‘Geração sanduíche’: os milhões de trabalhadores que também cuidam de pais idosos

Mais da metade da força de trabalho dos EUA tem responsabilidades de cuidado de familiares idosos, em muitas vezes sendo obrigados a abandonar o emprego

O envelhecimento da população é um fenômeno em muitos países, caso do Brasil, e começa a atrair a atenção de empreendedores (Foto: Qilai Shen/Bloomberg)
Por Matthew Boyle
05 de Novembro, 2023 | 02:08 PM

Bloomberg — Ellen Kessler visitava sua mãe na Flórida em 2022 quando a situação teve uma reviravolta.

“Ela me ligou histérica de madrugada, com medo de que sua casa tivesse sido invadida”, disse Kessler, que estava hospedada em um hotel próximo. “Cheguei lá e parecia que ela não era a mesma pessoa. Eu não sabia o que fazer.”

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Preocupada em deixar sua mãe de 91 anos sozinha, Kessler decidiu levá-la para sua cidade, o que ela disse ter sido “o pior erro que já cometi”. Estar longe de casa exacerbou a ansiedade da mãe e acrescentou um fardo exigente à vida diária de Kessler, uma diretora sênior de 60 anos da rede de hotéis Hilton.

O problema de Kessler tem se tornado cada vez mais comum.

Mais da metade da força de trabalho dos Estados Unidos tem responsabilidades de cuidado de terceiros fora do trabalho, e cerca de 37 milhões de americanos podem passar, em média, quase quatro horas por dia cuidando de um idoso, de acordo com dados do governo dos EUA.

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Os trabalhadores que cuidam de pais idosos e têm filhos em casa, a chamada “geração sanduíche”, relatam níveis ainda mais altos de tensão emocional e financeira, de acordo com a AARP (American Association of Retired Persons), associação que reúne pessoas aposentadas.

As estimativas do custo econômico de cuidados nos EUA variam de US$ 264 bilhões a até US$ 600 bilhões.

“O impacto é sentido por uma parcela surpreendentemente grande da população e tem um custo enorme”, de acordo com um relatório da seguradora Blue Cross Blue Shield. Muitas pessoas que tentam equilibrar suas vidas profissionais com a prestação de cuidados são forçadas a faltar ao trabalho, tirar licença ou pedir demissão.

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O problema é tão evidente que tem atraído a atenção de empreendedores. Uma startup busca maneiras de ajudar cuidadores que também trabalham fora. Quando Kessler explicou sua situação ao chefe, ela descobriu que o Hilton possui um novo benefício de cuidados com idosos gerenciado por uma startup chamada Wellthy.

Outras grandes empresas, incluindo a varejista de eletrônicos Best Buy, a big tech Meta (META) e a gigante de fundos Vanguard Group, também oferecem os serviços da Wellthy aos funcionários.

Apenas 12% das empresas, por outro lado, oferecem alguma forma de suporte para cuidados com idosos, de acordo com a Gallagher Surveys.

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Embora um número cada vez maior de grandes empregadores ofereça aos funcionários uma licença remunerada para cuidadores e muitos tenham serviços de aconselhamento, quase nenhum oferece orientação personalizada e especializada sobre como lidar com os desafios complexos de cuidar de familiares idosos. Isso significa que a Wellthy tem pouca concorrência direta.

Essa relativa falta de opções de cuidados com idosos contrasta com a maior disponibilidade de benefícios para cuidar de crianças, como o fundo para despesas com creches e serviços de assistência de emergência.

A Wellthy ajuda os trabalhadores a lidar com as inúmeras questões que podem surgir quando um membro mais velho da família precisa de cuidados. Quando Kessler entrou em contato com a startup, eles a colocaram em contato com a cuidadora Lynda Cooke.

A mãe de Kessler tem degeneração macular, que prejudica sua visão, mas sempre resistiu a se mudar para um lugar de cuidados intensivos e em tempo integral, então Cooke orientou a família a buscar um auxiliar de saúde domiciliar.

Uma queda brusca que resultou em uma costela quebrada, contudo, fez com que a mãe de Kessler mudasse sua maneira de pensar sobre a moradia assistida. Cooke foi fundamental para ajudar Ellen com as perguntas certas a serem feitas aos estabelecimentos, bem como para dar orientação sobre a negociação de taxas e apoio emocional.

“Entre o hospital, a reabilitação e tentar trabalhar, é muita coisa”, disse Kessler. “Você sente o desgaste de ter que cuidar de seus pais.”

Duas mulheres, uma idosa e uma de meia-idade, se entreolhando

Os programas de assistência ao funcionário (EAP, na sigla em inglês) que muitas grandes empresas oferecem normalmente não podem ajudar os funcionários a navegar pelo labirinto de provedores de cuidados de longo prazo, regulamentos e opções de pagamento.

Alguns empregadores oferecem serviços que direcionam os funcionários a fornecedores, mas a escassez de auxiliares de saúde domiciliar e outros trabalhadores em funções de cuidados de saúde com baixa remuneração e alta rotatividade pode dificultar a obtenção de ajuda.

“É uma grande brecha”, disse o diretor administrativo e sócio do Boston Consulting Group, Suchi Sastri, que faz parte de uma equipe cuja pesquisa estimou que a escassez de cuidadores no país somada ao envelhecimento da população custará aos EUA US$ 290 bilhões por ano a partir de 2030. “Não acho que esse seja um assunto prioritário no momento, mas precisa estar na agenda dos CEOs.”

Lindsay Jurist-Rosner foi cofundadora da Wellthy em 2014, depois de lutar para equilibrar uma carreira exigente em marketing com o cuidado de sua mãe, que tinha esclerose múltipla e faleceu em 2017.

Ela começou a oferecer o serviço de concierge para pessoas físicas, mas rapidamente expandiu o foco para vendê-lo a empregadores como um benefício patrocinado, o que significa que é gratuito para os funcionários.

As empresas geralmente pagam entre US$ 3 e US$ 6 por funcionário por mês. Isso lhes dá acesso à rede de especialistas em cuidados da Wellthy – muitos deles assistentes sociais experientes – que estão disponíveis 24 horas por dia.

“As pessoas nos procuram em momentos de crise”, disse Jurist-Rosner. “Você tem poucos momentos em sua vida como esse, por isso temos que oferecer o melhor atendimento possível”.

Christopher Cowan, diretor de recursos humanos da ChristianaCare, uma rede de assistência médica que emprega 13.700 pessoas, deu uma chance à Wellthy em agosto do ano passado.

Embora Cowan reconheça que “não é barato”, ele disse que a empresa se pagará se o ajudar a manter 11 enfermeiras ou três executivos que, de outra forma, poderiam ter deixado a empresa devido à responsabilidade de cuidados com idosos.

Joseph Fuller, professor da escola de negócios de Harvard, que estudou o efeito desses cuidados com a força de trabalho e aconselhou Jurist-Rosner quando ela estava lançando a Wellthy, disse que essas obrigações são o principal fator de rotatividade de funcionários.

“Não é preciso muita utilização do serviço para justificar a cobertura”, disse ele. Além dos cuidados com os idosos, a Wellthy também oferece ajuda para crianças pequenas, adolescentes e para os próprios funcionários.

Laura Fuentes, chefe de recursos humanos do Hilton, disse que o Wellthy economizou 20.000 horas de seus 49.000 funcionários nos EUA em menos de um ano, o que a convenceu a expandi-lo para os funcionários da empresa no Reino Unido e na Irlanda.

Kamy Scarlett, vice-presidente executiva sênior de recursos humanos, assuntos corporativos e Canadá da Best Buy, disse que o Wellthy economizou cerca de 60.000 horas para seus 90.000 funcionários nos últimos dois anos e tem um dos mais altos índices de satisfação entre todos os benefícios para funcionários.

“Passei por isso anos atrás e, se eu tivesse a Wellthy naquela época, teria tomado decisões diferentes”, disse Scarlett.

Apesar de tudo o que a Wellthy faz (seus especialistas também entrevistam cuidadores em nome dos trabalhadores) ela não pode compensar os custos do tratamento, que podem ser imprevisíveis e altos. A Wellthy também não pode diagnosticar doenças nem prescrever medicamentos.

Para os trabalhadores que não têm acesso a benefícios de assistência a idosos, principalmente aqueles que ainda têm filhos que moram com eles, equilibrar o trabalho e a família pode ser muito difícil.

Kelly Mann, de 50 anos, ocupa um cargo corporativo de alto nível, ajudando as empresas a mapear o trabalho híbrido. Ela tem uma filha adolescente com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e pais idosos que enfrentam sérios problemas de saúde.

Recentemente, sua mãe de 79 anos foi levada às pressas para o hospital com diverticulite, e uma ressonância magnética de acompanhamento constatou um sangramento cerebral, exigindo uma consulta neurológica.

A internação em uma clínica de reabilitação foi inicialmente rejeitada pelo plano de saúde da mãe, o que obrigou Mann a passar cinco horas ao telefone para recorrer da decisão. Em seguida, sua mãe teve um derrame, o que a levou de volta ao hospital.

Na mesma época, seu pai, de 85 anos, foi diagnosticado com demência em estágio intermediário, exigindo um auxiliar de saúde domiciliar durante o dia. O marido de Mann, que trabalha com imóveis residenciais, ajuda, mas Mann diz que fazer malabarismo com tudo é um fardo. “Tenho tempo livre ilimitado”, disse Mann.

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