Empresas devem entender que trabalho deixou de ser o centro da vida, diz especialista

Mudanças no valor e na ética do trabalho não afetam só os mais jovens, mas eles vocalizam mais tal sentimento, diz Bettina Schaller, presidente da World Employment Confederation, à Bloomberg Línea

Trabalhar em escritórios para fazer uma carreira de muitos anos na mesma empresa pode não ser mais o objetivo de milhões de jovens, diz especialista
Por Daniel Buarque
21 de Abril, 2025 | 01:37 PM

Bloomberg Línea — Reclamar da suposta falta de compromisso profissional das novas gerações se tornou quase um lugar comum nos corredores de empresas nos últimos anos.

Nas redes sociais, há relatos de empregadores sobre jovens que questionam, colocam limites em obrigações, rejeitam cobranças excessivas e buscam promoções com frequência.

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Para a executiva suíça Bettina Schaller, entretanto, mais do que um simples choque geracional ou suposto abandono da ética profissional, o mundo do trabalho foi transformado pela pandemia de Covid-19, iniciada cinco anos atrás, em 2020.

Presidente da World Employment Confederation, que atua para facilitar a entrada de jovens no mercado de trabalho, Schaller alega que o período pós-pandemia catalisou uma reavaliação mais ampla dos valores profissionais em diversas gerações.

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“A Covid mudou a mentalidade profissional, colocou muitas coisas em perspectiva”, disse em entrevista à Bloomberg Línea, durante a segunda Conferência Global do Mercado de Trabalho (GLMC) realizada em Riad, na Arábia Saudita.

Essa reavaliação não se restringe a um único grupo etário e reflete uma mudança universal que prioriza o bem-estar pessoal juntamente com o sucesso profissional. “As pessoas não estão mais preparadas para colocar o trabalho no centro das suas vidas”, disse.

Para Schaller, o que parece uma mudança geracional pode ser explicado pela forma como as novas gerações expressam essa nova relação com o trabalho.

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“Os jovens de hoje estão cada vez mais vocalizando suas expectativas quanto ao equilíbrio entre vida pessoal e profissional e à importância do bem-estar mental”, disse.

Para a especialista, é preciso parar de interpretar a posição dos jovens como “falta de vontade” para o trabalho.

“Eu sou uma daquelas que dizem que os jovens têm vontade. Há um entusiasmo genuíno entre os jovens em participar de trabalhos produtivos, fazer parte de equipes, criar e ter um impacto”, disse.

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A questão não é motivação ou atitude, mas, sim, uma desconexão entre as habilidades que os jovens possuem e as que os empregadores exigem. Isso muitas vezes decorre de sistemas educacionais que não preparam adequadamente os alunos para as realidades do local de trabalho moderno.

Segundo sua avaliação, as implicações dessa transformação são significativas. “Modelos tradicionais, que valorizam uma ética de trabalho exaustiva sem considerar as necessidades pessoais, podem não ser mais eficazes para atrair e reter talentos”, explicou.

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Schaller observou que, embora algumas vozes há mais tempo no mercado critiquem a aparente falta de dedicação dos jovens, essa diferença geracional em relação ao equilíbrio entre vida pessoal e trabalho não deve ser vista como uma fraqueza, mas sim como um sinal dos valores em evolução.

“Eles têm uma atitude diferente. Devem ter expectativas”, comentou, para em seguida sugerir que o mercado de trabalho precisa se adaptar para aproveitar essa nova perspectiva, em vez de resistir.

Essa transformação mais ampla na mentalidade aponta para a necessidade de os empregadores e intermediários repensarem a estrutura do trabalho.

A executiva apontou para um paradigma emergente em que flexibilidade, aprendizado contínuo e apoio à saúde mental são componentes essenciais de um ambiente produtivo. Segundo ela, é preciso promover culturas de trabalho que valorizem o bem-estar humano.

Entrada no mercado de trabalho

A World Employment Confederation, dirigida pela executiva, coordena o trabalho de agências em todo o mundo responsáveis por ajudar jovens a entrarem no mercado de trabalho.

Segundo Schaller, esse primeiro passo rumo ao mundo do trabalho é repleto de obstáculos, como o desafio recorrente do “paradoxo da experiência” — para conseguir um emprego é necessário ter experiência, mas, sem um emprego, adquirir essa experiência parece quase impossível.

“O ponto difícil, como sabemos, para os jovens é que eles não têm experiência de trabalho, e isso é o que se exige no início”, explicou.

Apesar desse aparente “beco sem saída”, a executiva mantém uma visão otimista.

Ela destacou que empresas especializadas e agências de recrutamento surgiram como peças-chave ao oferecerem a tão necessária “ponte” para os jovens profissionais. Esses intermediários ajudam a superar o abismo, demonstrando aos empregadores que, embora os candidatos possam ter pouca experiência, eles possuem as competências essenciais e a motivação para prosperar.

“As agências proporcionam um trampolim”, enfatizou, destacando que a experiência inicial, mesmo que venha na forma de um emprego temporário ou por contrato, pode ser decisiva na trajetória profissional de um jovem, disse.

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Outro desafio ressaltado por Schaller é a natureza em constante transformação das atitudes em relação ao trabalho e o impacto da transformação digital nos processos de recrutamento.

Com a dependência de algoritmos e canais digitais para a seleção de candidatos, muitos se perguntam se esses métodos conseguem captar as nuances da cultura organizacional e da ética de trabalho.

“No fim das contas, em qualquer ambiente de trabalho, há uma cultura específica”, disse. “Nenhum algoritmo digital conseguiu, até o momento, decifrar com precisão os aspectos intangíveis da dinâmica do ambiente corporativo”, disse.

Desafios globais

A experiência de Schaller não se limita à Suíça.

Representando uma instituição global, ela ofereceu uma visão comparativa dos mercados de trabalho, destacando as transformações dinâmicas que ocorrem em regiões como a América Latina.

“O acesso ao mercado de trabalho depende, na verdade, de onde você mora”, explicou, apontando que, embora os desafios sejam universais, as condições econômicas locais e os sistemas educacionais podem agravar ou amenizar essas dificuldades.

Por exemplo, os recentes engajamentos de Schaller na América Latina ressaltam a disposição da região em adotar uma abordagem mais profissionalizada nas soluções de emprego.

Ela contou que esteve recentemente em um evento sobre o tema no Brasil e enfatizou a importância da promoção de oportunidades de aprendizagem prática e de iniciativas governamentais que impulsionem a regulamentação do mercado de trabalho.

“Essa transformação regional é um sinal promissor para o futuro do trabalho, pois quando os países investem em aprendizagem prática e estabelecem vínculos mais estreitos entre instituições educacionais e empregadores, a sinergia resultante eleva consideravelmente a empregabilidade dos jovens.”

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“Tais iniciativas garantem que os talentos emergentes estejam não apenas preparados para o mercado de trabalho mas também equipados com as habilidades que atendem às demandas contemporâneas”, disse.

Em contraste, regiões onde o sistema educacional permanece desconectado das necessidades práticas do ambiente profissional continuam a enfrentar altas taxas de desemprego entre os jovens.

No cerne do argumento de Schaller está a ideia de que superar os desafios do emprego das novas gerações requer um esforço conjunto de todas as partes interessadas no mercado de trabalho.

Empregadores, instituições educacionais e agências de recrutamento devem trabalhar em harmonia para criar caminhos que facilitem uma transição mais suave da educação para o emprego.

Segundo Schaller, “não se trata de motivação. Trata-se de que, aos 15, 18 ou 20 anos, você não pode ter todas as habilidades”.

Em vez disso, o foco deve estar no desenvolvimento contínuo e na mentoria, que fazem a ponte entre o aprendizado acadêmico e as exigências profissionais.

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Daniel Buarque

Daniel Buarque

É doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Tem mais de 20 anos de experiência em veículos como Folha de S.Paulo e G1 e é autor de oito livros, incluindo 'Brazil’s international status and recognition as an emerging power', 'Brazil, um país do presente', 'O Brazil é um país sério?' e 'O Brasil voltou?'