Cientista, ativista e presidente eleita do México: a trajetória de Claudia Sheinbaum

Primeira mulher que comandará o país latino é neta de avós judeus, fez balé quando jovem e concluiu doutorado em engenharia de energia. E foi a ‘escolhida’ por López Obrador como sucessora

La candidata Claudia Sheinbaum emite su voto en una casilla de la alcaldía Tlalpan, tras una hora de espera debido a la afluencia de votantes, Ciudad de México, 2 de junio de 2023
03 de Junho, 2024 | 05:48 PM

Bloomberg Línea — Claudia Sheinbaum Pardo tomará posse da cadeira presidencial herdada de Andrés Manuel López Obrador e o fará como a “obradorista mais leal e carregará como amuleto seus ideais, criados a partir do ativismo estudantil e como opositora do regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e do neoliberalismo.

O México terá sua primeira mulher presidente catapultada pelo Movimiento de Regeneración Nacional (Morena), o partido que López Obrador decidiu fundar em 2011, no dia 2 de outubro – um dia doloroso na memória dos mexicanos que relembra o massacre estudantil em Tlatelolco em 1968.

Sheinbaum entrou no serviço público no início do milênio e, desde 2018, é identificada como a “favorita” de López Obrador, o que significa que ela esteve sob os holofotes devido à sua proximidade com o líder do Morena.

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Mesmo assim, após anos de vida pública, há dúvidas sobre quem ela é e qual é a ideologia da mulher que prometeu cuidar do legado de López Obrador, dar a vida pelo povo e se reconciliar com os milhões de cidadãos que não votaram nela.

Sheinbaum é mulher, mãe de dois filhos, avó de um neto, filha, esposa, irmã, estudante, universitária, física, mestre em engenharia elétrica e doutora em engenharia, pesquisadora e ambientalista.

A convite de López Obrador, que, de 2000 a 2006, foi chefe de governo do então Distrito Federal, ela foi sua secretária do meio ambiente; em 2011, foi a fundadora do Morena; depois, chefe de Tlalpan de 2015 a 2017 e, em 2018, tornou-se a primeira mulher a ser chefe de governo da Cidade do México.

Mas Sheinbaum – aos 61 anos, com olhos redondos, pálpebras profundas e olhar direto – sempre foi e sempre será mexicana, dançarina, música, neta de avós judeus, ativista estudantil e filha de pais espionados porque o governo os tinha registrado como comunistas.

Infância: entre o balé e o massacre de Tlatelolco

Claudia Sheinbaum

De acordo com a ciência, são os primeiros anos da infância que determinam o futuro. Do nascimento aos seis anos de idade, as crianças desenvolvem seus cérebros e estabelecem suas personalidades. Claudia Sheinbaum viveu essa fase entre o balé e o Movimento Estudantil de 1968, que terminou no massacre de Tlatelolco.

Sheinbaum nasceu em 24 de junho de 1963 na Cidade do México, registrada por seus pais Annie Pardo Cemo e Carlos Sheinbaum Yoselevitz, ambos cientistas, de ascendência judaica e ativistas em 1968.

Ela cresceu dos 2 aos 12 anos de idade em Echegaray, uma área residencial no município de Naucalpan, estado do México, onde há uma comunidade judaica. “Tenho meu coração aqui em Naucalpan”, disse Sheinbaum em um comício de campanha.

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Ela estudou balé desde os seis anos de idade até o segundo ano da Faculdade de Ciências da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), onde se formou em física em 1989.

Sheinbaum cresceu no círculo acadêmico, científico e ativista de seus pais, que participaram do Movimento Estudantil de 1968, um movimento social que incluía estudantes da UNAM, do Instituto Politécnico Nacional (IPN), professores e intelectuais de outras universidades.

O movimento foi reprimido pelo presidente do PRI no poder, Gustavo Díaz Ordaz, que foi repudiado pelo movimento por representar a face do autoritarismo.

Sheinbaum tinha seis anos de idade quando ocorreu o massacre de Tlatelolco, enquanto sua mãe já estava registrada como comunista pela Direção Federal de Segurança, o aparato de espionagem dos governos do PRI de 1947 a 1985, que funcionou até mesmo como um centro clandestino de detenção temporária, de acordo com informações documentais do governo mexicano.

No comando dessa diretoria de espionagem estava Javier García Paniagua, um político do PRI que é pai de Omar García Harfuch, um dos colaboradores mais próximos de Sheinbaum como chefe de governo da capital e durante a campanha presidencial.

Ativismo e greve da UNAM

Claudia Sheinbaum

Aos 15 anos de idade, em 1977, Sheinbaum se envolveu no movimento de Rosario Ibarra de Piedra, ativista e política mexicana de esquerda que, juntamente com mulheres mães, buscava seus filhos desaparecidos pelo Estado por motivos políticos.

Sheinbaum, que então morava em uma grande casa no centro de Coyoacán, no sul da Cidade do México, muito perto da Preparatoria 6 da UNAM, cursou o ensino médio no Colegio de Ciencias y Humanidades, campus sul, e depois entrou na Faculdade de Ciências da UNAM por volta de 1980.

As sapatilhas de balé eram intercaladas com o remo, esporte que ela praticava como universitária em Cuemanco, um lago localizado na área de Xochimilco, ao sul da Cidade do México.

Foi nessa fase de sua vida – quando usava cabelos cacheados repicados, um penteado popular entre os afro-americanos nas décadas de 1970 e 1980 – que Sheinbaum decidiu, por convicção, estar na oposição do regime do PRI e participar ativamente das lutas estudantis.

Para o governo, ela já era uma pessoa que deveria ser espionada e monitorada. Registros da Direção Federal de Segurança informaram que Sheinbaum chegou à Cidade do México em um voo da Mexicana Airlines vindo de Havana, Cuba, em 4 de agosto de 1978.

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A jovem estudante havia participado do 11º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em Havana, que levava o slogan “Pela solidariedade anti-imperialista, paz e amizade” e foi aprovado pelo Partido Comunista de Cuba.

A espionagem continuou até 1986, de acordo com informações do Archivo General de la Nación, quando o Consejo Estudiantil Universitario (CEU) foi criado para protestar contra as reformas na UNAM que buscavam impor taxas de matrícula e eliminar a transferência direta do ensino médio para a universidade, entre outras exigências.

Sheinbaum estava prestes a concluir o curso de Física em 1989 quando a greve estourou na UNAM. Em 28 de janeiro de 1987, a jovem universitária adotou o uso das bandeiras vermelha e preta na universidade.

“Não vamos cair em provocações”, exclamou Sheinbaum para seus companheiros de luta. O movimento estudantil de 1986-1987 também quis enfrentar o neoliberalismo. Naquela época, o presidente do México era Miguel de la Madrid, que administrava uma crise econômica e um plano de austeridade.

Da sala de aula à política. E López Obrador

AMLo y Claudia Sheinbaum

No CEU, Sheinbaum compartilhou a luta com colegas que mais tarde conheceria na política.

Os nomes de Imanol Ordorika, Antonio Santos, Óscar Moreno, Carlos Ímaz, Rosario Robles, Salvador Martínez Della Rocca, Martí Batres, Hugo López Gatell e Alfonso Ramírez Cuéllar ressoaram quando o Partido da Revolução Democrática (PRD), o partido de oposição de esquerda ao PRI, foi fundado.

Nas eleições presidenciais de 6 de julho de 1988, o “sistema” de contagem de votos caiu e o então candidato do PRI, Carlos Salinas de Gortari, considerado um dos principais mentores do neoliberalismo no México, foi declarado vencedor da disputa.

O “sistema caiu” supostamente quando a maioria dos votos foi registrada em favor do candidato de oposição e de esquerda Cuauhtémoc Cárdenas.

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Naqueles anos, Sheinbaum se formou em Física, casou-se com Carlos Ímaz, sociólogo e líder da CEU que anos mais tarde, em 2004, se envolveu em um escândalo de corrupção; deu à luz sua filha Mariana (1988), passou a viver na atual área de Tlalpan e começou a planejar seu mestrado em Engenharia Elétrica (1990).

Continuou seus estudos de doutorado em Engenharia Elétrica (1994) no Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia, o que envolveu morar nos Estados Unidos por quatro anos. Ao retornar ao país, lecionou no Instituto de Engenharia da UNAM.

Dedicada ao mundo acadêmico, morando em San Andrés Totoltepec, em Tlalpan, com um carro na garagem e ostentando o logotipo do PRD, um dia, em 2000, ela recebeu um convite de López Obrador para fazer parte de seu governo.

Sheinbaum conta a anedota de que o político fez o convite em um bairro prestigioso e tradicional no sul da Cidade do México, que, a propósito, continua sendo uma das áreas favoritas dos colaboradores de López Obrador para discutir assuntos ou fechar negócios.

Foi dessa forma que Sheinbaum se tornou secretária do meio ambiente de 2000 a 2006, marcando o início de seu relacionamento com López Obrador e seu futuro político. Em 2006, ele foi candidato à presidência, mas Felipe Calderón, candidato do Partido de Ação Nacional (PAN), venceu a eleição, de acordo com a autoridade eleitoral.

López Obrador, que concorreu pelo PRD, acusou fraude eleitoral, e Sheinbaum ficou encarregada de defender o voto, contar e comparar as urnas, mas o resultado foi o mesmo: Calderón havia vencido.

Sheinbaum continuou ao lado de AMLO e participou como promotora fundadora do Morena, de modo que, em 2015, como porta-estandarte desse partido, foi eleita delegada-chefe de Tlalpan.

Em 5 de dezembro de 2018, aos 56 anos, ela se tornou a primeira mulher a ser eleita chefe de governo da Cidade do México.

“Se me dissessem, aos 30 anos, que eu seria chefe de governo, eu não teria acreditado. Eu estava no doutorado e não conseguia me imaginar em outro lugar que não fosse a universidade”, diz uma mensagem que a candidata de Morena escreveu na plataforma de candidatos do Instituto Nacional Eleitoral (INE).

Depois de chegar à liderança da capital do país, Sheinbaum foi acusada de ser a “favorita” de López Obrador como sua sucessora. O tempo provou que os observadores estavam certos.

Em um dia de setembro de 2021, López Obrador inaugurou uma agência do Banco de Bienestar em Tláhuac, na Cidade do México, um evento para o qual Sheinbaum foi convidada como chefe de governo da capital. Ao cortar a fita inaugural, López Obrador levantou o braço direito de Sheinbaum como se ela tivesse ganhado um cinturão do campeonato de boxe. Esse foi o sinal de que ela era potencialmente a escolhida.

Daquela data em diante, Sheinbaum ficou mais ativa e, em 2022, começou uma turnê pelos 32 estados do país, que passou pela entrega do bastão em setembro de 2023 e depois se estendeu para a pré-campanha.

“Meus pais sempre conversaram comigo sobre política e eu era até ativa no CEU, mas minha vida era a pesquisa. Até que um dia tomei a decisão de me envolver mais para mudar as coisas”, disse ela.

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Graduada em física, cientista e doutora

Claudia Sheinbaum

Sheinbaum se descreve como uma “cientista”. Ela se formou em física em 1989 e tem mestrado e doutorado em engenharia de energia pela Universidade Nacional Autônoma do México, a principal instituição de ensino superior do país, além de ter feito cursos na Universidade Stanford e na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.

Isso não impediu que fosse escolhida como sucessora pelo presidente López Obrador, que em outras ocasiões criticou os funcionários que frequentaram universidades no exterior por terem apenas “aprendido a roubar” e por terem uma mentalidade “elitista, classista e racista”.

A presidente eleita tem o posto de pesquisadora definitiva B do Sistema Nacional de Pesquisadores no Méxicos, nível II, com linhas de pesquisa sobre tendências de consumo de energia, elaboração de inventários de emissões de gases de efeito estufa, modelos de energia e emissões para o México e estudos sobre política e economia de energia, além de 49 publicações em revistas científicas.

Uma das conquistas de que ela se orgulha foi a de ser coautora de um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007.

Mas isso não significa que Sheinbaum seja uma vencedora do prestigioso prêmio sueco. O IPCC esclareceu em uma declaração que o Nobel foi concedido ao Painel como uma organização, e não a qualquer indivíduo associado e que é incorreto chamar de ganhador do Nobel qualquer funcionário ou cientista do IPCC que tenha trabalhado nos relatórios.

O prêmio até apontou que o IPCC concedeu certificados personalizados a cientistas que contribuíram substancialmente para os relatórios, como autores principais, editores de revisão e membros do bureau, mas não a autores contribuintes e revisores especialistas como Sheinbaum.

Aqueles que a conhecem no meio acadêmico a descrevem como ativista, mas não como líder, e dizem que ela fez pouca pesquisa desde que entrou para a política, e sempre publicou em grupo, e não individualmente.

Seu trabalho como pesquisadora se aproximou de seu trabalho como funcionária pública, especialmente como chefe de governo, com a instalação de uma usina solar no centro de abastecimento central e uma usina de reciclagem de lixo na Cidade do México.

Como candidata, suas propostas sobre energia foram alinhadas com a política de López Obrador de resgatar a Pemex e a CFE, sem considerar o fechamento de refinarias poluentes, como fizeram seus rivais Gálvez e Álvarez Máynez com os complexos de Tula e Madero.

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Personalidade

Sheinbaum é considerada perfeccionista e alguns de seus colaboradores acham que ela às vezes não tem muita paciência. Durante a campanha, em reuniões com empresários e banqueiros, ela optou por apresentar suas propostas com um vídeo e, para o azar de sua equipe, às vezes o vídeo falhava. Ela questionava as falhas técnicas com austeridade.

Ela provavelmente deve seu caráter à mãe, que era rígida com Sheinbaum desde que ela era criança. “Eram tempos diferentes”, justificou a futura presidente do México no documentário produzido por Rodrigo Ímaz, a quem ela criou como filho por não ser sua mãe biológica.

Sheinbaum, que se manteve fiel ao seu estilo de usar blusas de gola redonda e alta em cores lisas, casou-se em 17 de novembro de 2023 com Jesús María Tarriba Unger, um ex-colega de faculdade que ela reencontrou no Facebook nos últimos anos.

Tarriba Unger é especialista em risco financeiro no Banco do México (Banxico) desde 2017, uma instituição da qual Sheinbaum prometeu na campanha respeitar sua autonomia.

A futura presidente do México está ciente de que o critério pelo qual ela será avaliada será muito alto e que sua pessoa e sua gestão estarão sujeitas ao escrutínio público.

Mas ela parece entender e aceitar o desafio: “governar é tomar decisões e suportar as pressões geradas pela primeira decisão que está sendo tomada”.

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Zenyazen Flores

Jornalista mexicana especializada em finanças públicas e mercado de trabalho com mais de 10 anos de experiência. Já colaborou com mídias multiplataforma, como El Financiero Bloomberg e Grupo Milenio. É coautora do livro “Ayotzinapa. La Travesía de las Tortugas”.

Arturo Solís

Jornalista mexicano especializado em energia. Trabalhou como editor e repórter da Forbes México e é Bacharel em Jornalismo e Comunicação pela UNAM.