Descriminalização de maconha para uso pessoal acelera novos negócios no Brasil

Decisão do STF de 2024 alimenta oportunidades dentro da lei de um mercado que inclui de acessórios para o consumo e o cultivo à educação, com potencial de R$ 500 milhões, segundo estimativas

Oportunidades dentro da lei têm potencial de gerar R$ 500 milhões, segundo a consultoria Kaya Mind (Foto: Eva Marie Uzcategui/Bloomberg)
Por Daniel Buarque
09 de Março, 2025 | 11:45 AM

Bloomberg Línea — A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal no Brasil, em junho do ano passado, consolidou um entendimento legal para formalizar um mercado milionário de negócios relacionados ao cultivo no Brasil.

A venda, o porte e o uso de maconha oficialmente continuam sendo consideradas atividades ilícitas (ainda que o Congresso possa eventualmente rediscutir as leis e criar novas proibições), mas a decisão da corte mais alta do país permite adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou portar até 40 gramas de maconha para consumo pessoal, ou cultivar até seis plantas fêmeas.

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Essa mudança na interpretação das leis, que coloca critérios para distinguir usuário de traficante, acelera a exploração de oportunidades para quem já vislumbra a criação de um novo - e imenso - mercado legal ligado à droga no país. Mais do que isso, permite que o mercado se movimente no contorno legítimo da produção e do consumo no Brasil.

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“Se somarmos tudo o que o mercado já movimenta legalmente em torno do lifestyle da cannabis, já passamos de R$ 500 milhões por ano”, estimou Thiago Dessena Cardoso, cofundador da consultoria Kaya Mind, especializada em estudos sobre a droga no Brasil, em entrevista à Bloomberg Línea.

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Segundo ele, o mercado de cannabis existe como reflexo de uma parte de um estilo de vida em expansão que vai além da planta e do seu consumo e que inclui acessórios, moda e cultura, a exemplo do que já acontece em outros países, dos Estados Unidos à Europa, como é o caso da Holanda.

“É uma cultura que se formou em todo o mundo e que vai além do consumo da cannabis, envolvendo gastos com roupas, bonés, seda para enrolar cigarros, equipamentos, estrutura para plantio e vários outros produtos totalmente legítimos para quem consome a cannabis”, disse.

É também um consumo “lateral” de produtos legais, que leva algumas empresas a faturar dezenas de milhões de reais, segundo ele.

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“O mercado ligado à cannabis saiu do submundo e da marginalização. Empresas que investem nisso estão crescendo três a quatro vezes por ano. Mas a maioria dos investidores ainda não presta atenção”, completou.

Mercado no Brasil

A Kaya Mind estima que cerca de 2,8 milhões de adultos no Brasil fazem uso regular de maconha. Essa estimativa foi feita com base em dados de pesquisas como o Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira da Fiocruz de 2017, pesquisas do Data Senado e do Instituto Datafolha, além de estudos primários da própria consultoria.

Itens como sedas, tabaco para enrolar, cuias e tesouras representam uma fatia significativa do mercado legal para esse público.

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“A Bem Bolado fatura R$ 40 milhões por ano vendendo apenas seda. Empresas que vendem estrutura para plantio doméstico também faturam milhões. Isso mostra como existe um mercado mesmo sem tocar na planta”, disse.

Danillo Coelho fundou uma empresa para vender produtos para quem cultiva cannabis em casa

É justamente com o objetivo de tirar a conversa sobre o mercado de cannabis da “bolha” de consumidores e entusiastas e apresentar essas oportunidades a um público mais amplo que a Kaya Mind produz estudos sobre o potencial econômico da maconha no Brasil.

Uma dessas pesquisas, lançada no final de 2024, é o Anuário de Mercado - Growshops, Headshops e Marcas, que apresenta dados estatísticos sobre o consumo de tabaco e maconha no país.

Ele analisa os tipos de negócios, a regulamentação dos produtos, o perfil do consumidor e o tamanho do mercado, incluindo projeções para o setor da maconha após a descriminalização do cultivo pessoal.

“Não adianta pregar para convertidos. Queremos falar para o mercado e passar uma mensagem do potencial de investimento, de ganhar dinheiro no médio prazo com atuação totalmente dentro da lei”, disse Cardoso.

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Impulso econômico

O estudo aponta que mercado de cannabis no Brasil é composto por uma rede de negócios que interagem entre si e atendem a diferentes públicos.

Há as growshops, focadas no cultivo, as headshops, que vendem acessórios para consumo, e as marcas que criam e distribuem produtos para esse mercado. Esses negócios, embora atuem em um ambiente em que ainda há incertezas legais, são importantes para esse segmento da economia.

Segundo a Kaya Mind, o mercado de maconha em si poderia significar uma movimentação anual de até R$ 11 bilhões no Brasil somente com a venda legal da droga, caso isso fosse permitido - como já acontece em 24 estados dos Estados Unidos, por exemplo.

Mesmo sem entrar nesse mérito, há um grande mercado que vai além do cultivo e da venda e que está legalizado. Relatórios da Kaya Mind projetam que o mercado brasileiro de cannabis regulamentada (incluindo o uso medicinal) tem potencial para gerar bilhões de reais e milhares de empregos.

Apesar de ainda enfrentar desafios legais e regulatórios, a Kaya Mind aponta que o mercado brasileiro ligado à cannabis apresenta um impacto econômico significativo, com potencial para crescimento. O setor abrange desde o cultivo e a produção até a venda de produtos e acessórios, envolvendo diversos atores.

Cultivo legal

Uma das oportunidades relacionadas a esse novo mercado está ligada ao cultivo doméstico legal de plantas de maconha. A decisão do STF deixou de enquadrar como crime ter até seis plantas fêmeas de cannabis, o que cria demanda por produtos que facilitem esse cultivo.

E a legislação permite a venda de acessórios para cultivo, sem que o vendedor seja responsável pelo uso que o consumidor fará dos produtos.

Assim atuam as chamadas growshops, estabelecimentos que vendem produtos e equipamentos para o cultivo de plantas de forma geral, mas com atenção especial à cannabis. O objetivo é atender à demanda de cultivadores, fornecendo informações, suporte, nutrientes e acessórios.

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Os produtos mais comuns incluem cabines de cultivo, fertilizantes, sistemas de iluminação e substratos. As growshops podem vender itens como kits de cultivo, sistemas de exaustão e automação, equipamentos de hidroponia e livros sobre cultivo.

As growshops enfrentam a concorrência de lojas de jardinagem e paisagismo, mas buscam se diferenciar com serviços de conhecimento especializado e planejamento personalizado.

Além da descriminalização determinada pelo STF, a regulamentação gradual e o uso medicinal e adulto da cannabis deve impulsionar esse mercado.

“Após a decisão do STF, o mercado de growshops ganha corpo. Hoje, ele ainda está em crescimento, mas sem uma grande formalização”, disse Cardoso.

Um caso já consolidado é o da Leds Indoor, especializada em produtos para a produção doméstica de plantas, com foco específico na cannabis.

A empresa surgiu em 2016 depois de o seu fundador, Danillo Coelho, enfrentar dificuldades para encontrar equipamentos que ajudassem nesse cultivo. Hoje, está avaliada em R$ 35 milhões, segundo ele.

“Comecei sozinho, sem veia empreendedora. Hoje temos uma empresa que fatura R$ 10 milhões por ano e que cresce mais de 100% anualmente”, disse à Bloomberg Línea. Segundo ele, a previsão é atingir um faturamento de R$ 80 milhões em 2027. A empresa atualmente tem 22 funcionários.

A Leds Indoor começou a funcionar informalmente e se tornou formal em 2018, com o foco inicial em iluminação para cultivo em ambientes fechados. De três produtos há sete anos, hoje oferece mais de 600, dos quais cem desenvolvidos internamente.

Segundo Coelho, a descriminalização do cultivo caseiro pela Justiça permite um grande crescimento desse mercado, pois em tese tira de muitas pessoas o medo de infringir a lei e aumenta a quantidade daquelas que buscam essa alternativa.

Ele disse acreditar que o mercado ainda tem muito espaço para crescer e que a decisão do STF sobre cultivo doméstico aumentou imediatamente a demanda por informações e equipamentos. “Na primeira semana após a votação, a busca por cultivo de cannabis aumentou 600% no Google”, disse.

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Educação

Além da venda de equipamentos, Coelho disse entender que há outra oportunidade no mercado ligada à educação das pessoas interessadas no cultivo em casa dentro que a Justiça permite.

Isso porque a cannabis não é uma planta simples, que pode ser cultivada em qualquer lugar e cuidada de qualquer forma, e requer cuidados especiais.

Ele criou outra empresa, a Reefer, que oferece cursos e consultorias para quem quer cultivar em casa, com aulas específicas para cada passo da produção doméstica legalizada.

“Entendemos que a necessidade de informação para essas pessoas é primordial”, disse. “As pessoas que querem cultivar [dentro da lei] precisam de um ponto de apoio. Já ajudamos muito por meio da Leds, mas achamos que era importante termos um braço educacional. Uma escola para o mercado canábico”, disse.

Tanto Cardoso quanto Coelho reforçaram o entendimento de que as oportunidades desse mercado já estão dadas antes mesmo de eventuais novas decisões do Congresso ou do STF.

“Muita gente quer entrar nos negócios somente quando houver uma [eventual] legalização, mas o mercado sem tocar na planta ja é gigantesco. Quem esperar a legalização vai perder espaço”, disse Coelho.

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Daniel Buarque

Daniel Buarque

É doutor em relações internacionais pelo King’s College London. Tem mais de 20 anos de experiência em veículos como Folha de S.Paulo e G1 e é autor de oito livros, incluindo 'Brazil’s international status and recognition as an emerging power', 'Brazil, um país do presente', 'O Brazil é um país sério?' e 'O Brasil voltou?'