Boatos, desinformação e mentiras: a crise de confiança nas eleições dos EUA

Manipulações digitais e disseminação de falsas narrativas criam atmosfera de ceticismo com a democracia às vésperas do pleito, apontam especialistas e agências de inteligência

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Bloomberg — A desinformação tem permeado a eleição presidencial dos Estados Unidos de 2024 em uma escala sem precedentes, segundo as agências de inteligência.

Teóricos da conspiração e estrangeiros estão amplificando alegações não verificadas de fraude que ecoam as afirmações não comprovadas de Donald Trump de que o resultado não pode ser confiável caso ele seja derrotado nas urnas pela vice-presidente Kamala Harris.

Pessoas estão usando as plataformas de redes sociais, incluindo o X, de Elon Musk - um dos principais apoiadores do republicano -, para semear ceticismo entre os eleitores, circulando imagens falsas de cédulas destruídas e relatos falsos sobre locais de votação bloqueados.

Agentes ligados a adversários americanos, incluindo a Rússia, estão por trás de algumas das mais recentes fraudes relacionadas às eleições, de acordo com autoridades dos EUA e pesquisadores de desinformação.

Na sexta-feira (1), as agências de inteligência dos Estados Unidos responsabilizaram os agentes de influência russos pela fabricação de um vídeo que retratava falsamente migrantes haitianos votando no estado da Geórgia, que é muito disputado, como parte de um esforço mais amplo de Moscou para criar divisões nos Estados Unidos - assim como aconteceu nas eleições de 2016 e 2020.

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Grupos pró-voto alertaram que a disseminação intencional de rumores e falsidades pode fazer com que os americanos decidam não votar ou não confiar na integridade da eleição.

As dúvidas que estão sendo espalhadas por Trump e seus aliados - incluindo Musk, o homem mais rico do mundo - abrem espaço para que o ex-presidente conteste o resultado, assim como fez após sua derrota em 2020.

Desconfiança sem precedentes

“Há muita coisa louca acontecendo”, disse Carah Ong Whaley, diretora de proteção eleitoral da Issue One, um grupo apartidário de estudo focado em política eleitoral.

“Sempre tivemos informações falsas em eleições”, disse ela. “Mas em 2024, o grande volume de conjuntos diferentes de fatos e crenças sobre integridade eleitoral está em uma escala que não acredito que tenhamos testemunhado antes em nossas vidas.”

Os porta-vozes da X e das campanhas de Trump e Harris não fizeram comentários imediatos sobre o assunto com a Bloomberg News.

A confiança nos resultados eleitorais nos EUA diminuiu significativamente desde as últimas duas eleições, segundo pesquisas de opinião.

Apenas 28% dos republicanos afirmam confiar na precisão dos resultados em todo o país, uma queda em relação aos 44% em 2020 e 55% em 2016, de acordo com uma pesquisa Gallup divulgada em setembro.

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Já entre os democratas, 84% disseram estar confiantes nos resultados eleitorais, aumento em relação aos 76% em 2020, mas ligeiramente abaixo dos 85% em 2016. Além disso, 70% dos republicanos afirmam ter confiança na integridade do voto em seu local de votação, segundo os dados da Gallup.

Teorias da conspiração

Pesquisadores apontam que a falta de confiança nos resultados nacionais é, ao menos em parte, alimentada por conspirações divulgadas pela internet, de autoria original anônima e sem fatos para sustentá-las.

William Pelfrey Jr., professor de terrorismo doméstico na Universidade Commonwealth da Virgínia, afirma que “algumas dessas conspirações não fazem sentido, mas ainda assim estão se propagando e influenciando a fé das pessoas no processo eleitoral”.

Um exemplo é o vídeo falso que circulou nas redes sociais, supostamente mostrando pessoas na Pensilvânia rasgando cédulas, que foi rapidamente descartado pelo escritório do diretor de Inteligência Nacional dos EUA como obra de agentes russos. Vídeos falsos como esse têm reforçado dúvidas sobre a integridade eleitoral que foram expressas por republicanos proeminentes.

O candidato à vice-presidência JD Vance republicou um vídeo na última quinta-feira (31) que sugere que os democratas haviam impedido que as pessoas votassem no condado de Bucks, na Pensilvânia.

No entanto funcionários do condado de Bucks esclareceram no X que os eleitores que estavam na fila para solicitar um voto por correspondência foram brevemente informados de que não poderiam ser atendidos devido a um erro de comunicação.

O condado disse que os eleitores ainda terão a oportunidade de pegar a cédula pessoalmente ou enviá-la pelo correio.

Ainda assim, vídeos enganosos sobre o incidente continuaram a se espalhar, com alguns usuários acusando o governador democrata da Pensilvânia, Josh Shapiro, de suposta interferência nas eleições.

Musk ampliou essas alegações para seus mais de 200 milhões de seguidores no X, e Trump também afirmou em posts na sua rede Truth Social que houve fraude generalizada no estado, sem apresentar qualquer evidência.

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Propaganda estrangeira

Boatos sobre não-cidadãos votando ilegalmente também têm sido um tema de conspirações online, segundo especialistas em combate à desinformação.

Uma rede de contas falsas no X fingiu ser de estrangeiros que planejavam votar na eleição, segundo o Instituto para Diálogo Estratégico, uma organização sem fins lucrativos que defende políticas para combater o extremismo.

Um exemplo é uma conta que afirmou: “Vou votar ilegalmente em Donald Trump como cidadão europeu”. Essas postagens, incluindo uma que foi promovida com notificação por push, alcançaram mais de 11,7 milhões de visualizações na plataforma, e uma amostra de 50 contas na rede teve mais de 14 milhões de visualizações, segundo o ISD.

Além disso, grupos de propaganda fora dos EUA têm promovido mensagens semelhantes.

Uma rede de desinformação russa conhecida como Doppelganger tentou inundar as redes sociais com sites que se pareciam com veículos de mídia americanos, como o Washington Post e Fox News, segundo o Departamento de Justiça. Esses sites falsos publicaram conteúdo que difamava Harris e o presidente Joe Biden, além de criticar o apoio ocidental à Ucrânia.

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Efeito das redes sociais

As principais empresas de mídia social estão adotando uma abordagem mais cautelosa ao lidar com informações falsas ou enganosas na corrida de 2024 em comparação com os ciclos eleitorais anteriores.

O Departamento de Justiça disse em setembro que não pedirá às plataformas que removam postagens potencialmente prejudiciais que sejam atribuídas a incitadores estrangeiros.

Em 2020, o Twitter disse que ocultaria mensagens de figuras políticas proeminentes contendo informações falsas e prometeu alertar os usuários sobre conteúdo enganoso. Agora conhecido como X e sob a propriedade de Musk, a plataforma se tornou um paraíso para conspirações anti-imigração e acusações de que os democratas estão trabalhando para roubar a eleição.

O Facebook da Meta parou de rotular postagens envolvendo informações eleitorais e direcionar os usuários para seu centro de informações de votação, como fez em 2020. Também parou de recomendar postagens sobre política para a maioria dos usuários no Facebook, no Instagram e no Threads.

Checagem em baixa

Organizações externas que anteriormente sinalizavam falsidades foram em grande parte deixadas de lado, limitando a extensão ao alcance de monitores independentes e o que podem examinar de narrativas políticas que se tornam virais.

O Stanford Internet Observatory, que rastreava a desinformação, encerrou suas operações neste ano depois que legisladores republicanos e grupos conservadores acusaram os pesquisadores de censurar a liberdade de expressão online.

À medida que os esforços de desinformação se intensificam, as agências de inteligência em Washington aumentaram o ritmo de divulgação de tentativas estrangeiras de influenciar as opiniões políticas dos EUA.

Nas últimas semanas, o Departamento de Justiça, o FBI, o ODNI e as autoridades estaduais revelaram detalhes sobre esses esforços. A abordagem representa uma grande diferença em relação à forma como o governo Obama manteve silêncio sobre a interferência russa antes da eleição presidencial de 2016.

“O governo precisa se posicionar para controlar a narrativa, o que significa operacionalizar a inteligência”, disse George Barnes, ex-vice-diretor da Agência de Segurança Nacional.

“Você precisa agir com base na inteligência. Sim, no domínio secreto, mas também no domínio público. Você precisa ter a confiança da população.”

-- Com a colaboração de Chris Strohm, Natalia Drozdiak e Kurt Wagner.

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