A guinada - e as motivações - de Zuckerberg para se aproximar de Trump

Decisão da Meta de acabar com a checagem de fatos e de liberar ofensas de gênero e raça se aproxima da cartilha do presidente eleito, que foi um notório crítico da empresa ao longo dos anos

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Bloomberg — Não foi por acaso que a Meta escolheu o programa de notícias de TV favorito de Donald Trump, o Fox and Friends, para anunciar a decisão de abandonar a verificação externa de fatos. A medida, que afetará o conteúdo veiculado para centenas de milhões de usuários dos EUA em plataformas como Instagram e Facebook, visava, na verdade, a um público de apenas uma pessoa.

Foi o último cálculo em um esforço de meses do cofundador e CEO Mark Zuckerberg para reposicionar o gigante da mídia social como uma organização mais favorável a Trump após anos de conflito e tensão.

Ao explicar a mudança, Zuckerberg disse que os checadores de fatos externos da Meta “têm sido muito tendenciosos politicamente e destruíram mais confiança do que criaram, especialmente nos Estados Unidos”.

Seu recém-nomeado chefe de políticas, Joel Kaplan, ex-funcionário do presidente George W. Bush, com laços profundos com o Partido Republicano, articulou argumentos semelhantes sobre a liberdade de expressão nas plataformas da Meta.

É uma reversão drástica das políticas anteriores, que incluíram a proibição de Trump no Facebook após a invasão de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, sede do Congresso americano.

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Na campanha do ano passado, Trump chamou o Facebook de “inimigo do povo” e ameaçou prender Zuckerberg por suposta interferência nas eleições.

Desde então, Zuckerberg tem procurado forjar um relacionamento com o presidente eleito e seus principais aliados, com elogios a Trump publicamente, doação de US$ 1 milhão para seu fundo inaugural (para o dia da posse) e nomeação de um importante apoiador para o conselho da companhia.

Mudança política

A última medida pode ter o impacto mais abrangente em seu próprio império na internet: eliminar os controles de qualidade e os sistemas de verificação de fatos que Trump sempre odiou, em vigor apenas nos EUA por enquanto.

“Essa foi uma medida política, não uma medida de política”, disse Alexios Mantzarlis, diretor da Security, Trust and Safety Initiative da Cornell Tech e ex-diretor fundador da International Fact-Checking Network. Ele criticou Zuckerberg, que já havia celebrado o programa de verificação de fatos da Meta, por deturpar o trabalho e ignorar as pesquisas que demonstram seus benefícios.

“Os ventos mudaram”, disse Mantzarlis. “E Zuckerberg também.” Os porta-vozes da Meta não quiseram conceder entrevista para esta matéria da Bloomberg News.

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O esforço de Zuckerberg e da Meta para se alinharem melhor com o novo governo se deu por várias formas. Pouco depois de elogiar a reação de Trump a uma tentativa de assassinato durante a campanha como “durona”, Zuckerberg ligou para Trump para se desculpar pessoalmente por um rótulo de verificação de fatos errôneo que foi anexado a uma foto do ex-presidente.

Após a eleição, os dois jantaram na propriedade de Trump em Mar-a-Lago, na Flórida, na noite anterior ao Dia de Ação de Graças.

Durante o verão no hemisfério norte, Zuckerberg também acusou o governo Biden de pressionar sua empresa a retirar postagens e suprimir opiniões sobre a covid-19, ecoando uma reclamação recorrente que Trump tem expressado sobre as empresas de mídia social há anos.

Na semana que passou, a Meta nomeou o CEO do Ultimate Fighting Championship (UFC), Dana White, para o conselho de administração da companhia, adicionando uma das pessoas com quem Trump comemorou a vitória na noite da eleição.

Apoio de big techs

Zuckerberg está longe de ser o único grande chefe de tecnologia a demonstrar apoio a Trump. Elon Musk estava ao lado de Trump no dia da eleição, depois de organizar comícios em apoio ao candidato republicano durante a campanha. Ele participou de reuniões com CEOs de outras grandes empresas e liderou debates políticos sobre o que Trump deveria fazer antes mesmo de assumir o cargo.

O fundador da Amazon, Jeff Bezos, cancelou o endosso planejado pelo Washington Post para a candidata democrata Kamala Harris, enquanto a big tech também doou US$ 1 milhão para o fundo inaugural de Trump e supostamente concordou em pagar US$ 40 milhões para licenciar um documentário sobre Melania Trump.

Jensen Huang, cofundador e CEO da Nvidia, disse à Bloomberg News que esperava que Trump trouxesse menos regulamentações e que acolheu sua abordagem favorável aos negócios. ”Acho que isso é uma coisa boa”, disse Huang. “Como setor, queremos avançar rapidamente.”

Não está claro se o novo posicionamento de Zuckerberg é reflexo de uma mudança em suas crenças pessoais, se ele sempre pensou dessa forma ou se ele está fazendo uma jogada comercial calculada, de forma oportunista. No entanto o CEO da Meta tem incentivos claros para se dar bem com o novo governo.

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Durante seu primeiro mandato, Trump ameaçou vetar uma importante lei de gastos com a defesa dos EUA, a menos que o Congresso abolisse uma lei conhecida como Seção 230, que forma o escudo legal que as plataformas de redes sociais, como a Meta, usam para se proteger da maioria dos desafios legais relacionados ao conteúdo.

Adaptação e sobrevivência

A Meta também enfrenta um importante julgamento antitruste no final deste ano. A Comissão Federal de Comércio tenta desmembrar a empresa e forçar a Meta a separar alguns de seus produtos mais valiosos, incluindo o Instagram e o WhatsApp. Um relacionamento amigável com Trump poderia ajudar a evitar alguns desses desafios.

“Grande parte do futuro dessa empresa, desde a IA até a forma como pode operar, será muito influenciada pelas decisões que o governo Trump tomar - e eles estão tentando se adaptar a isso”, disse Katie Harbath, fundadora e CEO da Anchor Change, empresa de políticas tecnológicas sediada em Washington, que já foi diretora de políticas públicas do Facebook.

Harbath disse que Zuckerberg sempre tenta se adaptar a um novo governo - Trump, Biden ou outro - e sua equipe usa as eleições para fazer um balanço de "onde a sociedade está, para reajustar a forma como estão abordando o conteúdo" e tendo em mente "quem será o regulador".

“Vemos os movimentos como uma aposta política complexa, com potencial de retorno a curto prazo, mas também com risco a médio prazo”, escreveram os pesquisadores do BNP Paribas Exane em uma nota aos investidores na quarta-feira (8).

Ao melhorar o relacionamento com o governo Trump, Zuckerberg talvez possa influenciar uma decisão da Suprema Corte sobre a proibição do TikTok nos EUA, um concorrente importante da Meta, disse a empresa.

aA atualização da verificação de fatos n terça-feira (7) talvez tenha sido a mais simbólica das mudanças de Zuckerberg, dada a clareza com que aborda a maior frustração de Trump em relação às redes sociais, que é o fato de elas serem supostamente rigorosas quando se trata de policiar o conteúdo.

Em seu vídeo para explicar a mudança, Zuckerberg usou uma linguagem frequentemente associada a Trump para delinear a atualização, ao culpar “governos e mídias tradicionais” por pressionarem para “censurar cada vez mais”.

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Em vez disso, Zuckerberg disse que o Meta adotaria um novo produto de “notas da comunidade”, observando que seria semelhante ao X de Musk, que permite que os usuários regulares avaliem e votem sobre a precisão das publicações no serviço. “As recentes eleições também parecem ser um ponto de inflexão cultural no sentido de priorizar novamente o discurso”, acrescentou Zuckerberg.

‘Cosplay de Elon Musk’

Para muitos, o anúncio de Zuckerberg soou muito parecido com o de Musk, que se tornou um dos conselheiros mais próximos de Trump.

Zuckerberg chegou a anunciar que o Meta transferiria suas equipes de confiança, segurança e moderação para fora da Califórnia para “ajudar a eliminar a preocupação de que funcionários tendenciosos estejam censurando excessivamente o conteúdo”.

Musk já havia transferido a sede da X para fora da Califórnia, sob alegação de que isso foi motivado por sua crença de que São Francisco era muito esquerdista.

“Francamente, estou chocado com a maneira que Zuckerberg escolheu para fazer isso”, disse Mantzarlis. “Ele adotou uma abordagem muito agressiva e usou uma linguagem que, ironicamente, era extremamente carregada de política”, inclusive classificando a verificação de fatos como uma forma de censura.

Os rótulos de verificação de fatos da Meta não levam à remoção de conteúdo, mas fornecem contexto que desmascara informações falsas e reduz seu alcance, explicou Mantzarlis, algo que ajudou a criar os princípios de verificação de fatos que a empresa apoiava anteriormente.

"Ele estava basicamente fazendo cosplay de Elon Musk e prometendo liberdade de expressão para todos", disse Mantzarlis.

Na terça, a Meta também atualizou suas políticas sobre conduta odiosa.

Liberdade para ofensas de gênero e raça

Essas alterações, emitidas de forma mais discreta, incluíram novas disposições que permitem que seus usuários, às vezes, usem linguagem insultante “ao discutir direitos de transgêneros, imigração ou homossexualidade”, bem como argumentar a favor de limitações baseadas em gênero ou orientação sexual em empregos militares, policiais e de ensino.

A nova política também removeu as proteções contra a linguagem que descreve as mulheres como "objetos domésticos ou propriedade", bem como a linguagem desumanizadora focada em pessoas negras, transgêneros e não binárias.

"Não está certo que coisas possam ser ditas na TV ou no Congresso, mas não em nossas plataformas", disse Kaplan em um post no blog. Os tópicos sobre os quais a Meta suspendeu as restrições estavam entre o "discurso dominante", disse ele.

Trump e Musk ajudaram a levar esse tipo de retórica, especialmente em relação a imigrantes e transgêneros, para o mainstream. Seus comentários, às vezes falsos ou que violam as políticas anteriores de conduta odiosa do Meta, estimularam o engajamento e a indignação online.

Sarah Kate Ellis, presidente da GLAAD, organização de defesa da mídia para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e queer, disse em um comunicado que a remoção dos programas de verificação de fatos e das políticas relacionadas ao discurso de ódio tornará as plataformas da Meta inseguras para usuários e anunciantes.

“A Meta está dando sinal verde para que as pessoas tenham como alvo pessoas LGBTQ, mulheres, imigrantes e outros grupos marginalizados com violência, vitupério e narrativas desumanas”, disse ela.

O BNP Paribas Exane disse que o influxo de conteúdo mais extremo poderia afastar usuários e anunciantes das plataformas da Meta e atrair o escrutínio dos governos do Reino Unido e da Europa - riscos que os investidores devem avaliar.

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