Bloomberg Línea — Duas das maiores corridas de automóveis da história aconteceram no mesmo ano: 1908. Uma partiu no dia 8 de fevereiro de Nova York com destino a Paris, trajeto pelo qual seis carros de diferentes marcas e nacionalidades seguiram por quase quatro meses até chegarem ao destino final, com direito a uma longa travessia de navio pelo Oceano Pacífico, da costa oeste americana até a Ásia.
Com velocidade máxima de 50 km/h, esses modelos de última geração eram o que havia de mais moderno na curta linhagem de 20 anos desde a invenção do carro moderno.
E a mil quilômetros ao sul dessa linha de chegada, cruzando os Alpes e entrando na região de suave relevo do norte da Itália, um menino com então 10 anos acompanhava seu pai de sua pequena cidade de Modena até Bolonha para assistir outra corrida histórica.
Só que, para efeitos da história, não importou quem foi o vencedor da prova ou até mesmo qual o número de carros e competidores. O fato é que o pequeno Enzo Ferrari descobria ali uma paixão que se desdobrou em dos maiores legados esportivos, culturais e empresariais da história moderna.
O novo episódio especial de Sucessores explora a trajetória da família Agnelli-Ferrari, de origem italiana e que administra o império de carros de luxo que se tornou há décadas um ícone mundial.
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Do patrocínio à fabricação
Enzo Ferrari, fundador da Scuderia Ferrari e da fabricante de automóveis, nasceu em 20 de fevereiro de 1898, em Modena, na Itália.
Filho do dono de uma pequena fábrica de componentes de metal, ele perdeu, aos 18 anos, o pai e o irmão e abandonou os estudos para ajudar no sustento de sua família durante a Primeira Guerra Mundial.
Com o fim da guerra, ele tentou um emprego na Fiat, em que foi recusado. Depois conseguiu uma ocupação como piloto de testes para uma pequena montadora de Turim.
Em 1929 que ele fundou a Ferrari, inicialmente para patrocinar pilotos amadores de corridas. A Scuderia rapidamente se destacou e, em 1933, começou a operar como a equipe oficial de corridas da Alfa Romeo.
Mas a ambição de Enzo era maior do que ser um simples patrocinador de corridas: ele queria construir seus próprios carros.
Em 1947, no pós-Segunda Guerra Mundial, ele montou a fabricante de automóveis que levava o seu sobrenome em Maranello, na Itália. O primeiro modelo foi o 125 S, que estreou no mesmo ano e que, desde então, a Ferrari se tornou sinônimo de velocidade, luxo e design inovador.
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Ferrari enfrentou nessa época dificuldades financeiras e disputas internas, tanto na gestão de sua empresa quanto na vida pessoal.
Ele perdeu seu filho mais velho, Alfredo “Dino” Ferrari, em 1956, o que deixaou Piero Ferrari, hoje com 79 anos e vice-presidente do conselho da fabricante de automóveis, como herdeiro.
As relações com a Fiat
Enzo faleceu em 14 de agosto de 1988, alguns anos após vender 90% da participação da empresa à Fiat, que é outra peça fundamental nesse legado, empresa automotiva mais tradicional da Itália, fundada em 1899 por Giovanni Agnelli.
Gianni Agnelli, neto do fundador, era conhecido como o industrial italiano mais proeminente do pós–Segunda Guerra Mundial. Durante sua vida, ele foi considerado o homem mais rico da Itália.
A Fiat, sob a sua liderança, adquiriu uma participação majoritária na Ferrari em 1969. Essa relação trouxe estabilidade financeira e apoio estratégico à empresa de Enzo e permitiu que a marca tivesse condições de continuar a crescer e a inovar. Com Gianni Agnelli, a Fiat se transformou em um gigante automotivo, enquanto a Ferrari se consolidou como uma das marcas mais icônicas do mundo.
Gianni morreu em 2003 - e foi então que sua filha, Margherita Agnelli, contestou os acordos de herança feitos por seu pai.
Esses acordos favoreciam os três filhos do primeiro casamento de Margherita – John, Lapo e Ginevra Elkann – e excluíram os cinco filhos que ela teve em seu segundo casamento com Serge de Pahlen.
Margherita alegou que os pactos de herança não eram válidos, especialmente devido à residência legal de sua mãe, Marella Agnelli, que faleceu em 2019.
Atualmente, quase 23% das ações da Ferrari são da holding Exor, que pertence à família Agnelli, o que é alvo de briga judicial pelos direitos de herança, como acontece em muitas histórias de sucessão.
Nesse ponto, a questão da residência de Marella, viúva de Gianni Agnelli, é crucial.
A discussão gira em torno da residência de Marella, se na Itália ou na Suíça. Essa definição poderia mudar drasticamente a distribuição da herança, dado que legislação italiana não permite a renúncia dos direitos de herança antes da morte de uma pessoa.
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A disputa na justiça
A disputa judicial pela herança de Agnelli leva mais de uma década e ainda está em andamento. Em maio, um tribunal de Turim suspendeu temporariamente o processo enquanto aguardava julgamentos na Suíça.
No centro dessa controvérsia está a Dicembre Societa Semplice, uma entidade que controla a Giovanni Agnelli BV, a holding da família Agnelli. Esta, por sua vez, controla a Exor, outra holding que está à frente de gigantes como a Ferrari, a CNH Industrial, a Juventus - tradicional clube de futebol da cidade de Turim - e que, não menos importante, é a maior acionista da Stellantis (o grupo que reúne marcas como Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e Chrysler).
John Elkann, neto de Gianni e atual presidente do conselho da Stellantis e da Ferrari, foi o sucessor escolhido por Gianni para comandar o império em 1997, quando tinha 21 anos. Ele desempenhou um papel crucial na administração dos negócios da família, especialmente na revitalização da Fiat durante uma grave crise financeira sob a liderança do então CEO Sergio Marchionne.
Margherita Agnelli tem cinco filhos do segundo casamento com Serge de Pahlen: Pierre, Sophie de Pahlen, Anna, Tatiana e Maria, todos sem envolvimento notório nos negócios familiares.
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