Chegada da BYD alimenta a esperança em Camaçari para reativar a fábrica da Ford

Fabricante chinesa de carros elétricos, que promete se instalar no Brasil, se tornou a maior aposta do governo brasileiro para reaquecer o polo industrial na Bahia e a indústria do país

Vista aérea da antiga fábrica da Ford, em Camaçari (BA)
Por Simone Preissler Iglesias - Leonardo Lara
10 de Agosto, 2023 | 05:00 AM

Bloomberg — Na costa da Bahia, o vasto estacionamento próximo à Avenida Henry Ford está vazio. Trabalhadores costumavam lotar esses espaços, ao lado de uma fábrica da Ford (F) que ocupa 4,7 quilômetros quadrados - uma área maior do que o Central Park de Nova York. Em um dia de semana recente, apenas um carro de segurança patrulhava o local e era o único sinal de vida.

Allison Barreto Sousa, técnico de manutenção da Ford por quase duas décadas, lembra-se de quando a empresa decidiu fechar a fábrica há dois anos, juntamente com todas as suas operações no Brasil. A Ford fez um último pedido: Sousa poderia se juntar a uma equipe de 10 pessoas para realizar os últimos trabalhos industriais? Eles desmontariam, peça por peça, o mesmo equipamento que haviam instalado e mantido, para que pudesse ser embalado e enviado.

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Sousa começou o trabalho, mas as lembranças dos colegas inundaram sua mente. Ele simplesmente não conseguia fazer isso. “Quando me casei, estava na Ford. Quando meus filhos nasceram, estava na Ford - todas as minhas boas lembranças estão de alguma forma ligadas à Ford”, diz Sousa, agora com 39 anos. Mas então, “do nada, veio o silêncio. Pedi para não voltar.”

Hoje, Sousa espera poder fazê-lo, mas não graças à Ford. O novo poder econômico na cidade é a China - e sua maior fabricante de veículos elétricos, a BYD. Essas iniciais significam “Build Your Dreams” (Construa Seus Sonhos), uma frase que reflete muito bem as esperanças de Sousa e centenas de seus antigos colegas desempregados. A BYD finaliza as negociações com a Ford para comprar a fábrica desativada em Camaçari, a cerca de 50 quilômetros ao norte de Salvador. A Ford diz que as negociações estão em andamento. Quando a fábrica abrir, o que é esperado para ocorrer ainda este ano, será a operação de veículos elétricos mais extensa da BYD fora da Ásia.

Allison Barreto Sousa, ex-funcionário da Ford

A ressurreição da antiga fábrica da Ford representa as grandes ambições industriais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Assim como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, Lula sonha em estimular um renascimento da manufatura. Ambos os líderes estão ansiosos para fornecer empregos para trabalhadores que possam sustentar vidas de classe média, cumprindo promessas de campanha. Mas há uma diferença essencial - e, para os EUA, desconcertante: Biden visa manter uma vantagem sobre a China em tecnologias-chave. Lula, um esquerdista que assumiu o cargo em janeiro, está buscando a China como benfeitora do país.

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Os Estados Unidos desempenharam por muito tempo esse papel em mercados emergentes como o Brasil e agora estão ameaçados com uma perda de influência ao redor do mundo. A China está fazendo investimentos relacionados a veículos elétricos no Chile e na Argentina, além do Brasil; construindo fundições e fábricas de baterias na Indonésia; e explorando lítio na África.

As relações com a China atingiram um ponto baixo durante o governo de Jair Bolsonaro. Em março, apenas dois meses após assumir o cargo, Lula visitou o presidente chinês Xi Jinping, buscando uma aproximação. Lá, ele pessoalmente fez lobby com o CEO da BYD, Wang Chuan-Fu, para reabrir a antiga fábrica da Ford.

Lula considera Pequim capaz de ajudar de maneiras que Washington não pode ou não quer. O Congresso dos EUA pode ser hostil à ajuda externa direta, então o governo só pode incentivar as empresas a investir por meio de incentivos fiscais e políticas comerciais. A China mantém um controle rígido sobre as empresas privadas, exercendo influência para alinhar mais facilmente suas decisões com as prioridades nacionais.

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Xi prometeu ajuda da China, assinando compromissos de investimento de US$ 10 bilhões após se encontrar com Lula. Autoridades dos EUA tinham reservas quanto à atitude acrítica de Lula em relação a Xi. Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, foi enviada ao Brasil em maio para reparar laços desgastados.

No mês seguinte, Lula se encontrou com Stella Li, vice-presidente global da BYD. “Estamos super impressionados com Lula”, disse Li depois. “Ele tem uma visão: ele realmente quer que a BYD traga inovação, tecnologia avançada para cá, para construir manufatura.” O Brasil “é o país em que confiamos, e este é o governo em que confiamos.”

Renovação da indústria

O Brasil tem muito a recuperar. A indústria agora representa cerca de um quarto do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo de quase metade em seu auge em 1985. Lytha Spíndola, chefe de desenvolvimento industrial e economia da Confederação Nacional da Indústria do Brasil (CNI), culpa um sistema tributário caótico e hostil e uma infraestrutura ruim e cara. Uallace Moreira Lima, secretário de desenvolvimento industrial e inovação do Brasil, diz que o país não se preparou para o futuro: “A Europa e os Estados Unidos desindustrializaram, mas eles dominam essas cadeias de indústria complexas, o que não é o caso no Brasil”.

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Lula, de 77 anos, tem uma afinidade especial com a indústria automobilística. Ele liderou um sindicato de metalúrgicos nas fábricas de automóveis de São Paulo nos anos 70. Durante um discurso em junho na abertura de uma fábrica de ônibus em São Bernardo do Campo, ele prometeu um retorno ao que ele considera dias melhores para a manufatura do país: “Cabe ao Estado garantir a sobrevivência da indústria brasileira para que um dia possamos ser competitivos no exterior”.

Participação da indústria no PIB

A Ford liderou o avanço quando as primeiras montadoras chegaram ao Brasil há mais de 100 anos. A empresa inicialmente importava o Modelo T em forma de kit dos EUA e os montava localmente. A General Motors e a Volkswagen logo abriram unidades no país.

A maioria das empresas se estabeleceu em São Bernardo do Campo, no meio do caminho entre São Paulo e o Porto de Santos. A cidade se tornou a Detroit do país, bem como o berço do movimento trabalhista brasileiro. Nos anos 70, a indústria se espalhou para outras regiões, seguindo um caminho semelhante ao da indústria automobilística nos EUA, onde empresas estrangeiras abriram fábricas em todo o Sul a partir dos anos 80.

Hoje, o Brasil é o 8º maior produtor de carros do mundo. O país tende a produzir modelos econômicos voltados para o mercado interno e para outros mercados em desenvolvimento - no caso da Ford, os subcompactos Fiesta e Ka, que foram descontinuados, e um mini SUV chamado EcoSport. Em 2001, a Ford abriu a fábrica na Bahia que pode passar agora para a mão dos chineses.

Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia, espera muito da estratégia de Lula. Uma foto dele abraçando o presidente domina a parede de seu escritório em Salvador. Pendurados nas proximidades estão dois cocares de penas cuja paleta de cores branca, verde, azul e amarela se destaca em um prédio governamental. Eles o lembram de suas origens. Filho de um vaqueiro e uma costureira, ele venceu as eleições pela primeira vez no ano passado. Aos 58 anos, ele é um dos poucos indígenas brasileiros a ser governador de um estado, motivo de orgulho para outro grupo historicamente desfavorecido cuja cultura e famílias há muito se entrelaçaram com as de pessoas negras.

Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia

Uma estrela em ascensão no Partido dos Trabalhadores (PT), Rodrigues ajudou a liderar as negociações com os chineses para a fábrica da BYD. Ele calcula que os investimentos em veículos elétricos e outros da empresa possam criar 10.000 empregos em seu estado.

A eleição de Lula “nos ajudou muito a expandir possibilidades com o governo e as empresas chinesas”, diz ele. As expectativas são altas, pois “desenvolvemos confiança - confiança financeira, confiança legal, confiança política - que investindo no Brasil, especialmente na Bahia, nossos acordos serão cumpridos”.

Os investimentos chineses em Salvador e arredores se destacam como um contraponto moderno às casas de cores pastéis, igrejas barrocas e ruas estreitas da cidade. Um grupo de empresas chinesas controladas pelo estado está planejando uma ponte de 1,3 bilhão de dólares ligando Salvador à ilha de Itaparica, onde turistas ricos alugam chalés rústicos e desfrutam de refeições de lagosta acompanhadas de caipirinhas.

Será a ponte mais longa sobre a água na América Latina, com extensão de 7,7 milhas, mais de quatro vezes o comprimento da Ponte Golden Gate, de São Francisco. Chegar a Itaparica agora leva duas horas de barco ou cinco horas dirigindo ao redor da baía da cidade. Um carro poderá atravessar a ponte em 10 minutos. Mais do que uma ponte, o projeto “tem um propósito muito maior”, diz Claudio Villas Boas, CEO do Consórcio Ponte Salvador-Ilha de Itaparica, o grupo de empresas chinesas. “É um projeto de desenvolvimento regional, uma maneira de melhorar as condições econômicas e sociais em toda a Bahia.”

A BYD está pronta para causar um impacto igualmente grande na cidade. Visite a estação de trem da era vitoriana nos arredores de Salvador e você encontrará a sede do SkyRail da BYD. Ele está apenas começando a construir 24 quilômetros de trilhos para um monotrilho elétrico. A BYD gastou mais de US$ 700 milhões apenas em pesquisa e desenvolvimento.

O SkyRail oferecerá uma alternativa à frota de ônibus envelhecida de Salvador, que a BYD também planeja substituir por veículos elétricos. O monotrilho pode transportar 10.000 pessoas por hora - incluindo, em breve, trabalhadores da antiga fábrica da Ford. A BYD espera gastar $ 613 milhões para reabrir a fábrica de Camaçari e tem planos de minerar lítio na Bahia para abastecê-la.

Concessionária da BYD em São Paulo

Diogo Damasceno vê a chegada da empresa chinesa como uma nova chance na vida. Seu mundo mudou da noite para o dia quando a fábrica da Ford fechou. Metalúrgico, Damasceno estima ter montado dezenas de milhares de carrocerias durante sua década trabalhando para a Ford. No entanto, a primeira vez que ouviu falar dos planos da empresa de fechar a fábrica foi por meio de familiares que o ligaram depois que ele acabara de sair do turno da noite em um feriado, quando as ruas pulsam ao som do afoxé. A Ford se recusou a comentar sobre as perdas de emprego, mas disse em 2021 que havia trabalhado com sindicatos para mitigar seu impacto.

Dois anos e meio depois, aos 40 anos, Damasceno está vivendo em um apartamento de um cômodo e, como muitos de seus antigos colegas, sobrevivendo como motorista de aplicativo.

Damasceno já rodou 90.000 milhas em seu Ford EcoSport 2014, que ele usa para fazer suas corridas. “Eu sei que a BYD pode levar algum tempo para chegar à Bahia, mas espero que ela nos procure - pessoas com experiência”, diz Damasceno. “Estou esperando muito ansiosamente que ela chegue.”

— Com colaboração de Mariana Durão

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