Como um e-mail para Tim Cook deu início à batalha legal sobre o Apple Watch

Disputa por patente levou o relógio da Apple a ser banido dos EUA, prejudicando um negócio que gera cerca de US$ 17 bi em vendas anuais

O CEO da Apple, Tim Cook
Por Mark Gurman
27 de Dezembro, 2023 | 12:23 PM

Bloomberg — Por volta de 1h da manhã, horário da Califórnia, em 2013, um cientista enviou um e-mail ao CEO da Apple (AAPL), Tim Cook, com uma proposta irresistível.

“Eu acredito firmemente que podemos desenvolver a nova onda de tecnologia que tornará a Apple a marca número 1 no mercado médico, de fitness e bem-estar“, escreveu no e-mail, que mais tarde foi incluído em documentos jurídicos.

Cerca de 10 horas após a mensagem ter sido enviada, um recrutador da Apple entrou em contato. E semanas mais tarde, o engenheiro estava trabalhando na empresa de tecnologia em um relógio inteligente com sensores de saúde.

Uma série de atividades começou. Alguns meses depois na Apple, o funcionário pediu à empresa para arquivar cerca de uma dúzia de patentes relacionadas a sensores e algoritmos para determinar o nível de oxigênio no sangue de uma pessoa a partir de um dispositivo vestível.

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Mas ele não era um engenheiro qualquer. Ele havia sido o diretor técnico da Cercacor Laboratories, a empresa-irmã da Masimo, que conseguiu banir o Apple Watch nos Estados Unidos.

A decisão da Apple de contratar esse gênio técnico – um Ph.D. em engenharia de Stanford chamado Marcelo Lamego – é vista como a faísca que levou os advogados da Masimo a processarem a Apple.

Embora a fabricante do iPhone negue ter feito algo errado, a Masimo citou o roubo de funcionários como parte das alegações de que a Apple infringiu suas patentes.

A disputa culminou neste mês com a Apple tendo que retirar seus relógios mais recentes das lojas nos EUA, prejudicando um negócio que gera cerca de US$ 17 bilhões em vendas anuais. Uma liminar suspendeu temporariamente nesta quarta-feira (27) a proibição das vendas do Apple Watch.

A Masimo, uma fabricante de dispositivos médicos com sede em Irvine, Califórnia, argumenta que Lamego se apossou de seu ativo valioso – a capacidade de capturar de forma não invasiva e precisa o nível de oxigênio no sangue de uma pessoa – e o levou à Apple.

Essa característica, por fim, ajudou a transformar o relógio em um dispositivo de saúde, consolidando seu status como o produto mais vendido da indústria de dispositivos vestíveis.

Sede da Masimo, na Califórnia

Lamego ingressou na Masimo em 2003 como cientista de pesquisa antes de se tornar o diretor de tecnologia da Cercacor em 2006. A Cercacor era uma subsidiária da Masimo, e ambas as empresas são administradas pelo CEO Joe Kiani, que ajudou a inventar grande parte de sua tecnologia central.

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Advogados da Masimo dizem que Lamego não tinha conhecimento prévio sobre como desenvolver a característica de oxigênio no sangue (seus estudos anteriores foram sobre interfaces neurais em vez de sensores de saúde). Eles afirmam que ele aprendeu como construir a tecnologia nas empresas de Kiani e a entregou à Apple.

Lamego então deixou a Apple em julho de 2014, apenas alguns meses depois de entrar na empresa. A Masimo argumenta que ele saiu depois que a Apple obteve o que precisava.

A realidade, de acordo com o executivo de longa data da Apple, Steve Hotelling, é que Lamego simplesmente não se encaixava na empresa.

Ele entrava em conflito com os gerentes, exigia orçamentos de vários milhões de dólares e queria ter a capacidade de contratar seus próprios engenheiros sem aprovação, disse Hotelling em um depoimento que fez parte de uma batalha judicial entre as empresas. Depois de semanas de discussões, Lamego deixou a Apple.

O primeiro Apple Watch foi anunciado três meses depois, em setembro de 2014. Ele não tinha o sensor de oxigênio no sangue e em vez disso dependia de tecnologias mais básicas, como um leitor de pulso.

A Apple abordou Lamego pela primeira vez para se juntar à empresa cerca de um ano antes de seu e-mail para Cook. A aproximação aconteceu na época em que os executivos da Apple e da Masimo se encontraram em 2013, momento que se tornou outro ponto focal da disputa entre as duas empresas.

Lamego recusou-se a entrar na Apple na época, mas mudou de ideia depois que Kiani não o nomeou CTO da Masimo, argumentaram os advogados da empresa médica.

Quando a Apple se encontrou com a Masimo, ela procurava tecnologia e talento que pudessem reforçar seu trabalho no relógio. Na época, a Masimo acreditava que a Apple estava interessada em fazer um acordo.

A empresa alegou em um processo de 2020 que a Apple usou a reunião para aprender sobre sua tecnologia e preparar o caminho para contratar suas pessoas.

Além de Lamego, a Apple contratou o ex-diretor médico da Masimo e cerca de outros 20 funcionários, disse a empresa de dispositivos médicos. A Masimo não conseguiu convencer um júri de suas alegações este ano.

Embora o e-mail de Lamego tenha sido uma peça-chave de evidência para os advogados da Masimo, o esforço não avançou muito com o juiz depois que um engenheiro sênior da Apple testemunhou que o desenvolvimento do recurso de oxigênio no sangue começou no final de 2014 - após a saída de Lamego.

Além disso, o juiz rejeitou partes do caso relacionadas à prática da Apple de contratar funcionários da Masimo, afirmando que “recrutar ou contratar funcionários de outra empresa, inclusive de um concorrente, por si só não constitui meios impróprios.”

O juiz também rejeitou a ideia de que a Apple roubou segredos comerciais, e um júri ficou do lado da Apple por 6 a 1.

Depois de sua passagem pela Apple, Lamego acabou iniciando sua própria empresa, a True Wearables. Em 2016, ele lançou um dispositivo chamado Oxxiom, que ele chamou de o primeiro sensor de oxigênio no sangue contínuo e descartável do mundo.

A Masimo processou a startup e obteve uma ordem judicial impedindo a venda do produto. Lamego não respondeu aos pedidos de comentário.

Quando a Masimo entrou com sua ação inicial, a Apple ainda não havia lançado um sensor de oxigênio no sangue no mercado. Mas oito meses depois, o Apple Watch Series 6 foi lançado com o recurso - conhecido na indústria como oximetria de pulso - como sua nova adição principal.

Isso levou a Masimo a apresentar uma nova queixa na Comissão de Comércio Internacional dos EUA em 2021 alegando que o recurso infringia suas patentes.

A ITC concordou em outubro e ordenou que a Apple removesse os modelos infratores dos EUA, incluindo o atual Series 9 e Ultra 2.

Essa proibição entrou em vigor esta semana depois que a Casa Branca se recusou a intervir. A Apple afirmou discordar veementemente da decisão da ITC e está “tomando todas as medidas para devolver o Apple Watch Series 9 e o Apple Watch Ultra 2 aos clientes nos EUA o mais rápido possível.” Um representante da Masimo se recusou a comentar.

Oxigênio no sangue é frequentemente chamado de quinto sinal vital. Um nível adequado de saturação de oxigênio - a porcentagem de oxigênio flutuando no sangue de uma pessoa em comparação com o máximo que poderia ser - é um requisito para funções como respirar, se mover e pensar.

Há muito tempo é um dos primeiros diagnósticos quando um paciente chega a um hospital ou consultório médico.

E a medição se tornou fundamental no auge da pandemia de covid, quando os médicos afirmaram que uma leitura abaixo de 95% poderia sugerir que uma pessoa está com dificuldades para respirar devido ao vírus.

Evento de lançamento do Apple Wacth Series 6

A Apple argumenta que a Masimo a processou para eliminar a concorrência de seus próprios dispositivos vestíveis voltados para consumidores.

A Masimo lançou recentemente o W1, um smartwatch quadrado com uma série de sensores de saúde. E está planejando lançar em breve o relógio Freedom, que possui mais recursos de saúde e um design redondo e mais moderno.

Na tentativa de alcançar mais consumidores, a empresa adquiriu a Sound United, proprietária da fabricante de alto-falantes Bowers & Wilkins, por mais de US$ 1 bilhão no ano passado.

A Apple entrou com um contra-processo contra a Masimo em 2022, alegando que o W1 copiou o design do Apple Watch. “A Masimo copiou do Apple Watch e está se aproveitando do trabalho árduo da Apple”, disse a empresa.

Em uma entrevista à Bloomberg News este mês, Kiani disse que a Apple deveria ter agido de forma diferente.

“Eles não precisavam roubar nossas pessoas – poderíamos ter trabalhado com eles”, disse ele. “Esses caras foram pegos com a mão no pote de biscoitos e, em vez de ficarem envergonhados e fazerem o que é certo, estão culpando todo mundo e lutando com todo mundo.”

Kiani disse que os executivos da Apple já o chamaram de “Steve Jobs da área da saúde”.

“Talvez seja hora de eles pensarem de maneira diferente”, disse ele.

A Masimo é presença constante em hospitais. Seus equipamentos para monitoramento de oxigênio no sangue, controle sanguíneo e outras medidas são usados em mais de 200 milhões de pacientes por ano, segundo a empresa.

Contudo, parte de sua receita nas últimas duas décadas se deve a ações judiciais contra concorrentes de dispositivos médicos, incluindo a Royal Philips NV, que resultaram em acordos financeiros ou acordos de licenciamento.

O CEO da Masimo, Joe Kiani

Kiani emigrou do Irã quando tinha 9 anos e fundou a Masimo em 1989, cinco anos após o lançamento do Mac original. Embora sua empresa agora tenha milhares de funcionários em todo o mundo, uma avaliação de mercado de US$ 6 bilhões e receita anual de cerca de US$ 2 bilhões, Kiani diz que a Masimo começou como um azarão, assim como a Apple.

Ele diz que fez uma segunda hipoteca aos seus 20 anos para financiar o desenvolvimento da startup na garagem de sua casa. Embora já houvesse equipamento médico para monitorar o oxigênio no sangue, a inovação de Kiani foi rastreá-lo durante o movimento ou em pessoas com pulsos fracos – recursos importantes para dispositivos vestíveis de nicho.

Ele também é amigo do presidente Joe Biden, uma das pessoas que poderiam ter interrompido a proibição de venda do Apple Watch.

A Casa Branca tem a capacidade de vetar proibições de importação para os EUA, um poder que raramente é usado. Um caso anterior ocorreu em 2013, quando o presidente Barack Obama derrubou uma proibição de iPhones motivada por uma disputa de patentes com a Samsung Electronics.

Mas isso foi uma ação política mais fácil: envolvia escolher uma empresa americana em detrimento de uma concorrente sul-coreana. As sedes da Apple e da Masimo estão ambas na Califórnia.

O objetivo da Masimo, segundo pessoas próximas ao assunto, era que a ITC impusesse sua proibição no verão do hemisfério norte. Isso provavelmente teria levado a Apple a adiar o lançamento de seus novos modelos, que geralmente são anunciados em setembro, e teria prejudicado as vendas do período de festas.

Em vez disso, a proibição afetou apenas cerca de uma semana de vendas no trimestre de dezembro da Apple. Ela também se aplica apenas às lojas próprias da Apple; varejistas externos como a Best Buy ainda podem vender os relógios – pelo menos até que seu estoque acabe.

E a Apple acredita que está no caminho certo para resolver o problema. A empresa fez engenheiros trabalharem para mudar os algoritmos de software e a apresentação de seu aplicativo de oxigênio no sangue, contornando as alegações de Kiani.

Agora cabe à agência alfandegária dos EUA determinar se essas modificações são suficientes para permitir que os smartwatches voltem ao mercado. Uma decisão é esperada em 12 de janeiro.

A empresa também está tentando reverter a ordem da ITC no Tribunal de Apelações dos EUA para o Federal Circuit. Por sua vez, Kiani não acredita que uma solução de software resolva uma disputa que envolve patentes de hardware. “Não acho que isso possa funcionar”, disse ele.

De qualquer forma, Kiani e a Masimo foram mais longe do que qualquer outro antes deles. Muitas empresas alegaram que a Apple roubou sua tecnologia e contratou seus funcionários, levando-as à falência. Mas elas raramente conseguiram muita repercussão.

Um sinal adicional de sucesso para Kiani seria um acordo, que resultaria em um pagamento. O site da Masimo menciona todas as empresas que licenciam sua tecnologia e adicionar a Apple a essa lista seria uma vitória.

Isso também daria força de marketing à Masimo para promover seus próprios produtos. A Apple afirma ter realizado mediações com a Masimo e que espera fazer mais.

Em sua ação anterior, que terminou em júri dividido, a Masimo queria que a Apple pagasse mais de US$ 3 bilhões em danos. Kiani não está dizendo quanto dinheiro seria necessário para chegar a um acordo de licenciamento agora. Mas ele planeja insistir em uma concessão: “Deve haver um pedido de desculpas.”

Se isso não acontecer, as duas empresas devem voltar ao tribunal – novamente por causa de patentes – no final de outubro.

-- Atualização às 14h50 (horário de Brasília) para incluir que uma liminar suspendeu temporariamente a proibição das vendas do Apple Watch nesta quarta-feira (27).

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