fazem seus lucros, seus balanços. É a mesma coisa no mundo da tecnologia: é com dados de terceiros que grandes modelos de linguagem [LLM] de inteligência artificial são feitos e seus resultados são produzidos”, disse.
“Como existe tecnologia de buscador, como no Google, ou como se utiliza nas mecânicas de inteligência artificial, é claro que é possível rastrear de onde veio a informação. É como se os economics gerados por aqueles dados fossem repartidos em milhares de pessoas que contribuíram.”
“Isso tudo é muito curioso, tem parentesco conceitual com a discussão do século XIX sobre o valor do trabalho e a Mais Valia. Vamos ter uma reprise dessa discussão talvez no futuro.”
Franco já vê estudiosos de orientação marxista falando de um “tecno-feudalismo”, em que grandes companhias captam dados como antigamente, como senhores feudais que exploravam uma mão-de-obra cativa.
“Em algum momento vem uma revolução que acaba com o feudalismo e cuja base foi o estabelecimento de direitos de propriedade sobre o direito da terra comum. A partir daí começa o capitalismo, tal qual como o conhecemos. É como se isso fosse acontecer novamente nos próximos anos em torno dessa economia de dados”, disse Franco em uma análise à luz da história.
Para ele, a discussão chave envolve a distribuição de valores para quem forneceu seus dados e para quem empreendeu a tecnologia.
“Isso é uma discussão de valor do trabalho parecida com a do começo do século XIX. Ninguém duvida que uma amostra do seu sangue é dado pessoal seu, um pedaço do seu corpo. Agora os seus dados com seu banco, sua saúde, eles não são parte do seu corpo. É dado transacional, e sua transação bancária é tanto sua quanto do banco”, disse Franco.
“Ninguém discute que o banco possa utilizar suas informações para fazer a análise de crédito, inclusive anonimizando seu dado em conjunto com vários outros para fazer score de crédito e prêmios de risco. Isso é feito todo dia e ninguém quer que deixe de ser feito. É um dado co-criado entre o banco e o usuário. O que tem que ser estabelecido é a linha do que é dado pessoal e o que é co-criado”.
O valor do Pix e sua privatização
Franco também ressaltou novas fronteiras tecnológicas e financeiras, como a moeda digital do Banco Central (CBDC) e sistemas de pagamento instantâneo como o Pix, que colocam o Brasil na vanguarda da inovação financeira. Para ele, o Banco Central brasileiro teve um papel de um “empresário” ao lançar o Pix, evitando um duopólio privado nos sistemas de pagamento, como ocorreu na China.
“Coincidiu que estamos em um momento de relações muito boas entre o Banco Central e o Cade (autoridade de defesa da concorrência) e essa preocupação de concorrência junto com concentração bancária contribuiu para o Banco Central ser particularmente agressivo e aberto em fazer acontecer o Pix”, disse.
“Nós avançamos muito em algumas áreas, sobretudo em pagamentos, por uma razão exótica, por causa da inflação. A inflação e os juros altos fizeram do Brasil um país em que o float do sistema financeiro fosse muito importante. Quem é mais ágil tira mais vantagem do float. Por essa razão, os incentivos para a agilidade dos sistemas pagamentos brasileiros são gigantescos.”
Franco disse acredita que em breve o Brasil discutirá a privatização do Pix. “A gratuidade ajudou muito a disseminação do método. Mas alguém em algum momento vai fazer a conta de quanto vale o Pix e que não pode ser grátis por toda a vida. Vai perceber que é uma empresa que vale um ‘dinheirão’.”
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