Bloomberg Línea — A recuperação judicial da Americanas completa 22 meses nesta terça-feira (19). A empresa varejista busca retomar a normalidade dos negócios e enfrenta a cautela de parte de analistas e investidores enquanto apresenta números mais recentes que “jogam alguma luz” sobre a sua operação e seus indicadores financeiros.
A recente divulgação do resultado do terceiro trimestre, o primeiro após a capitalização de R$ 24 bilhões pelos principais acionistas e credores e após os pagamentos à maior parte do segundo grupo, impulsionou na B3 apostas de alguns investidores na hipótese de “página virada” da crise e iminência de uma evolução contínua de agora em diante.
Mas essa euforia, refletida em alta de 240% das ações em três pregões - os ativos sobem perto de 20% nesta terça-feira (19) -, não encontra ainda fundamentos em indicadores de uma empresa ainda endividada e com prejuízos acumulados de R$ 34,3 bilhões. E, mais importante, cujos resultados operacionais ainda não permitem projetar uma retomada sustentada.
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O lucro de R$ 10,3 bilhões reportado pela Americanas (AMER3) ao mercado entre julho e setembro foi essencialmente contábil (veja mais detalhes abaixo) e a companhia ainda enfrenta desafios operacionais com um menor parque de lojas, após o fechamento de 105 unidades nos 12 meses até setembro.
O Ebitda ajustado (ex IFRS 2016) ficou positivo em R$ 252 milhões no terceiro trimestre e em R$ 15 milhões de janeiro a setembro, revertendo números negativos na mesma base em 2023, mas, em ambos os casos, houve impacto da reversão de uma baixa contábil de créditos a compensar de ICMS no valor de R$ 502 milhões.
A dívida atual da Americanas é hoje composta por R$ 1,6 bilhão em debêntures, além de R$ 75 milhões em empréstimos e financiamentos de outras empresas do grupo que não fizeram parte da recuperação judicial.
“No terceiro trimestre, finalizamos o reperfilamento dos credores financeiros, e a dívida bruta da Americanas passou de R$ 45,2 bilhões em junho para R$ 1,7 bilhão no final de setembro″, apontou a companhia no documento de resultados divulgado na semana passada.
A Americanas informou que ainda tem o compromisso de quitação de dívidas com certos fornecedores, algo que, por opção ou enquadramento, ocorrerá em até 60 parcelas. O pagamento começou em abril deste ano.
A empresa chegou ao fim do terceiro trimestre com R$ 482 milhões em caixa mais equivalentes em recebíveis menos a a dívida financeira; mas ela própria reconheceu que no espectro mais amplo das dívidas esse quadro é menos confortável:
“Considerando as dívidas que ainda não foram quitadas decorrentes do Plano de Recuperação Judicial (PRJ) e detalhadas acima, a companhia apresenta o total de obrigações financeiras mais obrigações remanescentes do PRJ equivalente à soma do caixa mais recebíveis no final de setembro de 2024″, informou no documento.
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Sob outra ótica, no entanto, a Americanas celebrou o novo status alcançado: “eliminamos quase a totalidade das dívidas concursais e transformamos a Americanas em uma empresa com dívida equivalente ao seu volume de caixa e recebíveis, endereçando a estrutura de capital”, disse no documento.
Graças ao acerto com os principais credores, bancos e fornecedores, no fim de 2023 e à subsequente injeção de capital feita pelos acionistas principais - o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles -, a reestruturação da Americanas resultou na reversão do patrimônio líquido da companhia de R$ 30,4 bilhões negativos em junho para R$ 5,7 bilhões positivos no fim de setembro.
Em novembro do ano passado, a previsão era voltar a exibir um patrimônio positivo no fim de 2025.
Hoje a Americanas é controlada pela Sawdog Holdings (28,22%), pela Cedar Trade (15,07%) e pela Samer Investiment (6,62%), que são afiliadas dos bilionários, segundo dados da B3 referentes à posição acionária do último dia 13. Sicupira aparece ainda como pessoa física com 0,09% do capital. Há ainda 151.586 acionistas pessoas físicas, 1.473 pessoas jurídicas e 388 institucionais, donos de outros 50% do grupo.
Efeito positivo no resultado não se repetirá
A varejista já cumpriu o equivalente a 95% do seu plano de reestruturação, o que incluiu o pagamento de créditos com desconto (haircut) aos principais bancos do país no terceiro trimestre, confirmou à Bloomberg Línea uma pessoa com conhecimento da situação financeira da empresa, que pediu para não ser identificada, pois não tem autorização para fazer comentários públicos.
A receita obtida com a redução da dívida acordada com as instituições financeiras permitiu à varejista apresentar um balanço no azul, com lucro líquido de R$ 10,3 bilhões entre julho e setembro, mas esse evento extraordinário não se repetirá no quarto trimestre, segundo a pessoa ouvida pela Bloomberg Línea.
Ou seja, o reconhecimento contábil da receita decorrente do haircut da maior parte da dívida ocorreu apenas no resultado do terceiro trimestre. A companhia ainda tem pagamentos a serem feitos no longo prazo, como parcelas programadas para o período de 15 a 20 anos, esclareceu a fonte.
A quitação de dívidas com parte dos credores se deu pela conversão de dívida original em ações ou bônus de subscrição ou em novas debêntures.
O saldo remanescente foi pago em caixa com um haircut de aproximadamente R$ 5,4 bilhões, valores que também foram reconhecidos no resultado do terceiro trimestre.
Além disso, também foi reconhecido no balanço entre julho e setembro um haircut de R$ 6,4 bilhões, referente à quitação de dívidas com credores que aderiram ao chamado leilão reverso (em que leva o direito a receber quem apresenta uma oferta de desconto maior) realizado em julho.
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A ‘surpresa’ do VPC da indústria de chocolate
O resultado trimestral trouxe ainda outra “grata surpresa”, segundo palavras da pessoa ouvida pela Bloomberg Línea, que passou despercebido por boa parte do mercado.
O lucro foi impactado positivamente por cerca de R$ 47 milhões decorrentes da recuperação de VPC (Verba de Propaganda Cooperada).
Somado esse valor ao gerado no primeiro semestre, o grupo recuperou cerca de R$ 347 milhões em VPC que havia sido retido pelos fornecedores após o decreto da recuperação judicial em 19 janeiro de 2023.
O VPC é uma ferramenta importante para o varejo, pois ajuda a aumentar as vendas, fortalecer parcerias e melhorar a visibilidade das marcas. Trata-se de um acordo entre a indústria e a varejista, em que o fornecedor disponibiliza recursos para apoiar a promoção e propaganda de seus produtos no ponto de venda.
Segundo essa fonte, a varejista não trabalhava com a expectativa de que a indústria pagaria esse VPC que havia sido bloqueado no início do escândalo corporativo com a denúncia de fraude contábil, em 2023.
Tanto que alguns valores de VPC chegaram a sofrer baixa contábil pela companhia, que avaliava como improvável o recebimento dessas quantias. Os fabricantes de chocolate estão entre os principais fornecedores da Americanas que pagam VPC, segundo a fonte.
Neste ano, a Americanas destacou um desempenho de “fortes vendas” para a Páscoa, o que levou o desempenho no conceito “mesmas lojas” a crescer 17,7% no acumulado de nove meses.
Fabricantes deixaram de pagar as parcelas do VPC após a revelação da fraude contábil então estimada em R$ 20 bilhões em janeiro de 2023, valor depois atualizado para R$ 25 bilhões, segundo a fonte.
O esquema revelado mais tarde envolvia contabilizações indevidas - fraudulentas - do VPC e de operações financeiras conhecidas como “risco sacado”, conforme apontou um relatório de um comitê independente instituído pela Americanas para apurar as origens do rombo.
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Evidências apresentadas pelo comitê apontaram lançamentos indevidos na conta “Fornecedores”, por meio de contratos fictícios de VPC e pelo “risco sacado”, entre outras operações fraudulentas incorretamente refletidas no balanço.
Essas operações aconteceram com conhecimento de ex-executivos da diretoria, como o ex-CEO Miguel Gutierrez, segundo a Americanas. Gutierrez e os demais diretores negam as acusações.
Segundo a mesma fonte, a recuperação dos R$ 347 milhões referentes a VPC nos nove primeiros meses deste ano de 2024 se refere a valores das operações lícitas que também eram realizadas, e não aos contratos fictícios lançados para inflar os lucros divulgados nos balanços.
A varejista continua recorrendo ao VPC, que é um instrumento adotado pela indústria e pelos concorrentes em operações de compra e venda de chocolate e de outros itens do sortimento, segundo a fonte.
A BDO auditou o resultado, sem ressalvas.
Menos TVs, mais brinquedos
A Americanas tinha 1.601 lojas no fim do terceiro trimestre, o que representava 105 a menos do que o total informado em setembro do ano passado (1.706) e 77 a menos do que em dezembro (1.678).
Segundo a companhia, nesse período foram fechadas lojas com baixa produtividade.
“No terceiro trimestre, encerramos operações em 21 unidades que não atendiam aos critérios de viabilidade da companhia. Esses encerramentos resultaram na redução da área de vendas em 1,4%”, calculou a Americanas.
Durante esse período, a empresa também readequou os tamanhos de algumas lojas, com ajuste das metragens ao potencial de vendas de cada unidade.
A receita líquida consolidada somou R$ 3,2 bilhões no terceiro trimestre, praticamente estável na comparação (+0,6% em 12 meses).
No mesmo período, a rede varejista teve, por outro lado, uma queda de 10% nas vendas de itens de “eletro”, algo que atribuiu à estratégia de redução de exposição a produtos com menor margem, como TVs de tela grande, aparelhos de ar-condicionado e notebooks.
Por outro lado, ainda segundo a companhia, houve “aumento do sortimento em loja com foco no crescimento de vendas em categorias como utilidade doméstica, papelaria, brinquedos e vestuário, em que acreditamos haver demanda dos clientes e que proporcionam uma maior margem”.
Visão do sell-side
O GMV (volume bruto de mercadorias vendidas) caiu 4% em 12 meses: o e-commerce teve queda de 49%, enquanto o varejo físico cresceu 14%, apontaram os analistas Daniela Eiger, Gustavo Senday e Laryssa Sumer, da XP, em relatório enviado a clientes sobre o resultado trimestral.
“Continuamos cautelosos com o setor, por causa de uma demanda ainda pressionada pelo macro e pela competição acirrada”, escreveram os analistas, que mantiveram a cobertura da Americanas sob revisão.
Os analistas da XP escreveram que a rentabilidade da varejista melhorou no terceiro trimestre, com aumento de 2,6 pontos percentuais da margem bruta, impulsionada por um melhor mix de produtos e pela redução de custos.
“A companhia reconhece que ainda há desafios pela frente, com foco em melhorar vendas/metro quadrado, estratégias de precificação e controle de estoque”, apontaram os analistas.
O escândalo de fraude contábil da Americanas, seguido do início do processo de recuperação judicial, levou a maior parte dos times de equity research dos principais bancos de investimento e corretoras do mercado a suspender a cobertura da ação da Americanas ainda nos primeiros meses de 2023.
Das maiores casas, apenas a XP divulgou um relatório sobre o resultado do terceiro trimestre.
Segundo especialistas em contabilidade, a melhora dos números divulgados refletiu, como citado acima, principalmente itens não recorrentes, como a recuperação de VCP, créditos tributários e os efeitos contábeis da renegociação da dívida. As ações ainda acumulam queda de 95% no ano.
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