Bloomberg — A decisão da Sanofi de vender seu negócio de medicamentos sem prescrição a uma empresa americana voltada a aquisições se transformou em uma batalha “suja” com repreensões públicas e discórdia política.
A venda, pela farmacêutica francesa de alcance global, do controle acionário de sua unidade Opella, antes conhecida como Sanofi CHC (Consumer Healthcare) ao gigante financeiro americano Clayton Dubilier & Rice (CD&R) por 16 bilhões de euros (US$ 17,3 bilhões) foi selada no fim de outubro.
A decisão pôs fim a uma campanha extraordinariamente feroz - travada em público e em particular - pela rival PAI Partners, com sede em Paris, que se recusou a aceitar que havia perdido e tentou anular a transação, o que provocou uma resposta rigorosa do outro lado.
O drama significa que a maior aquisição da Europa neste ano envolvia sobre mais do que apenas negócios ou prestígio. A decisão da Sanofi desencadeou críticas em todo o cenário político fragmentado da França e até fez com que o partido pró-negócios do presidente Emmanuel Macron expressasse preocupação.
Quando alguns advisers da PAI tentaram usar suas conexões políticas e midiáticas para atrapalhar o negócio, outros envolvidos no processo compararam isso a uma campanha de “terra arrasada”, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto que falaram à Bloomberg News - palavras duras até mesmo para os negociadores mais implacáveis.
Esforços de lobby incluíram visitas e ligações para autoridades do governo e políticos locais a fim de gerar oposição, sugerindo que o acordo com uma empresa americana ameaçava empregos e a fabricação de medicamentos no país, disseram as fontes.
“Já vi muitas guerras por negócios igualmente sangrentas e ferozes, mas essa foi aquela em que a fúria foi mais visível para o mundo exterior”, disse Jean-Baptiste Wautier, que foi investidor de private equity por mais de duas décadas e agora leciona na universidade francesa Sciences Po.
“Não me lembro de nada comparável - é a visibilidade desse negócio combinada com a tensão política que não tem precedentes.”
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Disputa pública
A CD&R foi forçada a negar publicamente as insinuações de que havia forçado a corrida a seu favor ao prometer pacotes de pagamento exorbitantes para a diretoria da Opella.
A Sanofi também rejeitou a ideia de que Gilles Schnepp - um dos assessores operacionais da empresa de aquisição dos EUA que é membro do conselho da Sanofi desde 2020 - apresentasse um conflito de interesses. Schnepp se recusou a participar desde o início e não esteve em nenhuma reunião relacionada, disse a Sanofi em um comunicado.
Em determinado momento, a exasperação da Sanofi foi tamanha que ela discutiu o “congelamento” do trabalho de alguns assessores da PAI em negócios futuros, de acordo com pessoas com conhecimento do assunto.
A CD&R finalmente venceu a batalha na segunda-feira (21), depois de concordar em proteger empregos, investimentos e produção locais. Ela também permitiu que a empresa estatal de investimentos Bpifrance comprasse uma participação de até 2% na Opella e assumisse um assento em seu conselho.
A transação proporciona à CD&R o controle de um grande negócio gerador de caixa que pode servir como plataforma para uma maior expansão - e encerra uma busca de anos por uma aquisição europeia de grande sucesso.
Para a PAI, por outro lado, trata-se de uma oportunidade perdida de fechar um negócio que definiria uma franquia e que teria sido classificado como o maior de sua história.
Bastidores raramente expostos
A rara briga pública entre os pretendentes oferece um vislumbre do mundo, muitas vezes opaco, das negociações de M&A, em que empresas e seus assessores financeiros, jurídicos e de comunicação usam sua influência e suas conexões para ganhar uma transação de vários bilhões de euros - bem como os honorários e o aumento da reputação que a acompanham.
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A transação também colocou o negociador da Centerview Partners, Matthieu Pigasse - o principal assessor da PAI - contra os seus pares da CD&R na Lazard, cujas operações de banco de investimento na França são lideradas por seu ex-colega Jean-Louis Girodolle. O desenrolar do caso mostra até onde empresas preteridas em um M&A vão para tentar salvar um negócio.
Esta reportagem da Bloomberg News foi escrita com base em entrevistas com mais de uma dúzia de pessoas da Sanofi, de empresas de aquisição e seus assessores, que pediram para não serem identificados devido à natureza sensível das negociações. Os representantes da Sanofi, da CD&R e da PAI se recusaram a comentar os detalhes do processo de licitação.
Venda anunciada
Quando o CEO da Sanofi, Paul Hudson, anunciou no ano passado os planos de separar a divisão, isso foi visto como algo em linha com o exemplo de outras grandes empresas farmacêuticas que separaram unidades de saúde do consumidor.
É uma lista que inclui GSK, Novartis, Pfizer e Johnson & Johnson, à medida que o investimento na busca de medicamentos com terapias inovadoras tem sido priorizado.
Inicialmente, a empresa francesa preferiu uma listagem em bolsa para a unidade. Mas, à medida que as negociações avançavam com alguns dos maiores fundos voltados para aquisições, ficou claro para a empresa farmacêutica que uma possível venda do negócio - codinome Platinum pelos chefes da Sanofi - era viável.
No início de outubro deste ano, a Sanofi havia reduzido a lista de compradores para a CD&R e a PAI, depois que outros pretendentes se recusaram a aceitar o aumento dos valuations para o negócio e estava preocupados com possíveis riscos políticos e de litígio.
Depois de várias solicitações de revisão das propostas dos dois concorrentes restantes, que se mantiveram lado a lado em termos de preço, a decisão final foi tomada em uma reunião da diretoria realizada em segredo no dia 10 de outubro.
O presidente do conselho da Sanofi, Frederic Oudea, informou um pequeno círculo sobre a decisão, incluindo David Novak, copresidente da CD&R, e Frederic Stevenin, sócio-gerente da PAI, de acordo com pessoas com conhecimento do assunto que falaram à Bloomberg News.
Enquanto isso, um exército de assessores financeiros, jurídicos e de comunicação ficou à espera de que a “fumaça branca” saísse da reunião do conselho.
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A CD&R trabalhou com a Lazard e o Citigroup, enquanto a PAI contou com apoio do Centerview e do JPMorgan Chase & Co.
Mesmo alguns players próximos da Sanofi - que incluem Rothschild, Bank of America, BNP Paribas, Goldman Sachs Group e Morgan Stanley - não souberam de imediato que uma decisão havia sido tomada.
Então, às 22h05, horário local, a Bloomberg News informou que a CD&R estava próxima de um acordo. Um assessor da CD&R ficou com os olhos marejados de alegria quando um jornalista lhe disse que sua empresa havia vencido.
Do outro lado, alguns membros da PAI ficaram incrédulos com o fato de sua oferta ter fracassado quando souberam da notícia de última hora.
O fabricante francês de medicamentos anunciou formalmente a CD&R como seu parceiro escolhido na manhã de sexta-feira, 11 de outubro, antes da abertura dos mercados em Paris.
Mais importante que ‘Emily in Paris’
O verdadeiro drama estava apenas no começo. Nos bastidores, a frustração no campo da PAI aumentou, o que acabou se traduzindo em uma tentativa, de última hora, de reverter a decisão da Sanofi.
Isso foi recebido com uma ação de retaguarda igualmente vigorosa do grupo farmacêutico para justificar sua decisão, incluindo uma entrevista de Oudea ao jornal francês Les Echos para defender o acordo.
Dado que os políticos já haviam levantado preocupações no início do processo de venda, não demorou muito para mexer no “vespeiro.
O analgésico Doliprane, à base de paracetamol, da Opella, está no armário de remédios de quase todos os lares franceses, tão onipresente quanto o Tylenol nos EUA.
O grupo farmacêutico também emprega cerca de 19.000 pessoas na França, o que fez com que ambos os pretendentes se esforçassem para apresentar seu caso ao governo.
A escolha inicial da Sanofi pelos norte-americanos provocou uma discussão política sobre se o acordo ameaçaria a soberania francesa sobre a medicina e tirou um pouco do brilho da transação para um governo interessado em atrair investimentos estrangeiros.
Mais de 60 parlamentares, liderados por Charles Rodwell, membro do partido pró-negócios do presidente Emmanuel Macron, publicaram uma carta em 11 de outubro dizendo que a venda constituía um risco para a segurança nacional e pediram ao governo que garantisse a produção e o fornecimento franceses do Doliprane.
Alguns políticos foram além. O presidente do partido de extrema-direita Reunião Nacional, de Marine Le Pen, Jordan Bardella, atacou o acordo dizendo que “a França continua sendo vendida em fatias”.
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O chefe do Partido Socialista, Olivier Faure, disse à rádio France Inter, em 13 de outubro, que a venda da Opella foi um “escândalo” e levantou a perspectiva de conflitos em caso de escassez de medicamentos: “você sabe muito bem que o governo americano pode pedir prioridade para os cidadãos americanos”.
Faure pediu a Macron que “garanta que Doliprane permaneça na França” em vez de se preocupar com a permanência de Emily in Paris, uma referência ao desejo do presidente de impedir que a popular personagem de série da Netflix se mude para a Itália.
Negócios e política
Não é a primeira vez que um deal de negócios na França acaba envolvendo a política.
Macron - muitas vezes forçado a navegar entre sua ambição emblemática de tornar a França um paraíso de negócios e os crescentes apelos populistas para proteger a soberania industrial - não tem sido tímido em intervir em aquisições estrangeiras.
Seu governo inviabilizou uma fusão entre a montadora francesa Renault e a italiana Fiat em 2019, embora tenha se entusiasmado com um acordo semelhante anunciado no final daquele ano entre a Fiat e o Grupo PSA, da Peugeot e da Citroën.
Em seguida, suspendeu a aquisição da cadeia de supermercados francesa Carrefour pela canadense Alimentation Couche-Tard em 2021. A venda da fabricante francesa de medicamentos genéricos Biogaran para investidores internacionais fracassou neste verão no hemisfério norte em meio à incerteza política.
Os riscos eram altos o suficiente para o governo Macron, que revelou em 14 de outubro que estava avaliando opções para o negócio, incluindo a aquisição de uma participação pública na divisão de saúde para o consumidor da Sanofi para, segundo o discurso, proteger os interesses domésticos.
À medida que o tom político aumentava, a CD&R começou a elaborar um pacote de garantias para empregos e fábricas locais para proteger as operações da Opella na França, com o objetivo de fechar rapidamente o negócio.
Reação da PAI vazada à imprensa
Com a janela de oportunidade para a PAI começando a se fechar, a empresa francesa de private equity fez sua jogada mais ousada até então e apresentou uma oferta não solicitada e melhorada para a Opella, que veio à tona em uma reportagem de 17 de outubro no jornal Le Figaro.
A empresa de aquisições aumentou sua oferta em cerca de 200 milhões de euros, o que foi apresentado como uma resposta às demandas públicas e políticas.
A PAI se comprometeu a manter a sede da operação e outras instalações importantes na França e disse que protegeria os empregos investindo pelo menos 60 milhões de euros em cinco anos.
A medida provocou uma repreensão velada da Sanofi, que até então havia evitado qualquer crítica pública. Em uma declaração enviada por e-mail, a empresa disse que era "surpreendente que uma 'oferta revisada'" fosse divulgada pela mídia "fora do prazo e do processo de governança que enquadrou a decisão".
Nos bastidores, a raiva era crescente.
Algumas pessoas próximas à Sanofi e à CD&R consideraram a oferta não solicitada como uma ação agressiva. Outros questionaram a validade do aumento da oferta da PAI, bem como o financiamento, e disseram que o investimento adicional era suficiente apenas para manter as luzes acesas em uma de suas fábricas.
Nesse estágio, alguns membros da PAI começaram a perceber que a oferta independente não estava ganhando força e que poderia ser mais realista esperar por uma participação minoritária ao lado da CD&R, disseram à Bloomberg News pessoas com conhecimento do assunto.
Mas suas pontes com a Sanofi já haviam sido em grande parte “queimadas, como ilustrado pela declaração concisa da farmacêutica.
No final do domingo, o governo francês garantiu compromissos sobre empregos locais e financiamento futuro, e a empresa estatal de investimentos Bpifrance concordou em comprar uma participação no braço OTC.
O Ministro das Finanças, Antoine Armand, anunciou o acordo no dia X, dizendo que os requisitos de emprego, produção e investimento para medicamentos essenciais no país “serão respeitados”. No dia seguinte, em uma coletiva de imprensa organizada às pressas, ele disse que o acordo prevê dezenas de milhões de euros em possíveis multas por violação dos termos.
A participação do governo - embora não seja ideal para uma transação de private equity - pelo menos atendeu à principal oposição política. Apesar de seus esforços hercúleos com o adoçante pós-decisão, a PAI foi totalmente excluída.
Raízes francesas em vão
Para o potencial comprador preterido, as possíveis repercussões vão além de um único negócio.
A PAI poderia ter usado sua maior aquisição de todos os tempos como prova de que havia se tornado um concorrente formidável de empresas de investimento de primeira linha, como a KKR & Co., a Blackstone e a CVC Capital Partners Plc.
A aquisição também teria servido como um novo exemplo de suas habilidades de carveout e uma ferramenta de marketing útil para ajudá-la a levantar mais dinheiro do que seu último fundo bem-sucedido em meio a um ambiente difícil para a indústria de private equity.
Mas um advisor da Sanofi disse que a PAI havia se tornado complacente, presumindo que suas raízes francesas a fariam levar a melhor. Outros tentaram desacreditá-la, dizendo que a oferta não era verdadeiramente francesa, mas de um consórcio estrangeiro, dado seu apoio financeiro da Abu Dhabi Investment Authority e do GIC, fundo soberano de Singapura.
A CD&R - que supera os cerca de 29 bilhões de euros em ativos da PAI - tem experiência na compra de empresas e na sua consolidação como negócios independentes.
A empresa, que tem buscado grandes aquisições depois de levantar um fundo recorde para esse fim de US$ 26 bilhões no ano passado, foi atraída pelo negócio de cuidados com a saúde do consumidor da Sanofi devido à natureza estável e geradora de caixa do setor.
Apesar das garantias exigidas pelo Estado francês, o novo proprietário ainda vê um potencial de crescimento significativo.
O acordo com a Sanofi também pode ajudar a CD&R a superar o impacto de sua aquisição em 2021 da rede britânica Wm Morrison Supermarkets, em que os bancos que lideraram o deal acabaram sobrecarregados com bilhões de euros em dívidas das quais tiveram dificuldade para se livrar.
‘Oferta vencedora’ dos EUA
Então, por que a Sanofi escolheu a oferta da CD&R em vez da proposta indiscutivelmente mais segura de uma solução francesa?
Além de ofertas quase iguais antes do prazo final, os americanos prometeram mais poder de fogo para ajudar a empresa a se expandir e fazer aquisições nos EUA, que já é o maior mercado da Opella, responsável por mais de 20% da receita, disseram pessoas com conhecimento do assunto.
A experiência da CD&R no mercado francês, graças à sua participação na varejista de móveis domésticos Conforama, foi uma vantagem adicional.
Audrey Duval, diretora da Sanofi França, foi questionada por legisladores em uma audiência na Assembleia Nacional. Ela insistiu que não havia “nenhum risco para empregos, locais de produção e pesquisa” no país.
No final, a venda da Opella pode ser lembrada mais pelo tumulto político e pela luta obstinada do que pelo seu enorme tamanho. Para muitos consultores envolvidos, foi outro exemplo de um licitante que fez de tudo para salvar um negócio, o que alguns meios de comunicação rotularam de “síndrome do perdedor sofrido”.
Para outros, isso evocou lembranças de duas décadas atrás, quando a França declarou o iogurte um ativo estratégico nacional diante do interesse indesejado da PepsiCo na Danone.
"Essa confusão criou um precedente importante na França, porque as pessoas se lembrarão dela quando o próximo grande negócio acontecer", disse Wautier, da Sciences Po. "Isso não é bom para o país."
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-- Com a colaboração de Ashleigh Furlong e Ruth David.
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