Brasil vende US$ 8 bi à vista em um dia para tentar conter a escalada do dólar

Perda de confiança de investidores no compromisso do governo Lula em conter a trajetória de aumento da dívida do país tem se refletido na deterioração dos preços de ativos

Moeda americana americana tem sido uma das variáveis que expressam a desconfiança de investidores
Por Martha Beck - Vinícius Andrade - Maria Eloisa Capurro - Leda Alvim
19 de Dezembro, 2024 | 03:23 PM

Bloomberg — À medida que o real se desvaloriza no Brasil, levando os mercados do país para os holofotes internacionais pela primeira vez em anos, uma realidade sombria se coloca para os principais assessores econômicos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eles temem não poder fazer muito para deter o pânico.

Lula, que se recupera em sua casa em São Paulo após duas cirurgias cerebrais de emergência seguidas, não tem interesse em aumentar um pacote de austeridade que poderia, se executado com ousadia suficiente, acalmar as preocupações dos investidores com o aumento da dívida e conter a fuga de capitais que levou a moeda a níveis recordes de baixa.

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Seus assessores tiveram que pedir a ele durante semanas para que o fizesse em primeiro lugar. E os legisladores, segundo eles, também se opõem a isso. Os ajustes que estão sendo feitos no projeto de lei enquanto ele tramita no Congresso têm como objetivo enfraquecer o pacote de cortes de custos.

Fazia anos, desde o período que antecedeu a primeira eleição de Lula em 2002, que os mercados brasileiros não estavam “convulsionados” pelo medo de uma crise da dívida.

E, embora a crise atual ainda possa ser considerada limitada em comparação com aquela - os títulos estrangeiros do país rendem uma fração do que rendiam naquela época, e há muito menos dívida em dólar em aberto agora -, em sua essência, é disso que se trata.

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Assim como na França, os investidores não estão mais dispostos a financiar os déficits que explodiram durante a pandemia e que mal recuaram nos anos seguintes.

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O Banco Central aumentou a intervenção nos mercados de câmbio para tentar conter as perdas. Somente nesta quinta-feira (19), ele vendeu US$ 8 bilhões em leilões à vista consecutivos - o maior valor em anos. Ele interveio diretamente ou por meio de swaps quase todos os dias na última semana.

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A moeda se recuperou com os movimentos e saltou 2,4% após as vendas. Mas, na maioria dos dias, o impacto desapareceu em poucas horas. As taxas de swap quase não reagiram.

Isso porque, independentemente da quantidade de dólares que o BC vende ou da rapidez com que ele aumente as taxas de juros, ou se oferece retornos cada vez maiores sobre os ativos locais, os investidores continuarão a retirar dinheiro até que tenham certeza de que o déficit será reduzido - ou que o governo vai levar a sério um eventual compromisso para buscar fazê-lo.

Haverá inícios e paradas nas saídas de dinheiro, dizem os analistas, mas as preocupações são reais demais para serem disfarçadas com rendimentos de títulos de 15% ao ano.

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"O governo não tem credibilidade", disse Daniela Da Costa-Bulthuis, que ajuda a supervisionar 200 bilhões de euros (US$ 207 bilhões) de ativos na Robeco Institutional Asset Management. "O mercado de ações e o real estão começando a precificar uma situação econômica muito complicada que será difícil de resolver."

Os assessores de Lula estão fazendo o que podem. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem falado publicamente sobre os cortes de gastos do governo e tem apresentado a ideia de melhorias que estão por vir. E o principal contato do governo com o Congresso faz declarações tranquilizadoras sobre sua intenção de persuadir os legisladores relutantes a aceitar o pacote de austeridade.

Fernando Haddad completará dois anos no cargo no momento em que enfrenta o desafio de restaurar a confiança na economia

Mas, de acordo com pessoas próximas aos mais altos escalões do governo de esquerda, que pediram para não serem identificadas discutindo debates internos, a opinião de Lula é que sua proposta de cortar R$ 70 bilhões de gastos até 2026, que limita o crescimento do salário mínimo e torna mais rígidas as regras sobre os pagamentos da previdência social, é mais do que suficiente.

Analistas discordam, dizendo que o pacote poderia liberar um pouco mais da metade desse valor, de acordo com uma pesquisa do Banco Central.

A intransigência, mesmo com a convulsão dos mercados, levanta preocupações entre os traders de que o país pode estar a caminho de um quadro conhecido como dominância fiscal. De fato, essa especulação está em alta nos bancos de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Um coro crescente de observadores do Brasil, desde o investidor veterano Luis Stuhlberger e o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga até representantes do Goldman Sachs e do Morgan Stanley, alertam para o risco de o país cair em uma armadilha na qual a expansão fiscal reduz o impacto da tentativa do Banco Central de apertar a política com taxas de juros mais altas.

O Banco Central brasileiro é um dos poucos em todo o mundo a aumentar os custos dos empréstimos.

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Neste mês, Roberto Campos Neto aumentou as taxas básicas de juros em um ponto percentual, para 12,25% ao ano, e a diretoria - em uma decisão unânime - sinalizou dois aumentos adicionais semelhantes até março, em uma mensagem que surpreendeu até mesmo os mais hawkish das previsões.

No entanto os investidores continuaram a se desfazer dos ativos brasileiros, exigindo ações concretas do governo para resolver a questão fiscal.

O real ampliou as perdas acumuladas no ano para 23%, enquanto os rendimentos dos títulos do governo local subiram para os níveis mais altos desde que a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment em 2016. Além disso, a curva local das taxas de swap ficou vendida, com os vencimentos mais longos sendo mais afetados.

A dominância fiscal está “se tornando parte da conversa”, disse Katrina Butt, economista sênior da AllianceBernstein em Nova York. “A formulação de política fiscal está claramente afetando a tomada de decisões da política monetária.”

Taxa de câmbio continua a se desvalorizar ao longo do segundo semestre principalmente

Os problemas que assolam o Brasil também têm muito em comum com uma crise de dívida de mercado emergente à moda antiga. O país tem um déficit orçamentário - nominal, com pagamento de juros - anual equivalente a cerca de 10% do Produto Interno Bruto - um dos mais amplos do mundo - enquanto sua dívida bruta começou a se expandir novamente e atingiu recentemente 78,6% do PIB.

Alguns economistas dizem que é muito cedo para declarar que as ferramentas do Banco Central perderam completamente sua eficácia. Eles ressaltam que Gabriel Galípolo, que em breve assumirá o comando do banco - em 1º de janeiro -, se compromete a apertar a política monetário o quanto for necessário para controlar a inflação.

O governo também pensa assim. A equipe econômica do Brasil não vê um quadro de dominância fiscal agora. Eles dizem que a política monetária é eficaz e já desacelerará o crescimento econômico.

O que diz a Bloomberg Economics

“Não achamos que haja evidências suficientes para declarar que o Brasil está passando por uma dominância fiscal - ou seja, que a política monetária perdeu sua capacidade de controlar a inflação ou influenciar a moeda. As oscilações dos preços dos ativos nos últimos dias refletiram vários fatores não econômicos, desde notícias sobre as condições de saúde do Presidente Lula até os desenvolvimentos na frente fiscal, reduzindo seu valor como evidência de como as taxas afetam os preços. A dívida pública do Brasil é alta e as perspectivas justificam alguma preocupação, mas não estamos nem perto das chances materiais de inadimplência.”

- Adriana Dupita, economista para o Brasil e para a Argentina.

Riscos sob a ótica do mercado

No entanto outros dizem que os riscos de um fracasso da política monetária aumentam.

Em uma carta recente aos investidores, Luis Stuhlberger disse que os formuladores de políticas do Brasil estão agora agindo “sob a sombra” do risco de dominância fiscal. Para Alberto Ramos, economista-chefe para a América Latina do Goldman Sachs, o país “flerta” com esse cenário.

Ioana Zamfir, estrategista do Morgan Stanley, escreveu em uma nota no início deste mês que o real poderia cair até 11% em relação aos níveis daquele momento, para R$ 7 por dólar, se o banco central não for eficaz.

Nos últimos meses, banqueiros centrais têm se manifestado contra esses temores, dizendo que a política monetária não perdeu seu poder e que eles não permanecerão passivos à medida que o cenário se tornar mais adverso.

As estimativas de inflação acima da meta causam “desconforto” entre todos os membros do Copom e “devem ser controladas”, escreveram na ata de sua última decisão sobre as taxas.

Leia mais: Juros estão ‘sem defesa’ diante de falta de ajuste fiscal, diz Carlos Kawall

Eles também alertaram sobre os efeitos dos gastos excessivos do governo, especialmente os programas de apoio social que transferem dinheiro para os pobres. Pesquisas recentes analisadas pelo Banco Central mostram que essas transferências de dinheiro podem estimular a economia mais do que se imaginava anteriormente.

"A desaceleração dos esforços de reforma estrutural e da disciplina fiscal, o aumento do crédito consignado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre o poder da política monetária", escreveram os membros do conselho em sua declaração monetária mais recente.

Mesmo com os aumentos das taxas, a economia brasileira continuou a crescer, com o desemprego perto de mínimos históricos e os salários em alta. E os temores de um calote são limitados pelo fato de o país possuir cerca de US$ 360 bilhões em reservas internacionais e pouca dívida externa.

Mas as expectativas de inflação se deterioraram significativamente, e os economistas preveem que os aumentos de preços permanecerão acima da meta do país até 2027.

É claro que é possível que Lula mude de postura caso a piora do mercado se torne insustentável. Há algumas especulações de que o presidente poderia fazer alguns comentários conciliatórios sobre o assunto já na sexta-feira (20), quando está programada uma reunião ministerial.

Mas é provável que quaisquer medidas não sejam suficientes para mudar a forma como os mercados veem seu governo.

Os investidores, muitos dos quais tiveram perdas por causa de apostas de alta nos ativos do Brasil ao longo do ano, não estão dispostos a conceder a ele o benefício da dúvida.

“É certamente uma preocupação para todos que estejamos no caminho da dominância fiscal”, disse Pramol Dhawan, chefe da equipe de mercados emergentes da Pacific Investment Management Co, a Pimco. “E em um país como o Brasil, você não precisa estar lá. Você só precisa sentir o ‘cheiro da cozinha’ para que as pessoas comecem a se preocupar.”

-- Com a colaboração de Giovanna Bellotti Azevedo, Simone Iglesias e Zijia Song.

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