Bloomberg — O acordo de reestruturação do grupo francês Casino Guichard Perrachon, dono do Grupo Pão de Açúcar (PCAR3) no Brasil, foi concluído nesta semana depois que o conselho da rede varejista aprovou uma proposta para recapitalizar o negócio e reduzir a dívida da empresa, de 6,1 bilhões de euros.
Por trás da negociação vencedora está o empresário tcheco Daniel Kretinsky, que deve assumir a companhia em um consórcio com os grupos EP Commerce Global, Fimalac e o credor Attestor Capital. O acordo prevê que o Casino entre em um processo de reestruturação supervisionado por um tribunal até outubro, com conclusão estimada para o primeiro trimestre de 2024.
O CEO e atual controlador Jean-Charles Naouri, que ficou conhecido dos brasileiros há uma década ao travar - e vencer - um embate com Abilio Diniz pelo controle do Pão de Açúcar, será diluído.
Com 48 anos, Kretinsky é um ex-advogado que construiu um império de combustíveis fósseis estimado em mais de US$ 17 bilhões, adquirindo ativos “sujos” (em emissão) a preços baixos vendidos por empresas de serviços públicos da Europa que se apressavam para descarbonizar a operação.
Kretinsky controla o Grupo EPH, um dos maiores conglomerados de energia da Europa Central. Em uma década, Kretinsky usou seu estilo discreto de negociação para reunir um dos maiores portfólios de negócios de combustíveis fósseis na Europa.
No processo, ele retirou milhões de toneladas de carbono dos balanços das empresas de energia mais poluentes da região e os transferiu para os balanços da EPH.
A EPH, da qual ele é o acionista majoritário, se tornou uma das maiores poluidoras de carbono da Europa, a segunda maior mineradora de carvão na Alemanha e um importante transportador de gás russo para o continente.
Ele próprio acumulou uma fortuna pessoal de mais de US$ 9 bilhões em abril de 2023, segundo a Forbes. Isso o elevou ao status de oligarca, com um castelo francês e participações em empresas como a Foot Locker, de artigos esportivos, e a Royal Mail, do Reino Unido, além do West Ham United Football Club, clube tradicional de Londres da Premier League, o jornal francês Le Monde e outras.
A EPH não respondeu a perguntas sobre a riqueza de Kretinsky.
Livre das pressões de investidores e reguladores que forçavam essas empresas públicas a reduzir as emissões, sua empresa de capital fechado tem conseguido livremente aproveitar os lucros provenientes da queima de combustíveis poluentes. Até agora, o risco valeu a pena, especialmente depois que a guerra na Ucrânia impulsionou os preços de energia.
Recentemente, ele também se envolveu em outra negociação para a possível venda das minas de carvão alemãs e usinas elétricas pertencentes à gigante de energia sueca Vattenfall, que se tornou uma questão crítica na Alemanha. Muitos no país queriam ver essas instalações prejudiciais ao planeta fechadas, não transferidas para outra empresas.
Kretinsky age com base em uma audaciosa suposição: a transição verde aclamada pela Europa será um processo confuso e prolongado que exigirá a queima de carvão e gás por mais tempo do que o previsto.
Ele é um dos beneficiários mais marcantes de uma preocupante tendência global: a transferência de ativos públicos de combustíveis fósseis para empresas de capital fechado, como a EPH, que geralmente têm metas climáticas mais frouxas e não respondem a investidores preocupados com questões ambientais, sociais e de governança (ESG).
Em 2022, empresas de capital fechado adquiriram US$ 13,6 bilhões em ativos de petróleo e gás de empresas de capital aberto, um aumento de 31% em relação ao ano anterior, de acordo com dados compilados pela empresa de consultoria Wood Mackenzie para a Bloomberg Green. Um terço da infraestrutura de petróleo e gás do Mar do Norte já está em mãos de empresas privadas, segundo o Common Wealth, uma organização sem fins lucrativos do Reino Unido.
Esse movimento prolonga a vida de algumas das instalações mais poluentes do mundo e prejudica os esforços da Europa para tornar sua economia mais verde. É também uma das principais razões pelas quais as emissões de dióxido de carbono frequentemente aumentam quando as principais empresas de combustíveis fósseis concretizam desinvestimentos.
Entre aqueles que tentam lucrar enquanto extraem o máximo possível de ativos poluentes em seus momentos finais, Kretinsky é um dos maiores vencedores.
Ele “não é o único cético em relação à velocidade da transição verde na Europa”, disse Jan Osicka, professor da Universidade Masaryk, que estudou as aquisições de Kretinsky e estimou o tamanho de seu portfólio. Mas, como ele possui recursos que outros não têm, “ele está comprando tudo que solta fumaça”.
Kretinsky se tornou presidente da EPH em 2009, depois que o banco privado em que trabalhava como advogado criou a empresa para abrigar um grupo de pequenos ativos de energia tchecos.
Sua “tacada” crucial ocorreu em 2013, quando a EPH adquiriu uma participação significativa no gasoduto de gás da Eslováquia, o Eustream, uma fonte confiável e estável de dinheiro. Nos anos seguintes, Kretinsky adquiriu minas de carvão na Alemanha e na Polônia, seguidas por mais ativos que emitem carbono na França, na Irlanda, na Itália, na Holanda e no Reino Unido.
Em 2020, o ano em que os legisladores europeus aprovaram o plano climático mais ambicioso do mundo, a EPH estava gerando cerca de metade de sua eletricidade a partir do carvão e seus planos de expansão para o gás superavam os de todas as outras empresas de energia europeias, segundo o grupo ambiental Ember.
A estratégia deu certo. Em 2021, a EPH registrou receita de € 18,9 bilhões (US$ 20,4 bilhões), aumentando mais de € 10 bilhões em relação ao ano anterior, enquanto o lucro operacional atingiu € 1,5 bilhão.
Arte renascentista e chá verde
Em junho do ano passado, a EPH se tornou a maior empresa tcheca em receita. Enquanto seu império cresce, Kretinsky permanece discreto e inescrutável, de acordo com aqueles que o conheceram. “Ele não é um cara de vodca barulhento”, disse Jerome Lefilliatre, repórter do jornal francês Libération, que o entrevistou em 2019 - uma referência ao estereótipo de oligarca russo. “Quando nos encontramos, ele estava bebendo chá verde.”
Nessa conversa, Kretinsky revelou que coleciona arte renascentista, admira o financista J.P. Morgan e não gosta de jornalistas (ele se recusou a ser entrevistado para esta reportagem).
A aparente busca de Kretinsky por lucros às custas do planeta atualmente lhe rende apelidos desagradáveis. A organização tcheca Re-set apelidou a EPH de “hiena fóssil”, e Osicka e seus coautores a chamaram de “urubu” em seu estudo de 2021, intitulado “O Vilão do Carvão da União Europeia?”
Ainda assim, mesmo um dos maiores céticos em relação aos planos verdes da Europa parece reconhecer que um dia a economia será livre do carvão. A EPH está procurando maneiras de ganhar dinheiro com alternativas mais limpas, incluindo energia eólica, solar e biomassa.
A LEAG, uma empresa de energia que tem 50% do capital controlado pela EPH, planeja fechar a mina de carvão de Jänschwalde, na Alemanha, até o final de 2023 e encerrar a usina elétrica nos próximos anos. Ela pretende investir € 10,2 bilhões para transformar quatro minas de lignito e quatro usinas de energia no leste da Alemanha em um centro de energia eólica e solar e prometeu recuperar o terreno degradado que será deixado para trás.
A EPH pretende ser neutra em carbono até meados do século, disse um porta-voz. Até 2030, a empresa planeja reduzir suas emissões de CO2 em 60% em relação aos níveis de 2020, e já investiu ou comprometeu mais de € 2,4 bilhões em produção de energia sustentável, disse ele.
Fabian von Oesen, chefe de energias renováveis da LEAG, disse que os lucros da empresa com carvão têm data de validade. “Usar carvão para produzir energia é uma maneira mais do que questionável”, afirmou. “Isso está chegando ao fim.”
O dilema para investidores como Kretinsky é saber quando sair. A EPH aposta que o fim virá mais tarde do que a maioria de seus pares espera. A RWE da Alemanha, por exemplo, concordou recentemente em parar de gerar eletricidade a partir de lignito até 2030. A EPH disse que poderia continuar queimando carvão na Alemanha até 2038.
Essa é uma aposta que requer coragem.
“É absolutamente tolice investir a longo prazo em ativos de combustíveis fósseis”, disse John Morton, diretor administrativo da empresa de investimentos verdes Pollination, que passou dois anos assessorando a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, sobre mudanças climáticas. “Chegará um momento, em um futuro não muito distante, em que será extremamente difícil se livrar desses ativos e repassá-los para o próximo interessado.”
- Com reportagem de Gautam Naik, Petra Sorge, Phil Serafino e Irene García Perez, da Bloomberg News.
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