A batalha de um casal de idosos contra o JPMorgan após perder quase US$ 50 mi

Peter Doelger e sua mulher Yoon viram o patrimônio cair para US$ 1,5 milhão em meio à perda cognitiva do cliente e buscam responsabilizar o banco, que diz que alegação não tem mérito

Yoon and Peter Doelger in Boston, Massachusetts,
Por Tom Schoenberg
16 de Dezembro, 2023 | 04:00 PM

Bloomberg — Quando Peter Doelger assinou os documentos para que o JPMorgan cuidasse de sua fortuna, ele havia vendido sua empresa para um conglomerado e investido os lucros em ações e petróleo. Aos 78 anos, ele afirmava que tinha pelo menos US$ 50 milhões. E, segundo sua família, começava a mostrar sinais de demência.

O que se seguiu ao longo dos cinco anos seguintes foi quase que um total extermínio de sua riqueza, pois a esposa de Peter, Yoon, disse que eles cada vez mais dependiam da assessoria do JPMorgan para administrar sua carteira de investimentos, apenas para ver o montante se aproximar cada vez mais de zero.

O patrimônio foi reduzido a US$ 1,5 milhão, e eles tiveram que vender o apartamento em Boston e se mudar para a casa de parentes.

O JPMorgan (JPM) disse na ação que a alegação do casal não tem mérito, que alertou o cliente sobre a concentração além do recomendável do portfólio em ativos de alto risco e que as estratégias montadas foram autorizadas por escrito (veja mais abaixo).

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Os detalhes de como as coisas se desenrolaram agora estão sendo revelados em disputas legais no tribunal federal de Boston, testando até que ponto uma grande instituição financeira pode ser responsabilizada se um cliente rico tem perda cognitiva e seus investimentos “azedam”, para dizer o mínimo.

Os Doelgers foram os primeiros a entrar com uma ação, buscando recuperar dezenas de milhões de dólares do maior banco dos Estados Unidos.

“Tínhamos 100% de confiança neles de que gerenciariam nossos ativos”, disse Yoon, 76 anos, durante uma entrevista à Bloomberg News no apartamento de sua irmã em Boston. “Não esperávamos que nos construíssem uma fortuna, mas que pelo menos nos deixassem confortáveis.”

Peter, agora com 86 anos, não consegue se lembrar muito do que aconteceu. Suas mãos tremiam na entrevista enquanto tentava contar a história uma vez familiar de como começou sua empresa.

Quando o assunto se voltou para os anos mais recentes, ele teve dificuldade em acompanhar. Um exame solicitado pelo tribunal o declarou incapaz de depor no litígio, e ambos os lados concordaram em não contestar isso.

A situação do casal destaca um problema que sempre rondou Wall Street, mas que ganha escala à medida que a geração do baby boom se aposenta com uma reserva recorde de riqueza.

Legiões de baby boomers, aqueles nascidos depois da II Guerra Mundial, têm economias suficientes para serem considerados investidores “qualificados” ou “sofisticados” sob as leis de valores mobiliários dos EUA, qualificando-os para investir em classes de ativos mais arriscadas e complexas, com comissões generosas para intermediários.

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No entanto muitos desses clientes inevitavelmente enfrentarão perdas cognitivas. A indústria carece de um sistema formal para detectar quando isso ocorre.

Em um estudo que testou a sofisticação financeira, as famílias de investidores qualificados com pelo menos 80 anos geralmente pontuaram pior do que os investidores não qualificados algumas décadas mais jovens.

Os autores – Michael Finke, professor no American College of Financial Services, e Tao Guo, diretor de pesquisa na Morningstar Investment Management – recomendaram que os EUA considerem revisar as regras para clientes idosos.

Peter Doelger

“Esse caso clama por mais atenção sobre como o declínio das habilidades cognitivas afeta a capacidade de tomada de decisão financeira de pessoas mais velhas e a gestão financeira independente”, disse Naomi Karp, consultora em envelhecimento, direito e políticas, que trabalhou como analista para a Consumer Financial Protection Bureau.

“Precisamos atribuir mais responsabilidade às instituições financeiras, pois estão bem posicionadas para detectar sinais de alerta.”

Isso deve incluir mais treinamento para funcionários e gestores de forma a identificarem sinais de alerta e intervirem, disse ela.

Embora os Doelgers estejam contando com o genro, um advogado, para representá-los, a batalha ameaça extinguir suas economias restantes.

JPMorgan: ‘acusação sem mérito`

O JPMorgan apresentou uma contra-argumentação na mesma ação judicial, afirmando que as acusações dos Doelgers não têm mérito e os pressionando a pagar seus crescentes custos legais, bem como outros danos não especificados.

O casal não tem o direito de buscar reparação, argumenta o banco, porque Peter assinou uma carta antecipada em 2015, atestando sua sofisticação e interesse em fazer apostas arriscadas no setor de petróleo e gás.

Ao longo dos anos, representantes do JPMorgan o ajudaram a aumentar esses investimentos, emprestando-lhe milhões de dólares para alavancar as apostas, e venderam a ele uma troca de dívida que piorou sua situação, de acordo com a ação do casal.

Yoon, uma imigrante coreana com formação em Artes, lembrou-se de seu marido dizendo a ela depois de reuniões para discutir investimentos que ele não entendia o havia sido foi dito. Ela tampouco entendia.

Em sua defesa, o JPMorgan disse que Peter era um CEO bem-sucedido na indústria de energia com experiência em investimentos em petróleo e gás quando transferiu seus ativos para o banco.

“O JPMorgan sugeriu repetidamente ao Sr. Doelger que ele diversificasse e reduzisse sua exposição geral”, disse o banco em comunicado.

“O Sr. Doelger assinou um acordo, entregue ao Sr. Doelger e a seu advogado pessoal, reconhecendo esse conselho e afirmando que era ‘financeiramente experiente e sofisticado’ e ‘totalmente ciente do risco de concentração’”.

O banco afirmou ter políticas e procedimentos para proteger clientes idosos e vulneráveis.

“Ninguém no JPMorgan jamais observou sinais de perda cognitiva do Sr. Doelger ao trabalhar com ele, e nem o Sr. Doelger, seus conselheiros pessoais ou membros de sua família nunca disseram ao JPMorgan antes desta disputa legal que o Sr. Doelger estava sofrendo algum declínio cognitivo”, disse a empresa. As alegações “são contrárias aos registros e serão vigorosamente contestadas em tribunal.”

Clientes vulneráveis?

A Finra, reguladora de corretoras, não tem um limite de idade para o que considera investidores sofisticados. Suas regras exigem amplamente que as empresas estejam vigilantes para detectar sinais de que qualquer cliente possa estar vulnerável.

Empresas como o JPMorgan adotam certas políticas, incluindo sistemas para sinalizar preocupações sobre a cognição dos clientes. Não há indicação de que as autoridades estejam examinando como o JPMorgan ou seus funcionários lidaram com os Doelgers.

O casal colocou sua casa em Boston à venda e se mudou para a casa da filha de Yoon, em Nova Jersey. Foi então que os membros da família começaram a investigar. “Fiquei horrorizado com o que vi”, disse James Serritella, genro de Yoon e advogado que representa o casal.

A ação judicial que ele apresentou em nome do casal alega que o JPMorgan superestimou a riqueza e a habilidade de investimento de Peter em uma pressa para atrair um cliente grande, mantendo-o em MLPs (Master Limited Partnerships) e empréstimos para obter altas taxas de administração e juros.

“Não acredito que Peter entendesse essas coisas da maneira como o fizeram entender”, disse Serritella à Bloomberg News. “Peter confiava nas pessoas: ‘Não preciso saber todos os detalhes porque confio em você’. Então, toda essa construção do cara sofisticado, discordamos fortemente disso.”

Origens do patrimônio

O jovem Doelger veio de uma família que construiu sua riqueza no século XIX, mas ele traçou seu próprio caminho. Após se formar na Middlebury College, Peter estabeleceu-se em Boston e, na década de 1970, fundou uma empresa que ajudava proprietários a reduzir as contas de energia, examinando isolamento de sótãos e janelas.

O empreendimento cresceu e se tornou uma rede nacional de empreiteiros antes de Peter vendê-lo para a Honeywell em 1995. Ele obteve um pagamento na casa dos oito dígitos, de acordo com documentos judiciais apresentados pelo JPMorgan. Peter e Yoon se casaram em 2000.

Peter diversificou seu portfólio com vários ativos: ações pré-IPO de empresas de biotecnologia, um fundo de negociação de alta frequência de um professor do MIT, imóveis na Coreia do Sul e títulos municipais. Ele também começou a se aventurar em títulos conhecidos como Master Limited Partnerships (MLPs). Esses investimentos, que são negociados em bolsas, focam em recursos naturais como petróleo e gás.

MLPs, por outro lado, podem ser notoriamente voláteis. Eles oferecem pagamentos significativos em dinheiro e vantagens fiscais, mas a SEC, equivalente da comissão de valores mobiliários nos EUA, adverte que eles também são “extremamente sensíveis” aos preços do petróleo e gás.

Nos três meses após a assinatura da carta, o portfólio de Peter despencou 19% em relação ao patamar mínimo de US$ 50 milhões de quando levou seu patrimônio ao JPMorgan, encerrando 2015 em cerca de US$ 30 milhões. No entanto, a perspectiva do banco para o ano seguinte era otimista, estimando que o mercado estava subavaliando esses ativos. Daí em diante, no entanto, a queda foi uma regra.

Peter investiu em MLPs por meio de uma subsidiária da Lehman Brothers.

Após o colapso dessa empresa na crise de 2008, o JPMorgan tornou-se o custodiante. Ele abriu uma conta de corretagem lá e obteve uma linha de crédito de US$ 6 milhões, utilizando parte dela para aumentar os investimentos. De 2009 a 2014, suas apostas em MLPs superaram o desempenho do S&P 500, gerando dezenas de milhões de dólares em ganhos e consolidando uma estratégia que ele buscava manter, conforme afirmado pelo JPMorgan em documentos judiciais.

Enquanto mantinham seu condomínio de luxo em Boston, os Doelgers compraram uma mansão em Palm Beach por US$ 7 milhões e um apartamento em Paris, além de serem membros de quatro clubes privados, conforme relatado pelo banco.

No final de 2014, os ativos de seu portfólio haviam crescido, e também sua dívida com o JPMorgan, atingindo US$ 17 milhões, de acordo com documentos judiciais.

Os preços dos combustíveis começaram a cair, tornando o mercado mais perigoso. Peter e um promissor funcionário do JPMorgan, James Baker, fizeram arranjos para transferir o portfólio para o banco, de acordo com o processo do casal. Formado pela Boston College em 2010, Baker estava na empresa havia cerca de meio década, principalmente como analista de private banking. Atualmente, é managing director. O JPMorgan afirmou que seus comentários refutando as alegações são feitos em seu nome também.

Baker informou a Peter sobre o novo programa de MLPs do banco, gerenciado pela Chickasaw Capital Management, uma empresa externa fundada por ex-funcionários do Goldman Sachs.

O casal viajou para a sede do JPMorgan em Nova York em agosto de 2015 para ouvir uma apresentação de duas horas, de acordo com o processo. Baker e representantes da Chickasaw deixaram um portfólio de 26 páginas que descrevia os MLPs como complexos e sugeria que os clientes deveriam contar com profissionais de mercado para ajudar a navegar nos riscos. Os gestores da Chickasaw tinham uma média de 19 anos de experiência, segundo o documento.

Alertas internos para os riscos

Mas quando Peter concordou em transferir seus ativos para o JPMorgan, surgiram preocupações dentro do banco, conforme cópias de comunicações internas apresentadas como parte do processo. Baker enviou e-mails a colegas informando que Peter tinha de US$ 90 milhões a US$ 100 milhões e queria transferir US$ 33 milhões em MLPs para o programa.

No entanto outro funcionário observou que a concentração de MLPs excedia o considerado prudente pelo JPMorgan. As diretrizes da empresa de Wall Street na época recomendavam que um cliente não deveria investir mais de 5% de seu portfólio em MLPs, escreveu o funcionário.

Os executivos debateram se deveriam abrir uma exceção, propondo eventualmente permitir que Peter investisse cerca de 33% de sua riqueza no programa de MLPs, desde que não aumentasse.

Mas esses cálculos estavam equivocados, de acordo com a família. Eles afirmaram ao tribunal que sua riqueza não era nem de longe tão alta, tornando os MLPs a maior parte de seu portfólio.

Para abrir uma exceção, os executivos do JPMorgan decidiram pedir a Peter que assinasse o que chamaram de “Big Boy letter”. Um gerente no escritório de Baker escreveu a um colega que Peter estava ansioso para transferir sua conta para o JPMorgan e “assinaria qualquer carta que elaborássemos”.

Naquele mês, o banco enviou a Peter um documento de três páginas, alertando que sua aposta em MLPs era maior do que o recomendado e instando-o a diversificar seu portfólio.

No entanto, o JPMorgan escreveu que estava disposto a lidar com o investimento, desde que Peter assinasse uma carta isentando o banco de qualquer responsabilidade. A empresa explicou que Peter teria que reconhecer que era um profissional na indústria de energia, que era suficientemente sofisticado para entender os riscos dos MLPs e que considerava os investimentos adequados.

Embora o documento estimasse que ele tinha cerca de US$ 100 milhões, pedia que confirmasse ter pelo menos US$ 50 milhões — o suficiente para que o JPMorgan o considerasse uma “conta institucional”.

Em 1º de outubro de 2015, Peter encontrou-se com Baker e assinou o documento. Colegas comemoraram em mensagens internas, com o chefe de private banking do JPMorgan em Boston escrevendo “Rah whoo!”

Esquecendo Palavras

No ano que antecedeu esse momento, Peter visitou hospitais e médicos devido a episódios de paranoia e lapsos de memória. Durante uma internação em 2014, Peter reclamou a um médico que conseguia ouvir alguém falando com ele de dentro do estômago, segundo Yoon.

Um incidente ainda mais dramático aconteceu no mesmo dia em que o JPMorgan discutiu a ideia de fazer Peter assinar uma carta de adequação. Um policial visitou Yoon em casa para informar que Peter estava no hospital. Seu marido havia ligado para o 911 enquanto dirigia, convencido de que alguém o estava seguindo. As autoridades o persuadiram a ir para a sala de emergência.

O médico que examinou Peter lá tornou-se posteriormente o presidente do Massachusetts General Hospital. Seu diagnóstico no prontuário médico de Peter é direto: “ideação paranóica; déficits cognitivos; demência”.

Um assistente médico que examinou Peter observou que ele não conseguia se lembrar de três palavras - “vermelho, copo, chão” - após três minutos.

Yoon disse que na época não tinha certeza de quão graves eram os episódios. Ela descreveu o marido como às vezes estranho e um pouco solitário.

Ambas as partes concordam que os diagnósticos de Peter não foram comunicados ao banco. Ele assinou a carta dias depois de deixar o hospital.

‘Merecíamos uma vida confortável’

Peter continua piorando nos dias atuais.

Ele tem dificuldade para andar e cochila grande parte do tempo. Yoon disse que visitou algumas instalações de vida assistida. Nenhuma delas é um lugar que gostaria para ela e seu marido. Eles estão tentando vender sua última propriedade, um apartamento em Paris, para ter mais recursos.

“Ele merecia ter uma vida confortável”, disse ela. “Tínhamos uma vida confortável.”

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