Bloomberg — Quando Bashar Al-Assad fugiu para Moscou, os saqueadores começaram a invadir o palácio presidencial e as pessoas tomaram as ruas de Damasco para comemorar a queda do seu regime. O presidente sírio tentou se manter firme até o fim, enviando um SOS para qualquer um que quisesse ouvir, incluindo Donald Trump. O déspota havia esgotado todas as alternativas.
O mundo ainda busca compreender a velocidade dos acontecimentos nos últimos dias e o colapso de uma dinastia que devastou o país durante uma guerra civil catastrófica. Mas as implicações também são claras - e não menos importante, o risco de mais agitação e violência à medida que os grupos lutam pelo controle do país.
Assad conseguiu sobreviver à revolta popular contra ele por mais de 13 anos. Mas a mensagem de seus antigos aliados e inimigos era clara: ele está por conta própria desta vez. A Rússia, que havia salvado o regime sírio em 2015, só lhe ofereceu refúgio desta vez. O Irã lhe deu as costas, dizendo, em poucas palavras, que ele havia causado tudo isso a si mesmo.
Várias autoridades árabes e norte-americanas disseram à Bloomberg que um vácuo de poder agora pode ser perigoso.
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As lembranças de Muammar Qaddafi, na Líbia, e de Saddam Hussein, no Iraque, são muito presentes na região: em ambos os casos, os governantes entrincheirados foram derrubados, causando euforia inicialmente, mas logo os países entraram em uma turbulência profunda.
“O caos é esperado em transições, assim como a competição entre facções - até mesmo sangrenta”, disse Bader Al-Saif, professor assistente da Universidade do Kuwait e membro associado da Chatham House. “A Síria não tem sido estável há mais de uma década, dividida em enclaves e esferas de influência, além da decadência socioeconômica e política.”
O início do conflito na Síria em 2011 deslocou milhões de pessoas, provocando uma crise de migrantes que ainda hoje reverbera na política europeia. Seus vizinhos do Oriente Médio, enquanto isso, já lidam com as consequências da guerra de Israel contra o Hamas, em Gaza, e os combates com o Hezbollah, no Líbano.
A Rússia tem bases militares na Síria e buscará proteger seus interesses. Mas o Kremlin está ocupado com sua guerra na Ucrânia. O Irã, que tem feito ataques diretos a Israel nos últimos meses, também está enfraquecido. As autoridades árabes, no entanto, não esperam que a República Islâmica desista de manter sua influência na Síria sem lutar.
Queda relâmpago
O ritmo dos eventos que derrubaram Assad após mais de 50 anos de sua família no poder foi impressionante. Há pouco mais de uma semana, sua sobrevivência parecia quase uma conclusão precipitada.
Em seguida, os insurgentes liderados pelo grupo islâmico Hayat Tahrir al-Sham capturaram as cidades de Aleppo e Hama, antes de se aproximarem de Homs e Damasco, a capital.
Na manhã de domingo (8), os rebeldes assumiram o controle da estação de televisão e saudaram a “queda do regime criminoso de Assad”. Assad decidiu renunciar e deixou o país, informou posteriormente o Ministério das Relações Exteriores da Rússia.
O avanço dos rebeldes desfez um impasse na Síria, em que as forças de Assad, apoiadas por Moscou e Teerã, haviam retomado o controle da maior parte do país, com exceção de um reduto rebelde no noroeste e de um reduto curdo no nordeste.
Isso desencadeou uma situação política na qual muita coisa permanece incerta - principalmente a natureza do novo governo que está se formando em Damasco. Também não está claro se essa liderança será capaz de governar o país devastado pela guerra.
O clima refletiu essas preocupações na noite de domingo, quando foi imposto um toque de recolher e vários prédios que abrigavam agências de segurança e a autoridade de passaporte e imigração foram consumidos pelas chamas, com os moradores locais especulando sobre ataques israelenses.
“O medo hoje é que todas as facções estejam unidas contra um inimigo, mas acabarão sendo consumidas por lutas internas”, disse Bahjat Hajjar, cofundador de uma ONG chamada Madaniya, que fugiu de Damasco logo após 2011 devido à sua oposição a Assad.
Falando em uma conferência no Bahrein no domingo, Anwar Gargash, conselheiro do presidente dos Emirados Árabes Unidos, Sheikh Mohammed Bin Zayed, alertou sobre as ameaças à integridade territorial da Síria, uma “espiral de caos e violência” em andamento no mundo árabe e a perspectiva de “extremismo e terrorismo”.
A Arábia Saudita, que está envolvida nos esforços para moldar o período de transição na Síria, emitiu uma declaração no domingo alertando contra o “caos e a divisão”.
Enquanto isso, o presidente eleito Donald Trump deixou uma coisa clara: os Estados Unidos não intervirão para impedir que isso aconteça. Em uma publicação na plataforma de mídia social X no sábado (7), Trump escreveu: “A Síria está uma bagunça, mas não é nossa amiga.”
Os EUA designam o grupo rebelde HTS, que formou uma aliança com a al-Qaeda há mais de uma década, como uma organização terrorista. Desde então, o HTS tem procurado se projetar como uma força de união, mas muitas autoridades dos EUA e do Oriente Médio têm dúvidas.
"Os caras que estão assumindo o controle são terroristas, mas estão enviando algumas mensagens interessantes", disse Jason Greenblatt, ex-enviado ao Oriente Médio no primeiro governo de Trump. "Se eles perceberem que Trump está falando sério, que não vai tolerar isso e que, com sorte, vai galvanizar a região para lutar contra o terrorismo, eles devem descobrir uma maneira de obedecer."
Interesses cruzados
Ainda assim, os riscos e as oportunidades apresentados por uma Síria instável têm atraído uma miríade de potências estrangeiras desde 2011 e parece que continuarão a fazê-lo.
Mais de uma década de conflito deixou de 300.000 a 500.000 pessoas mortas, dizimou cidades e levou grande parte da população à pobreza. O Banco Mundial estimou que a economia da Síria encolheu em mais da metade até 2020, em relação ao nível anterior à guerra, de cerca de US$ 60 bilhões.
De acordo com dados do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o desemprego aumentou para quase 50% em 2020 e o índice de desenvolvimento humano da Síria retrocedeu 35 anos por causa da educação e dos serviços de saúde precários. Houve relatos de saques após a declaração de que o governo de Assad havia caído.
É provável que a Turquia tente capitalizar as oportunidades criadas pela queda de Assad após 24 anos para repatriar os milhões de refugiados sírios que vivem na Turquia. Para isso, Ancara pediu uma transição pacífica do poder.
"Estamos trabalhando pela estabilidade da Síria há muito tempo - conhecemos os atores", disse o ministro das relações exteriores da Turquia, Hakan Fidan, à mídia em um fórum em Doha no domingo. "Temos que trabalhar em conjunto com o povo sírio, não apenas com a Turquia, mas também com os atores regionais e internacionais, para garantir que haja um período de transição bom e tranquilo."
Em outro acontecimento, as forças terrestres israelenses cruzaram abertamente o território sírio pela primeira vez desde a Guerra de Outubro de 1973, informou o New York Times, citando duas autoridades israelenses.
Isso acontece quando o Irã se encontra na defensiva. O mesmo vale para a Rússia, que agora é necessária para preservar alguma estabilidade sem Assad, de acordo com Elena Suponina, uma especialista em Oriente Médio baseada em Moscou.
"A euforia síria poderia ajudar a gerar o tipo de unidade que precisamos ver", disse Charles Lister, membro sênior e diretor do Programa Síria do Instituto do Oriente Médio. "Mas depois de 14 anos de conflito feroz e divisão, a colina à frente é íngreme."
-- Com a colaboração de Onur Ant.
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