Como a região na fronteira entre Brasil e Guiana virou alvo de disputa com a Venezuela

Disputa territorial por área conhecida como Essequibo já chegou a um tribunal superior em Haia; Venezuela busca apoio de cidadãos por meio de um referendo

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Bloomberg Línea — Essequibo, Guiana Essequiba ou Zona em Disputa. Esses três títulos se referem a um território de pelo menos 159.500 quilômetros quadrados, onde vivem 128.000 pessoas de uma população de pouco mais de 800.000 na República Cooperativa da Guiana.

Essa região, rica em recursos naturais e ecossistemas, tem sido objeto de uma disputa de fronteira entre a Guiana e a Venezuela há dezenas de anos e objeto de tratados e acordos internacionais que não foram cumpridos ou simplesmente não deram uma resposta que pusesse fim às reivindicações de ambos os países.

Neste domingo (3), o governo de Nicolás Maduro organiza um referendo consultivo, questionando à população da Venezuela se o país deveria aderir às resoluções que definiram a região como parte da Guiana (leia mais informações abaixo).

O Essequibo é uma próspera área mineral e florestal e representa dois terços da área total da Guiana, o país que atualmente administra a região. Mas não se trata apenas de petróleo e gás, fontes que sustentam a economia atual do jovem país e lhe renderam o nome de “milagre sul-americano” por seu alto crescimento econômico nos últimos anos. Aqui explicamos o que está em jogo.

As riquezas e os recursos naturais de Essequibo

Foi o boom do petróleo em 2015, quando a ExxonMobil (XOM) encontrou extensas reservas de petróleo em alto-mar, que desencadeou a recente tensão com a Venezuela. Mas Essequibo esconde outras riquezas.

O maciço da Guiana é delimitado quase que inteiramente pelos rios Cuyuní e Essequibo, que cercam recursos naturais estratégicos.

A Vitalis Foundation afirma que o território de Essequibo é caracterizado por uma geografia distinta que lhe confere condições físicas e naturais especiais. Isso, por um lado, faz com que seja um espaço com uma grande variedade de espécies de flora e fauna, algumas das quais são endêmicas da área e, portanto, não podem ser encontradas em nenhum outro lugar do planeta.

No entanto, a fundação enfatiza que a falta de estudos científicos em algumas de suas regiões torna impossível quantificar com precisão seus índices de biodiversidade.

Em entrevista à Bloomberg Línea, Cecilia Gómez Miliani, líder global em Gerenciamento de Conteúdo Digital da Vitalis Foundation e diretora da Vitalis Academy, disse que Essequibo é dominado por vegetação arbórea, com uma abundância de espécies e alto potencial florestal.

“Por estar em um dos solos mais antigos do planeta, o Essequibo tem reservas de bauxita, ouro, diamantes e manganês, e há suspeitas de reservas significativas de urânio. A parte norte dessa região tem potencial agrícola, que abastece a população do país”, explicou ela.

Com relação à exploração de recursos na região, Gómez explica que a exploração de petróleo começou em 2017, mas que há estudos que apontam um aumento de 34% na atividade de mineração na área entre 2014 e 2022, com concessões outorgadas a mineradoras de pequeno e médio portes.

Além disso, soube-se que nas últimas duas décadas foi iniciada a construção de uma represa no Alto Mazaruní. De acordo com a ONG, os frágeis ecossistemas de Essequibo estão em risco, pois os projetos florestais e hidrelétricos implicam grandes alterações no meio ambiente para serem realizados. Isso pode levar à perda de espécies endêmicas e à alteração dos ciclos naturais.

É por isso que a Vitalis acredita que é necessário aplicar as normas de proteção aos ecossistemas no Esequibo, pois a adequação desses projetos deve estar sujeita à realização de estudos de impacto ambiental, a fim de avaliar quais as medidas de prevenção e mitigação a serem levadas em conta, e até mesmo a não implementação dos projetos.

“Nessa questão, que parece mais geopolítica do que ambiental, uma abordagem integrada para o gerenciamento de recursos na região de Essequibo é essencial para garantir a sustentabilidade ambiental, a conservação da biodiversidade e o bem-estar de longo prazo das comunidades locais. Essa abordagem não só beneficia a Guiana e a Venezuela, mas também contribui para o bem comum e a proteção de um patrimônio natural de valor global”, acrescentou Diego Diaz Martin, diretor administrativo da Vitalis para as Américas, em resposta à Bloomberg Línea.

Qual é o conflito entre a Venezuela e a Guiana?

As duas nações sul-americanas baseiam sua reivindicação territorial em duas frentes: a República da Guiana usa uma fronteira territorial estabelecida em 1899 em um tribunal de arbitragem em Paris como ponto de referência, e a Venezuela alega que é o Acordo de Genebra, assinado em 1966 com o Reino Unido, que estabelece a base para uma solução negociada, ignorando a sentença anterior.

Séculos atrás, a região de Essequibo era controlada pelo império espanhol, depois pelos holandeses e, mais tarde, pelo império britânico, que em 1899 recebeu o território por meio de arbitragem em um tribunal de Paris. A Venezuela não compartilhou dessa decisão.

Para desconsiderar a sentença arbitral, a Venezuela se baseia em evidências. Em 1949, um documento póstumo foi publicado no American Journal of International Law, escrito por Severo Mallet-Povost, que havia assessorado a Venezuela no tribunal, indicando que o presidente do tribunal arbitral de Paris havia coagido vários membros a direcionar sua decisão final em favor do Império Britânico. Foi assim que, em 1962, o país sul-americano parou de cumprir a arbitragem.

Apenas alguns anos depois, em 1966, foi assinado o Acordo de Genebra, produto de três anos de negociações, que buscava resolver a disputa entre a Venezuela e o Reino Unido da Grã-Bretanha sobre as fronteiras entre a Venezuela e a Guiana Britânica.

Esse acordo, assinado no mesmo ano em que a República da Guiana se tornou independente do Reino Unido, estabeleceu um prazo de quatro anos para se chegar a um acordo sobre a disputa, sob pena de se optar por um dos meios de solução de conflitos previstos no artigo 33 da Carta das Nações Unidas.

A partir de 1970, e sem nenhuma solução à vista, alguns efeitos do Acordo de Genebra foram suspensos por 12 anos por meio do Protocolo de Port of Spain, enquanto as duas nações continuavam a buscar uma solução.

E, embora desde aquela época a Venezuela tenha proposto negociações bilaterais, como aconteceu apenas em outubro de 2023, a Guiana recusou e propôs, desde o início da década de 1980, levar o assunto à Corte Internacional de Justiça (CIJ). Esta é uma instância jurídica que só foi consolidada em 2018, e na qual a Guiana remonta à sentença arbitral do final do século XIX.

A República da Guiana foi subestimada pela Venezuela?

Desde que o caso chegou à CIJ, após várias décadas de mediação da ONU e sem que a Guiana consolidasse esforços para chegar ao tribunal em Haia, o governo venezuelano reafirmou que a solução é o Acordo de Genebra.

No entanto, para Ricardo Salvador de Toma-García, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais com experiência no território de Essequibo, a Venezuela perdeu “oportunidades extraordinárias” para processos de negociação derivados de políticas de integração e cooperação econômica e cultural que estavam sendo implementadas sob o governo de Hugo Chávez.

Mas esse não foi o caso. “O governo de Hugo Chávez subestimou a capacidade de ação do Ministério das Relações Exteriores da Guiana, adiou indefinidamente certas situações, mas também foi tão permissivo que acabou sendo pernicioso e ofuscou o interesse nacional. Em 2004, o presidente Hugo Chávez, de Georgetown, disse ao chefe de estado guianense que a Venezuela não seria um obstáculo para que o governo fizesse concessões na área, desde que elas beneficiassem os habitantes da região”, disse Salvador à Bloomberg Línea.

E embora a declaração envolvesse projetos de desenvolvimento agrícola e hídrico, ela foi interpretada pela Guiana, como muitas outras declarações de Chávez, como “mecanismos de cessão solidária”. “Na ausência de declarações de oposição ou de esclarecimento de certas intenções, governos como o da Guiana entenderam que se tratava de um tipo de cessão e continuaram a aumentar a distribuição de concessões”, acrescentou.

E, por mais que ele não diga que a Venezuela perdeu a oportunidade de enfrentar a questão nos tribunais ou de chegar a uma solução que teria sido diferente anos atrás, ele explica que o momento geopolítico da reivindicação, de desenvolver estratégias geoeconômicas, “passou”.

Referendo consultivo sobre o Essequibo: a mais nova estratégia da Venezuela

Em um cenário que já tem muitas nuances, o governo de Nicolás Maduro decidiu acrescentar mais uma: realizar um referendo consultivo com cinco perguntas e participação maciça.

Nela, estão sendo indagadas questões complexas e fundamentais, como rejeitar ou não a Sentença Arbitral de Paris de 1899 – que não favorece a Venezuela – e concordar ou não com a posição da Venezuela de não reconhecer a jurisdição da Corte Internacional de Justiça, à qual a Guiana o fez em 2018.

Ricardo Salvador de Toma-García expressou sérias dúvidas sobre essa estratégia do atual governo venezuelano. “Parece que a reivindicação não foi compreendida pelo governo, porque em vez de responder adequadamente e preparar um caso e defender os interesses do Estado na CIJ, o governo agora está começando a desenvolver outros tipos de ações, invocando questões geopolíticas”, disse ele à Bloomberg Línea.

Em 19 de novembro, o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela realizou um referendo simulado, e os resultados foram “bem-sucedidos”, com um comparecimento histórico para esse tipo de exercício, de acordo com comunicados oficiais.

O comparecimento às urnas será neste domingo em 3 de dezembro, e os números recentes da empresa Dataviva mostram que 68,88% dos entrevistados pretendem votar no referendo, enquanto 31,12% disseram não querer participar. Há 20,6 milhões de cidadãos registrados e elegíveis para esse exercício democrático.

Mas para o doutor em Estudos Estratégicos Internacionais e Mestre em Sociedade e Fronteiras, o referendo consultivo parece ser “uma transferência de responsabilidade pela alta política externa da Venezuela para pessoas que não são necessariamente conhecedoras do direito internacional”.

E além dos resultados do referendo, que podem ou não acabar sendo favoráveis à Venezuela, Salvador explica que a CIJ emitirá uma decisão no futuro, com ou sem a participação do Estado venezuelano no processo, e que essa decisão terá “efeitos vinculantes”.

Discussão entre Venezuela e Guiana escala

Em setembro e outubro passados, houve uma nova troca de declarações entre a Guiana e a Venezuela em meio a essa disputa territorial.

Em 25 de setembro, o presidente Nicolás Maduro convidou seu colega guianense, Irfaan Ali, a participar de negociações bilaterais para pôr fim à disputa pelo território disputado da Guiana.

Porém, poucos dias depois, o governo de Ali afirmou em uma declaração que a disputa teria de ser resolvida na CIJ, negando o diálogo e rejeitando as acusações do governo Maduro de que a Guiana havia se tornado um “fantoche” das empresas petrolíferas e uma base militar dos Estados Unidos para “ameaçar a Venezuela”.

Foi assim que a embaixadora da Guiana na ONU, Carolyn Rodrigues-Birkett, expressou na 78ª Assembleia Geral desse órgão que “se a Venezuela realmente acredita que a melhor, ou a única, maneira de resolver a disputa é aderindo ao Acordo de Genebra de 1966, então ela deve aderir a esse Acordo e apresentar seu caso perante a CIJ, e aceitar a decisão da Corte quando ela for proferida”.

Diante da recusa em chegar a um acordo fora da CIJ, as autoridades venezuelanas emitiram um novo comunicado no qual classificaram o governo da Guiana como “subordinado” e “refém da transnacional Exxon Mobil, que a proíbe de retomar o diálogo soberano com a Venezuela e encontrar uma forma diplomática de resolver a controvérsia territorial da Guiana Essequiba”.

Da mesma forma, o governo venezuelano reiterou que não reconhecerá as determinações do tribunal sediado em Haia: “A República Bolivariana da Venezuela reitera que não reconhece o mecanismo judicial como meio de resolver a controvérsia, pois isso exclui a natureza e o propósito do Acordo de Genebra, que deve chegar a uma solução prática e satisfatória para ambas as partes”.

Até o momento, a CIJ não fez novas determinações e as datas das audiências ainda não foram definidas.

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