Como este bilionário aproveitou a crise para erguer um império na Europa

Tcheco Daniel Kretinsky utiliza os recursos de seus negócios em energia para comprar empresas tradicionais em dificuldades, como o Casino, dono do GPA no Brasil, e a Atos

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Bloomberg — Daniel Kretinsky gosta de coisas que os outros descartam. O bilionário tcheco passou uma década montando um império que se estende de usinas de energia a empresas de varejo e mídia, em que a maioria das compras recentes tinha algo em comum: estavam em dificuldades financeiras.

Armado com um grande montante de dinheiro que o tornou um dos negociadores mais proeminentes da Europa, ele tem aproveitado o lucro recorde que seu negócio de energia está gerando para comprar empresas pressionadas por dívidas altas.

Além de fechar um acordo para obter o controle da problemática rede de supermercados francesa Casino Guichard Perrachon, dona do Grupo Pão de Açúcar (PCAR3) no Brasil, em um processo de reestruturação de vários bilhões de euros no mês passado, ele anunciou investimentos em setores tão diversos quanto tecnologia e publicação de livros.

O proprietário de 48 anos do maior conglomerado privado de energia da Europa tem um patrimônio líquido de cerca de US$ 8 bilhões, de acordo com o Bloomberg Billionaires Index, impulsionado principalmente por um ano recorde para as empresas de serviços públicos durante a crise energética do continente.

Sua principal empresa, a Energeticky a Prumyslovy Holding, sediada em Praga, teve receita de € 37 bilhões (US$ 40,1 bilhões) no ano passado, um salto quádruplo desde 2020. E espera continuar crescendo.

Isso está aumentando a montanha de dinheiro disponível para aquisições que Kretinsky tem feito, alimentando uma série de negócios de alto perfil nos últimos 12 meses - especialmente na França - que o colocaram sob os holofotes da elite empresarial e política do país.

Por anos, ele projetou a imagem de um empresário esquivo e, embora ainda mantenha sua vida privada protegida, começou a discutir seus investimentos de maneira mais aberta, falando com a mídia francesa durante o acordo com o Casino, por exemplo, para explicar seu interesse no negócio.

Kretinsky se recusou a comentar para esta reportagem da Bloomberg News.

O autoproclamado apaixonado pela França, que possui uma casa na rua em frente ao Palácio do Eliseu - a residência do presidente francês -, no mês passado garantiu seu maior prêmio no país até o momento.

Ele liderou um grupo de investidores que chegaram a um acordo para recapitalizar e obter controle sobre o Casino, afetado há anos por vendas estagnadas no altamente competitivo mercado de alimentos francês. O acordo de reestruturação, liderado por um dos veículos de investimento de Kretinsky, a EP Global Commerce, deve dar ao bilionário uma participação de cerca de 40% na varejista.

Menos de uma semana depois, outra empresa de propriedade de Kretinsky, a EP Equity Investment, disse que compraria o negócio de TI em dificuldades da Atos, chamado Tech Foundations, que enfrenta dificuldades para se adaptar à era da computação em nuvem.

Em junho, Kretinsky fechou um acordo para comprar a Editis, a segunda maior vendedora de livros na França, e em março aumentou suas participações na varejista Fnac Darty para 25%.

De fora, é difícil discernir uma estratégia por trás das aquisições, mas Kretinsky já disse anteriormente que, como parte de seus esforços de diversificação longe da energia, ele miraria setores que fornecem produtos e serviços essenciais, como infraestrutura, varejo e serviços postais.

Essa estratégia está se desenrolando enquanto muitos negócios na Europa ainda sofrem com o impacto de uma série de choques econômicos: de bloqueios da pandemia e interrupções nas cadeias de suprimentos a esforços dos bancos centrais para conter a alta inflação aumentando as taxas de juros. Isso tem pesado sobre os preços dos ativos, criando oportunidades para aquisições comparáveis ao ambiente de mercado no pós-crise financeira global, há mais de uma década.

O grupo também se mostrou oportunista, com o exemplo mais visível sendo o investimento em uma participação na rede de lojas de departamento Macy’s, dos EUA, no meio de 2020.

Embora inicialmente tenha apresentado a compra como um movimento estratégico, uma alta no preço das ações levou Kretinsky a vender a maior parte de suas ações da Macy’s com um lucro de cerca de US$ 50 milhões poucas semanas depois, segundo uma pessoa familiarizada com o negócio, que pediu para não ser nomeada porque não estava autorizada a falar publicamente sobre a transação.

Kretinsky já falou anteriormente sobre como desenvolveu uma afeição pela França durante sua infância, e sua biografia oficial diz que ele passou um semestre na Universidade de Bourgogne em Dijon durante seus estudos de direito no final dos anos 1990.

Ele agora é uma raridade, um acionista estrangeiro em algumas das mídias mais influentes do país. Entre outros ativos, ele é um acionista minoritário no jornal Le Monde e no canal de TV TF1 e também possui várias revistas, incluindo a Elle, o que lhe dá uma entrada no establishment francês.

O império empresarial de Kretinsky inclui várias unidades-chave, sendo a maior delas, a EPH, com ativos avaliados em pouco menos de € 31 bilhões no final do ano passado.

Embora esteja fazendo suas aquisições por meio de várias empresas, ele normalmente trabalha com uma equipe relativamente pequena na maioria de seus negócios, seja comprando uma usina de energia ou adquirindo um gigante do varejo, de acordo com pessoas que cooperaram com a empresa e estão familiarizadas com seu funcionamento interno.

O grupo principal de acordos tem no máximo 50 pessoas que realizam a maioria dos cálculos e das análises de negócios que conglomerados tradicionalmente terceirizam para bancos de investimento e empresas de consultoria, disseram as pessoas, que falaram sob condição de anonimato para discutir relações empresariais.

O círculo restrito dos colaboradores mais próximos do bilionário inclui o CFO Pavel Horsky, que está na empresa desde sua fundação em 2009 e possui um mestrado em matemática, tendo sido anteriormente consultor sênior de risco corporativo no Royal Bank of Scotland. Um grupo dos principais gestores de Kretinsky também possui uma participação minoritária em suas empresas.

Embora a mídia francesa e alguns membros da elite do país inicialmente temessem que o empresário tcheco tivesse laços com a Rússia e o vissem com suspeita, ele se tornou um membro respeitável do establishment em apenas alguns anos, de acordo com Jerome Lefilliatre, que encontrou Kretinsky três vezes e publicou um livro sobre ele em 2020.

Uma das empresas de Kretinsky opera um gasoduto na Eslováquia que transporta gás natural para clientes na União Europeia, mas ele rejeita qualquer ligação com a economia russa.

O fato de Kretinsky ter conseguido garantir o acordo para o Casino, uma das marcas mais conhecidas da França, ilustra quão pouca resistência ele enfrentou, disse Lefilliatre.

O país já se opôs anteriormente a um investidor não francês assumindo o controle de uma cadeia de supermercados na tentativa da Alimentation Couche-Tard, do Canadá, de comprar o rival do Casino, o Carrefour, há mais de dois anos.

“As pessoas rapidamente perceberam que ele é muito europeu”, disse Lefilliatre, referindo-se ao apoio declarado de Kretinsky aos valores democráticos.

Ele lembrou como o bilionário conheceu muitos dos principais empresários e figuras políticas da França em seu hotel favorito em Paris, o Le Meurice, um cinco estrelas. “Ele teve sucesso em tudo o que tentou, incluindo na construção de sua reputação na França.”

Kretinsky começou nos negócios em 1999 na empresa de investimento privado J&T, nomeada em homenagem a seus fundadores, Ivan Jakabovic e Patrik Tkac, em Praga.

Falando para um grupo de estudantes mais de 15 anos depois, Kretinsky disse que ganhava cerca de US$ 1.000 por mês. Ele também lembrou que seu primeiro grande bônus financeiro veio cerca de sete meses depois, quando recebeu um milhão de coroas - cerca de US$ 45.000 na taxa de câmbio atual - por vencer um processo judicial para a empresa.

Dentro de uma década, ele formou o grupo de energia EPH - em que inicialmente detinha uma participação minoritária - com o apoio de parceiros da J&T e do falecido bilionário tcheco Petr Kellner.

Por meio de aquisições, ele criou um conglomerado com mais de 70 empresas atuando em nove países e indústrias, incluindo produção e distribuição de eletricidade, transmissão de gás natural, armazenamento e fornecimento, bem como comércio e logística.

Após a morte de Kellner em um acidente de helicóptero em 2021, Kretinsky se tornou membro de um pequeno grupo que aconselha seus herdeiros, que possuem o family office mais rico do Leste Europeu.

Kellner vendeu suas ações de volta para a EPH em 2014, e mudanças subsequentes na estrutura de propriedade da empresa levaram Kretinsky a obter uma participação controladora, enquanto seu parceiro de investimento, Tkac, ficou com uma participação minoritária.

A base da riqueza de Kretinsky veio com uma aposta há mais de uma década de que a Europa levaria mais tempo para se afastar dos combustíveis fósseis do que sua estratégia verde previa.

A EPH adquiriu ativos que as empresas de serviços públicos de capital aberto foram obrigadas a vender, à medida que os bancos, cada vez mais pressionados a abordar preocupações ambientais, sociais e de governança, restringiam o financiamento com base em padrões ESG.

Essa estratégia gerou críticas de organizações ambientais, que reclamaram da escassa fiscalização das concessionárias privadas de propriedades de emissões de carbono.

A empresa de Kretinsky disse que deseja investir € 10 bilhões em energias renováveis, em um plano que inclui a construção de novas usinas de energia a gás, que eventualmente seriam convertidas em produção de eletricidade baseada em hidrogênio. A visão da empresa é que a transição para a energia verde deve ocorrer enquanto se garante eletricidade acessível para todos os consumidores.

“Temos a intenção de fazer a transição para o hidrogênio, distribuí-lo e armazená-lo e temos a intenção de usar e queimar o hidrogênio para gerar energia em um futuro relativamente próximo”, disse Gary Mazzotti, CEO da unidade EP Infrastructure da EPH, em uma teleconferência de resultados em maio.

O plano de investir em usinas a gás, que serão então “preparadas para o hidrogênio”, é uma extensão do modelo de negócios baseado em combustíveis fósseis, dado que atualmente não há hidrogênio verde, infraestrutura correspondente nem quantidades suficientes de energia renovável para produzir o hidrogênio, de acordo com Claudia Kemfert, professora de economia de energia no instituto de pesquisa DIW em Berlim.

“Em vez disso, é descrito um modelo futuro que só pode se tornar realista se a empresa mudar completamente suas práticas comerciais”, disse ela.

Enquanto diversificavam os negócios para além do segmento de energia, Kretinsky e Tkac adquiriram juntos participações em diversos setores na Europa.

Suas participações incluem ações na varejista e atacadista alemã Metro, no britânicos grupo de supermercado J Sainsbury, na International Distributions Services, no Royal Mail e na americana Foot Locker. Como um ávido fã de futebol, o bilionário também é dono do clube tcheco Sparta Praga e é um investidor minoritário no tradicional West Ham United, da Premier League inglesa.

A sede de sua empresa é uma casa em estilo Art Nouveau em uma parte exclusiva do centro de Praga. A avenida arborizada, chamada Paris Street, é cercada por boutiques de marcas de luxo, incluindo as francesas Louis Vuitton, Dior e Hermes.

Kretinsky nasceu na segunda maior cidade tcheca, Brno, onde estudou direito na Universidade Masaryk.

Segundo a mídia local, seu pai é professor de ciência da computação na Universidade Masaryk e sua mãe é advogada e atuou como juíza do Tribunal Constitucional.

Embora tenha se mantido afastado da política tcheca, sua empresa se envolveu em uma rara disputa pública com o governo sobre o imposto extraordinário sobre a indústria de energia.

No ano passado, a EPH disse que transferiria seus negócios de comércio de commodities para o exterior, argumentando que a unidade gera a maior parte de seu lucro fora da República Tcheca e sujeitar a unidade ao imposto local era “completamente sem sentido”.

A empresa posteriormente disse que transferiu parte dessas operações para a Suíça e o Reino Unido, mas que manteve uma grande parte dos negócios na República Tcheca.

Preocupações de políticos na França

Alguns de seus negócios recentes também atraíram escrutínio na França.

Em julho, dezenas de parlamentares do partido conservador e geralmente pró-negócios Republicanos publicaram uma carta conjunta para expressar preocupação de que a propriedade da Atos, que trabalha para o exército e desenvolve capacidades de supercomputação, pudesse ficar fora do controle francês.

“A possibilidade de um player estrangeiro tão poderoso se aproximar de nossas capacidades militares ultra-sensíveis atrai toda a nossa atenção”, escreveram os parlamentares no artigo, apontando para um “risco significativo” de interferência estrangeira nos sistemas de defesa soberanos cruciais.

Um porta-voz de Kretinsky respondeu que ele não aumentará sua participação nos negócios de big data e cibersegurança da Atos SE, chamado Eviden, acima de 7,5% e não terá um “papel ativo” na empresa.

Houve também políticos que enfatizaram o impacto positivo de seu dinheiro na economia francesa.

“Não se pode ser muito exigente se quiser atrair investimento estrangeiro para a França”, disse Christophe Marion, parlamentar e membro do partido Renascimento, o mesmo do presidente francês Emmanuel Macron. “Afinal, Kretinsky não é americano nem chinês. Estamos falando de capital europeu.”

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