Bloomberg Línea — O anúncio de venda do controle da Tok&Stok para a Mobly em agosto de 2024 indicava o desfecho de um dos negócios mais acompanhados do mercado empresarial brasileiro nos últimos anos.
O acordo que envolveu os controladores das duas empresas e os principais credores foi arquitetado para criar condições para a retomada gradual e ordenada da saúde operacional e financeira de uma das varejistas de móveis e decoração mais tradicionais do país, com dívidas de R$ 450 milhões, então como parte de uma nova plataforma integrada.
Na largada, nascia uma companhia líder de mercado, com receitas anuais de R$ 1,6 bilhão e abrangência nacional, com produtos para as classes A, B e C. E previsão de sinergias de até R$ 135 milhões ao ano ao longo de cinco anos, segundo cálculos da Bain & Co.
O acordo estancou riscos então crescentes de uma recuperação judicial que estava no horizonte diante da pressão de despesas financeiras e do vencimento de dívidas a partir deste ano.
Oito meses depois, e cinco meses após o closing do negócio, no entanto, a empresa resultante que uniu Mobly e Tok&Stok - agora denominada Grupo Toky - enfrenta uma batalha pelo seu controle iniciada pela família francesa Dubrule, fundadores da tradicional rede varejista, mas desta vez na condição de outsiders.
Leia mais: Mobly compra controle da Tok&Stok e cria líder em móveis com R$ 1,6 bi em receita
A disputa que se estende desde o fim de fevereiro tem acarretado aumento das incertezas sobre o futuro da empresa com Mobly e Tok&Stok, com impactos sobre os stakeholders, de investidores a fornecedores.
No mercado, a surpresa veio não só da oferta inesperada em si dos Dubrule mas principalmente pela forma e pelos termos da tentativa de reaver a companhia fundada em 1978.
Régis e Ghislaine Dubrule comunicaram uma proposta potencial - que somente será formalizada se atendidas certas exigências (veja mais abaixo) - pelo controle da Mobly, com um desconto de cerca de 50% sobre o preço de tela da ação no pregão anterior à sua divulgação ao mercado, no 28 de fevereiro.
O preço proposto foi de R$ 0,68 por ação, versus R$ 1,39 no fechamento daquele dia. As cotações caíram desde então para o patamar de R$ 0,99 no fechamento desta segunda-feira (14), em meio ao aumento das incertezas. No acumulado em doze meses, a desvalorização está na casa de 50%.
Mas o desconto na oferta pode chegar na prática a 85%, segundo a Mobly, que aponta para o critério de valor patrimonial para o cálculo da ação, previsto em cláusula da companhia em casos de ofertas de investidores que adquiram “participação relevante” (de 20% do capital), com exigência de prêmio de 20%. Nesse caso, o preço oferecido deveria estar perto de R$ 5,20.

“Não faz sentido ‘rifar’ a companhia neste momento a qualquer preço dado o potencial do trabalho que está sendo feito de geração de valor, poucos meses após a fusão”, disse à Bloomberg Línea Marco Gonçalves, sócio da consultoria CVPar Business Capital, que presta assessoria financeira para o Grupo Toky.
O experiente executivo, conhecido no mercado de capitais como Marcão, trabalhou muitos anos como Head de M&A de Credit Suisse, BTG Pactual e XP e foi contratado no mês passado pelo conselho de administração da Toky. O Lefosse, por sua vez, atua na assessoria legal da companhia.
Leia mais: Cercada de sigilo, família dona da C&A abre império de US$ 39 bi a investidores
A oferta hostil dos Dubrule, por sua vez, conta com a assessoria financeira da americana Moelis & Company e a jurídica da Spinelli Advogados.
“Fomos contratados pelo conselho da Mobly para defender os interesses da companhia e evitar a destruição de valor da proposta. O objetivo é o contrário, valorizar o equity da empresa”, disse Gonçalves.
Um capítulo fundamental é aguardado para o próximo dia 28 de abril, data prevista para a Assembleia Geral Ordinária (AGO) do Grupo Toky, que pode decidir o destino da oferta hostil diante da esperada votação sobre a mesma e sobre a retirada de cláusulas que versam sobre tentativas de aquisição.
“Economicamente, consideramos que a proposta não é justa para qualquer acionista. Se os Dubrule querem reaver o controle da Tok&Stok por meio da Mobly, agora Grupo Toky, que seja com respeito às cláusulas que protegem a companhia e com um preço que reflita o seu valor”, disse o executivo.
Líderes de mercado
Régis e Ghislaine Dubrule fundaram a Tok&Stok em 1978 e a transformaram na maior rede de móveis para as classes A/B do país. Eles embolsaram R$ 700 milhões há mais de uma década, em 2012, ao vender o controle e 60% do capital para o fundo americano de private equity Carlyle.
Eles agora buscam reaver a empresa com uma oferta hostil que representaria na melhor das hipóteses cerca de um décimo do valor que receberam, sem pagamento obrigatório a minoritários e com waiver dos principais credores sobre seus direitos previstos em contrato.
Em correspondência à Mobly em 28 de fevereiro, e em entrevistas à imprensa desde então, Régis e Ghislaine Dubrule alegam que a retomada do controle é a única alternativa factível para o turnaround da Tok&Stok e da empresa unificada, citando a experiência de ambos de quatro décadas no setor. Eles defendem a volta da Tok&Stok às origens e ao modelo com foco em lojas físicas que a consagrou.

Do outro lado estão alguns dos principais acionistas da Mobly.
Esse grupo inclui os sócios fundadores que lideram a empresa desde a sua fundação, Victor Noda, Marcelo Marques e Mario Fernandes, e têm 6,16% do capital; a SPX, que controlava a Tok&Stok por meio de fundos originalmente do Carlyle; a Quartzo Capital, terceira maior acionista; e alguns dos maiores bancos do país, entre os principais credores da rede varejista - Banco do Brasil, Bradesco e Santander.
Noda (CEO), Marques (CFO e diretor de RI) e Fernandes (COO) fundaram a Mobly em 2011 como uma plataforma de venda de móveis nativa digital com foco na classe C.
Conduziram a empresa a um IPO (oferta pública inicial) considerado bem-sucedido que movimentou R$ 812 milhões na B3 em fevereiro de 2021 - na ocasião, a tese e o modelo de negócios prevaleceram sobre a própria Tok&Stok na atração de investidores, e a rede teve que cancelar os planos de listagem.
No ano passado, eles concluíram as negociações para a aquisição da Tok&Stok, convencendo não só os controladores como os bancos credores em um plano de geração de valor de médio e longo prazo com base nas sinergias e na integração entre o modelo físico e o digital.
Eles alegam que os Dubrule já tiveram tempo e oportunidade para tentar executar um plano de turnaround por cerca de um ano antes da venda para a Mobly, sem que houvesse sucesso no ritmo necessário, sob o peso das dívidas e da falta de eficiência de uma operação integrada.
Reviravolta do maior acionista
Nessa disputa há ainda um ator fundamental que sinalizou ter decidido “trocar de lado”: a alemã Home24, acionista de referência da nova empresa resultante com 44,38% do capital.
Embora tenha votado a favor da compra da Tok&Stok pela Mobly apenas poucos meses atrás e estivesse alinhado com os demais acionistas, o grupo europeu sinalizou que pode ser a favor da proposta dos Dubrule - as duas partes negam um entendimento prévio.
No fim de março, a Home24 formalizou proposta para retirar do estatuto social da Toky certas cláusulas - das quais havia votado a favor anteriormente - previstas justamente para proteger os direitos da empresa e dos acionistas em caso de ofertas hostis, como a apresentada pela família Dubrule.
O grupo defende derrubar a poison pill, cláusula prevista para defender os direitos da companhia e de investidores minoritários - presente, por exemplo, nas exigências para empresas listadas no Novo Mercado da B3, o segmento de mais alta governança da bolsa brasileira.

Conflito de interesses de acionista
Outra das cláusulas que a Home24 quer excluir determina critérios para fixar preços mínimos por ação com prêmio de 20% em casos de ofertas de aquisição, como citado anteriormente; e uma ainda que determina o vencimento antecipado das debêntures da Tok&Stok em caso de mudança de controle.
Essa última cláusula remete ao acordo de venda do controle da Tok&Stok para a Mobly.
No deal anunciado em agosto de 2024, depois de meses de de negociações, a Mobly, uma empresa de tamanho menor que a Tok&Stok, mas então sem dívida, listada em bolsa e com governança, só concordou em assumir o controle da tradicional rede após um acordo que alinhasse interesse das principais partes envolvidas com um prazo para lidar com as já citadas dívidas de R$ 450 milhões.
Isso incluiu também, de forma não menos fundamental, a anuência dos bancos para alongar as dívidas para 2034, com carência de um ano para o pagamento de juros e de dois anos para as amortizações.
A cláusula do vencimento antecipado das debêntures foi “costurada” justamente para afastar o risco de eventos como um hipotético pedido de recuperação judicial unilateral por parte de novos controladores, sejam eles quais forem.
“Defendemos que a Home24 se declare impedida de votar na assembléia, dado que tudo indica que ela já tem um acordo de venda e que sua proposta vai na contramão do que são os direitos dos demais acionistas”, disse Gonçalves, sócio da CVPar.
“É impensável que um acionista que tenha cláusula que o proteja para conseguir um preço em torno de R$ 5,20 por ação em uma oferta defenda a retirada do mecanismo”, afirmou.
Ele disse que a Home24 tem o direito de vender suas ações pelo preço que julgar mais adequado, “mas não o direito de arrastar os demais acionistas nessa decisão de destruição de valor”.
Segundo ele, caso a Home24 decida votar e, posteriormente, seja provado que havia entendimento prévio com os Dubrule, os demais acionistas da Mobly poderão buscar reparação de danos na Justiça.
O consultor apontou para dispositivos previstos na Lei das SAs que buscam justamente evitar o prejuízo de companhias e acionistas em casos de votação em que há conflito de interesse.
A Home24 não se pronunciou sobre um eventual acordo com os Dubrule, que, por sua vez, negaram que tenha havido um entendimento prévio em entrevista ao Pipeline, do Valor Econômico.
Sinergias: R$ 22 milhões em três meses
O acordo entre os principais acionistas da Mobly por ocasião da aquisição da Tok&Stok prevê como passo subsequente a execução de um plano para buscar sinergias em cima de medidas como cortes de custos, renegociação de contratos e aumento das receitas com a complementariedade dos negócios das duas marcas, segundo cálculos da Bain & Co., como citado.
Em pouco mais de três meses, a nova empresa alcançou sinergias da ordem de R$ 22 milhões até fevereiro, segundo números divulgados ao mercado. Houve aumento da margem de contribuição, que equivale na prática à margem bruta da operação. A avaliação é que a obtenção das sinergias deve ganhar tração na medida em que novas medidas sejam implementadas.
Nos dados pro-forma do quarto trimestre de 2024, o Grupo Toky reportou um Ebitda ajustado - métrica de geração de caixa operacional - de R$ 42,1 milhões, o equivalente a 11,3% da receita líquida.
O GMV (volume bruto transacionado) chegou a R$ 467 milhões no período e teria superado a marca de R$ 2 bilhões no acumulado de 2024.
Os números do primeiro trimestre serão divulgados ao mercado em 12 de maio.
“As sinergias estão sendo alcançadas antes do esperado, apesar das brigas dos Dubrule, que atrapalham a recuperação da companhia”, afirmou o sócio da CVPar, que ressaltou o alinhamento das demais partes.
No acordo de aquisição da Tok&Stok, foi aprovada uma cláusula que determinou um lock up de 24 meses para a venda de ações dos principais acionistas da nova Mobly justamente para assegurar um compromisso de médio prazo de todos com a recuperação da empresa.
A gestão da companhia tem realizado uma diligência adicional para identificação dos custos da Tok&Stok, segundo o executivo, o que inclui despesas operacionais e outras não essenciais.
Os planos dos Dubrule
Na ocasião do anúncio de venda e nos meses subsequentes, os fundadores da Tok&Stok, por sua vez, não quiseram aderir ao acordo. Em entrevistas desde então, Régis e Ghislaine Dubrule expressaram que não aderiram por entender que não teriam voz ativa na gestão da nova empresa.
Os empresários tinham o direito de converter as ações da rede e a dívida que possuem com a mesma em ações da Mobly para entrar como minoritários, com assento no conselho de administração. Mas optaram por apresentar, três meses depois do closing, a proposta para tentar reaver o controle.
Leia mais: Mobly planeja levar Tok&Stok a marketplace e dividir área de lojas físicas, diz CEO
A disposição dos fundadores da Tok&Stok de buscar permanecer na empresa e definir o seu futuro ativamente não é exatamente uma novidade.
Apesar da venda do controle há quase treze anos , o casal não se afastou totalmente do negócio. Entre 2012 e 2017, Ghislaine seguiu no comando da Tok&Stok alinhada com o Carlyle. E ela voltou a atuar como CEO da companhia por pouco mais de um ano entre meados de 2023 e de 2024, quando a rede já estava em grave crise financeira depois da gestão de diferentes executivos de mercado.
Naquele momento, a dívida já estava na casa de R$ 450 milhões, houve pedido de falência por parte de credor, atrasos de pagamentos com fornecedores, ordens de despejo e queima de caixa.
O plano de recuperação executado por Ghislaine Dubrule na fase recente trouxe melhorias operacionais e financeiros em um ano, mas não o suficiente para reverter o quadro.
No plano de aquisição enviado à Mobly na noite da sexta-feira que antecedeu o Carnaval, os Dubrule expressaram intenção de adquirir até a totalidade do capital social, ou 122,76 milhões de ações, em volume que pode ser ajustado conforme conversão ou não de certas debêntures da Mobly. Mas o objetivo fundamental é comprar pelo menos 50% do capital mais uma ação, para assumir o controle.
Após reunião no meio do período do Carnaval, o conselho de administração da Mobly informou ao mercado que a oferta, se formalizada posteriormente nos termos apresentados, seria recusada.
Na ocasião, o conselho respondeu que acionistas que somavam 40,6% do capital concordaram que não havia interesse em vender suas ações, segundo fato relevante na Quarta-Feira de Cinzas. Os acionistas da Home24, que ficam na Europa, não se pronunciaram a respeito, até que um mês depois apresentaram a proposta da retirada das cláusulas citadas.
São esses atores que vão definir um novo capítulo na trajetória das duas empresas agora unificadas na assembléia geral de acionistas, sob a sombra de incertezas na direção dos negócios.
Leia também
Ele levou sua startup à bolsa, perdeu o controle e vendeu tudo. E conta a lição
Forever 21, em recuperação judicial, fecha lojas e se concentra nas vendas online
CEO da Tok&Stok confirma conversas com Mobly e diz que foco é gestão de caixa