Bloomberg Línea — Às vésperas do Natal de 1982, o fundador da Randon (RAPT4), Raul Anselmo Randon, se reuniu com executivos do grupo para discutir os rumos da companhia, que acabara de entrar em concordata. O episódio foi decisivo para que integrantes da cúpula da empresa de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, começassem a pensar no processo de sucessão da maior fabricante de carrocerias do país.
De lá para cá, a Randon não só cresceu como se tornou um conglomerado com 16 empresas com uma receita de R$ 11 bilhões em 2022, um recorde para a companhia.
Mas, em um mercado automotivo em acelerada transformação e cada vez mais competitivo, o grupo busca se reposicionar como uma corporação – daí a mudança de nome para Randoncorp – e trabalha para garantir sua longevidade, o que inclui a estratégia para os próximos processos de sucessão, segundo apurou a Bloomberg Línea com pessoas e executivos ligados à companhia.
Pela primeira vez desde sua fundação, o grupo tem um CEO que não é da família: Sérgio Carvalho, que acumula extensa experiência no setor automotivo em empresas nos Estados Unidos, na América do Sul, na Europa e na Ásia, com destaque para a China. O executivo assumiu o posto em janeiro de 2022, depois de ter ocupado os cargos de vice-presidente executivo e COO (à frente das operações).
A estratégia e a execução da Randon parece agradar até aqui ao investidor. As ações da empresa acumulam alta de 49% em 2023 até o pregão de sexta-feira (11), o que representa uma recuperação de um período de baixa depois de atingir o valor máximo histórico em dezembro de 2020.
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O primeiro processo de sucessão no grupo aconteceu em meados de 2009, após 10 anos de gestação do plano, com Raul Randon deixando a presidência executiva para seu primogênito David – embora o patriarca também enxergasse no caçula Daniel potencial para assumir o posto, afirma uma pessoa próxima à família, que falou sob condição de anonimato.
David foi preparado para ocupar a presidência do grupo inclusive com o auxílio de consultorias externas especializadas. Ele assumiu não só a cadeira de seu pai, mas também a responsabilidade de orquestrar a sucessão de toda a diretoria do grupo, uma vez que muitos dos executivos fizeram carreira na Randon e estavam completando 30 anos na liderança.
O êxito nesse processo é atribuído, em parte, à personalidade de David, que não tem um perfil centralizador e é considerado um conciliador, afirma um executivo ligado ao grupo que falou em condição de anonimato porque as conversas são privadas. Paralelamente, Raul nunca deixou de frequentar a empresa e o chão de fábrica até sua morte, em 2018, aos 88 anos, relatam pessoas próximas.
O crescimento do mercado automotivo facilitou a expansão da Randon no período pós-sucessão. Para cada caminhão novo vendido, um implemento rodoviário é demandado. E em 2011 a produção nacional bateu recorde histórico, atingindo 270 mil veículos pesados. O negócio de autopeças do grupo também se beneficiou neste cenário.
No entanto, a crise econômica de 2014 a 2016 no Brasil atingiu em cheio toda a cadeia automotiva. Neste contexto, a Randon decidiu se reestruturar, após o mercado de semirreboques despencar para apenas 25 mil unidades, relata o diretor-presidente da Randoncorp, Daniel Randon.
“Foi um momento muito difícil, em que revisitamos alguns conceitos importantes. Agora, deixando o cargo de CEO para o Sérgio, adotamos uma visão muito mais de governança e profissionalização da empresa”, disse o executivo em entrevista à Bloomberg Línea.
Para a Randoncorp, diferentemente do CEO, o diretor-presidente tem uma figura muito mais institucional e menos do dia a dia do grupo. De 2019 a 2021, Daniel acumulou os dois cargos.
Segundo o executivo, ter a família atuando nos negócios, mesmo em posições de conselho, é uma vantagem.
“Na crise de 2015, o grupo chegou a ter uma alavancagem de 6,9 vezes. O diferencial foi ter alguém da família negociando os covenants com os bancos. Conseguimos reestruturar a empresa”, esclarece. “Trabalhamos com executivos profissionais, muitos formados dentro de casa, outros de fora. A Randoncorp está num momento muito bom”, acrescenta.
Engenheiro mecânico, Daniel Randon tem formação executiva e de liderança e era visto por seu pai como um de seus sucessores, relata um executivo ligado ao grupo. Viajou pelo mundo e trouxe novas visões de negócios à Caxias do Sul, diz uma pessoa próxima à família.
Na avaliação de um executivo ligado ao grupo, Daniel é um líder jovem, bem preparado e com uma personalidade parecida com a de seu pai. A seu favor, o herdeiro conta com experiências dentro e fora do Brasil.
De acordo com a fonte, ele teria chegado à conclusão de que é preciso restringir os membros da família ao conselho, deixando o negócio para ser tocado por profissionais do mercado.
Estratégia de corporação
A estratégia de se tornar uma verdadeira corporação visa, entre outros objetivos, ampliar a presença internacional. Além disso, o grupo quer ir além dos produtos, tornando-se cada vez mais um provedor de serviços, a exemplo de outra empresa bem-sucedida nessa estratégia: a também gaúcha Gerdau (GGBR4).
Executivos e pessoas próximas à família relatam a admiração do patriarca Raul e de seus filhos pelos rumos tomados pela gigante siderúrgica e os frutos que têm sido obtidos pela conterrânea.
“Temos uma visão não só de oferecer produtos como negócio, mas soluções integradas. De preferência nas áreas de mobilidade, tecnologia e logística, isso tem sido muito claro para nós”, diz Daniel, pontuando que o grupo aumentou sua exposição no exterior de 15% para 20% da receita total.
“Ter esse equilíbrio entre mercado interno e externo é importante, queremos aumentar a nossa presença global com unidades em diversos países”, pondera.
O processo de internacionalização do grupo começou ainda na década de 1980. Raul, que à época não falava inglês, viajou para os Estados Unidos com um grupo restrito de diretores e fechou a primeira joint venture da Randon no segmento de freios automotivos, conta uma pessoa ligada à companhia, que falou sob condição de anonimato.
Segundo a fonte, a visão de Raul era tornar a Randon a maior fabricante do mercado brasileiro e da região. Ele teria recebido críticas de que estava “entregando” a empresa para “gringos”, mas o fundador enxergava a aposta como uma forma de trazer tecnologia internacional ao Brasil.
Hoje, a Randoncorp tem 32 fábricas e 10 centros de distribuição em 12 países. A vertical voltada para montadoras, que inclui semirreboques e vagões para carga, representa 40% da receita total do grupo. Já a de autopeças e controle equivale a 55% e o restante vem de serviços financeiros.
No primeiro semestre, a Randoncorp registrou receita líquida de R$ 5,43 bilhões, alta de 3,6% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo balanço divulgado na quarta-feira (9). A geração de caixa medida pelo lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda) foi de R$ 886,6 milhões de janeiro a junho, avanço de 16,1% na mesma base de comparação. Já o lucro líquido no primeiro semestre foi de R$ 238,9 milhões, aumento de 1,8% sobre igual intervalo de 2022.
O grupo vem apostando em pesquisa e desenvolvimento de novos materiais. Um deles é a nanopartícula de nióbio, patenteada pela companhia e que está sendo testada em 40 projetos em 17 áreas diferentes.
Também há estudos de compósitos (união de materiais), que são mais leves, para substituição de insumos como aço e alumínio. Segundo a companhia, os produtos desenvolvidos pela Randon na área de compósitos chegam a reduzir em até 65% o peso do implemento rodoviário.
Na seara de eletrificação, o grupo homologou no ano passado um eixo auxiliar elétrico de caminhão que promete economia de até 25% de combustível e pode ser usado em semirreboques novos ou usados.
A companhia atua ainda por meio da Randon Ventures, que hoje conta com oito startups investidas, ligadas ao setor de logística. “É uma oportunidade de estarmos mais próximos aos clientes. Com essas startups, em que somos minoritários, cresceremos também por meio de dados, que é o futuro”, diz Daniel.
Sucessão
Para fontes ligadas à Randon ouvidas pela reportagem, o futuro das empresas da holding já está desenhado, embora haja incertezas sobre o nível de atuação dos herdeiros daqui para frente.
Daniel Randon diz que a família deve ser mais atuante em posições de conselho. “Provavelmente, a terceira geração [da família] terá muitos incentivos para conhecer o negócio, mas futuramente [os membros] devem ficar mais [em posições de] conselheiros.”
Em sua visão, a família deve cuidar cada vez mais de pontos estratégicos para que a empresa possa perdurar no longo prazo. “Mas se tiver uma exceção, por que não um executivo da família?”, pondera Daniel.
Para o analista do Citi, André Mazini, é natural ter membros da família no conselho, o que é positivo para a estratégia do grupo. “Vemos mais risco quando há muitas pessoas da família em cargos executivos”, diz.
Em sua avaliação, o atual CEO da Randoncorp conseguiu fazer uma boa transição. “Carvalho entende muito desse mercado”, pontua.
A analista do Citi, Renata Cabral, destaca que a Randon tem um bom histórico de condução dos negócios, com poucas críticas em relação à governança.
“Antes da entrada de Carvalho, o mercado já aguardava o nome de quem iria tocar a companhia. A Randon é muito atualizada em relação ao futuro e entende que a indústria automotiva está passando por uma transformação profunda em meio à eletrificação”, analisa. “A empresa está investindo em materiais diferenciados, como o nióbio. Não estão dormindo no volante.”
Dos cinco filhos de Raul Randon, três atuam nas empresas do grupo. David é hoje presidente do conselho da Randoncorp. Alexandre, filho do meio, é vice-presidente do colegiado e presidente do conselho do Banco Randon.
Alexandre é conhecido por ser um bom tomador de decisões, afirma uma pessoa próxima à família, mas não teria interesse em cargos executivos, acrescenta.
Maurien, a quarta filha de Raul, é diretora-presidente do Instituto Elisabetha Randon, organização de responsabilidade social do grupo. Já Roseli, herdeira número 2 da família, é médica e é a única que não tem envolvimento na companhia.
A avaliação de pessoas próximas é a de que a família se manterá como peso determinante em todas as decisões estratégicas das empresas. Membros da terceira geração já estão sendo formados, mas não oficialmente preparados para tocar os negócios, afirma uma pessoa ligada à companhia, que falou sob condição de anonimato.
Também não haveria disposição, por parte da família, de diluir sua participação acionária na holding, diz uma pessoa próxima. Atualmente, o grupo controlador detém 40% do total de ações da Randoncorp.
Há ainda a crença de que, no atual momento de expansão do grupo no mercado internacional, é importante que a família esteja mais ativa do que nunca nos negócios, diz outra fonte próxima. Em 2022, a Randon comprou a Hercules, fabricante de implementos rodoviários dos Estados Unidos.
Para os analistas do Citi, o grupo está diversificando as linhas de negócios e produtos basicamente pelo entendimento de que a alta exposição no segmento de implementos rodoviários no Brasil é um risco.
“O negócio de implementos rodoviários no mercado brasileiro sempre foi muito volátil, ao estar atrelado a juros e PIB. O investidor não gosta de muita volatilidade, por isso a Randon está diversificando, principalmente ao apostar nos Estados Unidos”, diz Cabral.
A XP afirmou em relatório que o balanço do segundo trimestre “mais uma vez ilustra a posição de resiliência da Randoncorp, com sua diversificação permitindo resultados sólidos em meio ao mercado interno desafiador”.
A casa destaca o desempenho acima do esperado para a controlada Frasle Mobility, que compensou a receita relativamente mais fraca de autopeças e vendas estáveis de implementos. “Reiteramos nossa visão positiva de longo prazo para Randon e Frasle”, disseram os analistas.
Os analistas do Itaú BBA reforçaram, em relatório, o desempenho “surpreendentemente bom” da Frasle, mas alertaram para os riscos na Randoncorp, “considerando os desafios setoriais impostos pela transição do mercado para o Euro 6 [nova legislação de emissões para veículos pesados]”.
Sobre a grande aposta do grupo nos Estados Unidos, a analista do Citi ressalta que embora o mercado norte-americano seja altamente promissor por seu tamanho e dinamicidade, existe o risco da falta de conhecimento do território.
“A Randon já fez outras aquisições no passado e não tem histórico ruim de integração, mas é uma geografia que a empresa não conhece, existe sim um risco natural de execução”, pondera Cabral.
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