Bloomberg Línea — Quase 30 viagens por ano do Brasil à Europa, das quais muitas “bate-e-volta” para a Alemanha. Essa costumava ser a rotina do presidente e CEO da Volkswagen Truck and Bus, Roberto Cortes, até a pandemia de covid-19.
O experiente executivo chegou a acumular o equivalente a 35 voltas em torno da Terra em distância percorrida em voos. Em cinco anos, foram cinco passaportes preenchidos com carimbos. E Cortes era um dos passageiros mais frequentes da companhia aérea alemã Lufthansa no mundo. Mas essa rotina dele e de outros executivos que viajam com frequência têm mudado à medida que empresas retomam as viagens corporativas para a participação em reuniões ou eventos.
Com as transformações do modelo de trabalho de empresas de diferentes portes e a expansão do uso de tecnologias digitais para comunicação e reuniões, as viagens corporativas diminuíram de frequência e mudaram de perfil na retomada pós-covid.
Chefe global da marca de veículos pesados da Volkswagen e membro do conselho executivo do grupo alemão Traton – dono de Scania, MAN, Navistar e da Volkswagen Truck and Bus –, Cortes ainda viaja para a Europa pelo menos uma vez por mês, mas a frequência caiu à metade da que estava acostumado a fazer antes da pandemia.
“Nas outras áreas do grupo, as viagens tiveram uma queda de cerca de dois terços. É um processo de aprendizado, hoje muitas questões podem ser discutidas virtualmente, embora algumas reuniões ainda sejam presenciais”, disse Cortes, que, em razão de sua posição, ainda tem como uma de suas atribuições participar in loco de reuniões que decidem os rumos do conglomerado.
“Antes meus filhos que perguntavam quando eu viajaria de novo. Agora são meus netos”, afirmou o executivo em entrevista à Bloomberg Línea.
A mudança na rotina de executivos tem se refletido nos números do setor de viagens corporativas. Embora tenha retomado o faturamento pré-pandemia, houve queda no número de viagens.
Dados da Associação Brasileira de Agências de Viagens Corporativas (Abracorp) mostram que, em agosto, o volume de viagens aéreas domésticas (um dos 11 segmentos acompanhados pela associação) estava 13% abaixo do mesmo mês de 2019, antes da pandemia. O faturamento, no entanto, aumentou 16,5%.
Em paralelo, o faturamento de locação de veículos em agosto mais do que dobrou em relação ao mesmo período de 2019, conforme a Abracorp, sinal de que há um movimento de migração do transporte aéreo para o terrestre em trechos mais curtos.
“Como a demanda por viagens corporativas continua a crescer e a tarifa média das passagens aéreas aumentou muito, acreditamos que houve um fluxo maior para locação de carros”, afirmou o diretor executivo da Abracorp, Humberto Machado.
No acumulado de 2022, o setor faturou R$ 11,2 bilhões, abaixo dos R$ 11,38 bilhões registrados em 2019, nível pré-covid.
Para a Gol (GOLL4), empresa que lidera o segmento de viagens corporativas, há perspectivas positivas e outras que demandam cautela, segundo o CEO, Celso Ferrer, comentou na call de resultados do segundo trimestre, no fim de agosto.
“Começamos o ano com um primeiro trimestre mais forte e imaginávamos o corporativo, quando você sai da alta temporada do primeiro trimestre, normalmente o segundo e o terceiro trimestres têm um papel muito importante dos passageiros de negócio. E maio e junho foram meses em que essa demanda veio de uma maneira muito mais tímida do que imaginávamos”, contou na teleconferência.
“Agora, estamos assumindo que o ritmo desse segmento de negócios vai ser diferente. Ele é crescente. A boa notícia é que ele é crescente. Porém o ritmo de crescimento é mais lento do que o que havíamos assumido e, portanto, isso nos traz cautela”, disse o executivo na ocasião.
Mudança cultural
Do lado de empresas que não são de transporte aéreo, há muitos relatos de uma diminuição das viagens a negócios.
Um exemplo é o da consultoria KPMG. Após a pandemia, a aprovação de viagens ficou bem mais criteriosa dentro da empresa, contou a sócia líder de capital humano Luciene Magalhães. A executiva já chegou a visitar cinco países da América do Sul em apenas uma semana.
“Durante a viagem eu dormi todas as noites no avião. Era uma circunstância da minha atividade e o modus operandi da época”, disse a executiva. “Hoje faríamos de novo? Depois da pandemia passamos a discutir e questionar muito mais esse tipo de situação”, ponderou.
Magalhães viajava até duas vezes por mês do Brasil para destinos internacionais em decorrência da sua atuação. Em muitas ocasiões, a executiva pegava um voo para Londres, fazia uma reunião de seis horas e pegava o voo de volta.
“A pandemia veio e mudou tudo. De forma geral, o que vemos no mercado e na conjuntura da KPMG como um todo é que as despesas com viagens reduziram bastante”, afirmou.
Ela lembra ter feito inúmeras viagens de São Paulo (SP) a Belo Horizonte (MG) para reuniões de apenas uma hora. “Isso acabou sendo abolido da nossa pauta por diversas razões. A tecnologia permite fazer esses encontros virtualmente. Além disso, precisamos nos adequar às demandas de descarbonização.”
Segundo Magalhães, depois da pandemia as empresas passaram a avaliar se os encontros presenciais são a única solução possível, especialmente com o aumento brutal dos preços das passagens aéreas.
“Vemos uma redução significativa da emissão de passagens, hotéis e aluguel de veículos na KPMG. Essa nova cultura é um desafio, trata-se de uma mudança de pensamento nos perguntarmos sempre se a viagem é de fato necessária.”
Magalhães afirmou que as viagens do tipo bate-e-volta não acontecem mais e que o preço e o tempo de permanência no destino são determinantes para a aprovação do deslocamento. “Essa é uma tendência que veio para ficar.”
Em relatório do Citi do último dia 20 de setembro, analistas afirmam que a procura por passagens aéreas cresceu em relação aos níveis pré-pandemia, mas que a demanda apresenta mudanças de padrão, que incluem consumidores que “já não estão no escritório cinco dias por semana” e também menos viagens de negócios.
Ainda em um relatório de junho, o Citi disse que “muitos investidores não estão confiantes na evolução do novo normal para as companhias aéreas”. Segundo os analistas do banco, é preciso aguardar para ver se as mudanças de demanda são estruturais.
“Vale lembrar que as taxas de ocupação de escritórios nos Estados Unidos diminuíram no pós-pandemia e que ajustes nos hábitos dos consumidores podem estar alimentando mudanças nos padrões de viagens e de compra de passagens aéreas”, disseram.
O banco de investimento citou como exemplo o padrão de reservas: compras de passagens mais próximo à data de embarque, em geral mais caras - uma característica das viagens corporativas e uma grande fonte de receita das aéreas -, têm demonstrado menos força hoje em relação a 2019. Por outro lado, os preços e os volumes de compras com mais antecedência parecem mais fortes.
Novo normal
Para o CEO da consultoria especializada Trilha Carreira Interativa, Bruno Martins, as viagens corporativas foram amplamente remodeladas. “Agora só acontecem em caso de necessidade de fechamento de negócio, quando as conversas já estão em fase avançada”, afirmou.
O consultor relatou que empresas estão adotando o modelo de trabalho remoto para economizar despesas e, como reuniões e encontros presenciais acabam demandando mais da agenda das partes envolvidas, isso impacta o volume de viagens a negócios. “Nesse contexto, vejo uma nova cultura no mundo corporativo.”
Por outro lado, a demanda por congressos e eventos para integração de equipes tem crescido, principalmente para destinos com apelo de natureza, ressaltou o especialista. “Para esse tipo de atividade, o orçamento das empresas aumentou.”
Martins projetou que as viagens a negócios vão continuar a diminuir, em sua visão. “As empresas não vão voltar a investir o que costumavam em viagens corporativas.”
Executivos que viajam com muita frequência mantiveram algumas regalias dos tempos pré-covid que ajudam a amenizar a rotina exaustiva de viagens, ainda que a frequência tenha diminuído.
Roberto Cortes, da Volkswagen Truck and Bus, tem certos privilégios por se enquadrar em uma categoria de passageiros diferenciada, devido à sua frequência de voos. O executivo tem direito a um traslado especial da Lufthansa e normalmente não enfrenta filas como outros viajantes. Ele também tem um assento de sua preferência, recebe dois travesseiros e um cobertor mais leve.
“Isso faz com que o estresse do embarque seja reduzido, a equipe já sabe minhas preferências”, disse.
No aeroporto de Frankfurt, um dos mais movimentados da Europa, o carro da Lufthansa busca o chefe da Volkswagen na porta da aeronave, principalmente quando as conexões são apertadas. “É uma comodidade, não tenho ‘estresse de aeroporto’. Mas, quando viajo de férias, não é assim”, ressaltou.
Os privilégios amenizam principalmente as viagens “bate-e-volta”. Em alguns casos, Cortes enfrenta 30 horas de deslocamento para participar de uma reunião de três horas. “Por eu ser membro do board da Traton, isso ainda acontece. Fazemos algumas dessas reuniões no aeroporto mesmo”, relatou.
Ainda assim, ele notou uma mudança de hábito que tende a reduzir ainda mais as viagens corporativas com o tempo. Segundo Cortes, nos Estados Unidos a tecnologia já vem sendo utilizada há mais tempo, enquanto na Alemanha ainda se fala no “princípio dos quatro olhos” -- o famoso olho no olho.
“O número atual de viagens corporativas mostra que há uma tendência, no longo prazo, de esses deslocamentos caírem pela metade se comparados ao pré-pandemia”, estimou.
Leia também
Como a família Randon quer transformar um ‘hobby’ em um negócio bilionário
Febre do cobre: era do carro elétrico atrai US$ 95 bi em projetos na América Latina