Transição energética precisa de mais pessoas, diz chairman da Schneider Electric

Em entrevista à Bloomberg Línea, Jean Pascal Tricoire diz que transição a uma economia sustentável depende de mais profissionais para implementar projetos de eletrificação, com foco na demanda

Jean-Pascal Tricoire, chief executive officer of Schneider Electric SE, speaks during the Bloomberg New Economy Forum in Singapore, on Thursday, Nov. 17, 2022. The New Economy Forum is being organized by Bloomberg Media Group, a division of Bloomberg LP, the parent company of Bloomberg News. Photographer: Bryan van der Beek/Bloomberg
08 de Janeiro, 2024 | 04:50 AM

Bloomberg Línea — A transição energética entrou de vez na agenda de grandes empresas à medida que esse se tornou um dos pilares das metas globais de redução de emissão de gases de efeito estufa no Acordo de Paris, de 2015. Muito antes disso, no fim dos anos 90, a Schneider Electric elegeu a eletrificação como seu principal negócio. Para o executivo francês Jean Pascal Tricoire, chairman (presidente do conselho) global da Schneider Electric, o mundo já se encontra em um estágio em que não é a tecnologia, mas, sim, as pessoas, ou a falta delas em número suficiente, o principal entrave para que o mundo acelere a transição.

“As tecnologias que hoje existem são capazes eliminar 70% das emissões de carbono [...] O que precisamos são de mais pessoas com um foco especial na demanda por energia. Porque, quando discutimos sobre energia no contexto climático, as pessoas falam muito sobre oferta, sobre petróleo, gás, turbinas eólicas, energia solar e tudo mais. Mas, na realidade, a transição real de energia acontece quando a demanda se transforma”, disse Tricoire em entrevista à Bloomberg Línea em visita recente ao Brasil em 2023.

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O executivo francês, 60 anos, é um dos mais respeitados quando o assunto é sustentabilidade e transição energética. Ele comandou a Schneider Electric como CEO de 2006 a 2023 e trabalha na empresa francesa desde 1986, com experiência na Itália, na China, na África do Sul e nos Estados Unidos.

“Precisamos de milhares de pessoas para trabalhar em edifícios existentes, tornando-os digitais ou mais elétricos. Precisamos de milhares de pessoas para entrar em fábricas e torná-las mais elétricas e mais digitais. O mais importante são pessoas competentes”, afirmou Tricoire.

Desde que mudou a estratégia de negócios há mais de 20 anos, saindo da indústria pesada e avançando no tripé de eletrificação, sustentabilidade e digitalização, a Schneider Electric se consolidou como a líder mundial em soluções para a transição energética. Multiplicou por quatro os investimentos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) e por quase dez o seu valor de mercado, atualmente na casa de US$ 110 bilhões.

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Leia a seguir a entrevista com Jean Pascal Tricoire, editada para fins de clareza:

Afinal, o que é necessário para que o mundo acelere a transição para uma economia mais sustentável e isso se traduza em mais negócios para empresas como a Schneider Electric?

O que é necessário são mais pessoas. Isso resultará em uma criação maior de empregos no mundo. As tecnologias que hoje existem são capazes eliminar 70% das emissões de carbono. Portanto, as tecnologias existem. Precisamos implementá-las. O que precisamos são de mais pessoas com um foco especial na demanda por energia. Porque, quando discutimos energia no contexto climático, as pessoas falam muito sobre oferta. Elas falam sobre petróleo, gás, turbinas eólicas, energia solar e tudo mais.

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Mas, na realidade, a transição real de energia acontece quando a demanda se transforma. Vou dar um exemplo. Os carros não serão elétricos porque há mais eletricidade. Os carros serão mais elétricos porque alguém projeta um carro elétrico bom, atraente e eficiente, que seja mais barato no futuro do que um com motor de combustão interna.

O trabalho da Schneider é contribuir para a transição da demanda. Quando fazemos isso, significa que precisamos de milhares de pessoas para trabalhar em edifícios e fábricas existentes, tornando-os digitais ou mais elétricos. O mais importante são pessoas competentes.

Por que existe esse descompasso?

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É preciso uma mudança de mentalidade. Historicamente, leva muito tempo para os humanos integrarem o poder das novas tecnologias. Vamos pegar a internet como exemplo. A primeira internet provavelmente estava disponível nos anos 90. E levou cerca de 20 anos para criarmos o Uber ou o Facebook. Mas aqui temos uma urgência, que é a mudança climática. Não temos 20 anos para tornar todos os edifícios mais eficientes, todas as fábricas mais eficientes, todas as cidades mais eficientes.

Precisamos nos adaptar e, quando falamos sobre pessoas, precisamos de dois tipos muito complementares. Precisamos de pessoas que são consultores para sustentabilidade, eletrificação, digitalização e assim por diante.

E precisamos de pessoas que sejam capazes de implementar essas tecnologias. E isso cria muitas oportunidades. Na Schneider, temos um papel na educação. Temos várias ações com universidades e escolas profissionais para ajudar a capacitar as pessoas para esses negócios do futuro.

Qual o potencial desse mercado?

Vou abordar duas mega-tendências que temos hoje. Qualquer pessoa que eu conheça hoje que seja CEO de uma empresa tem duas agendas no topo. Uma é a digitalização e a outra é a sustentabilidade. A boa notícia é que o maior catalisador para a sustentabilidade é a digitalização. Portanto, as duas caminham juntas.

No final do dia, sua jornada para a sustentabilidade começa com a medição de tudo. Você precisa saber para onde vai a sua energia, para onde vão os seus recursos, para onde vão seus resíduos. E ser sustentável é simplesmente eliminar todos os seus resíduos.

Isso significa que o que é bom para a ecologia também é bom para a economia. Porque se você conseguir operar a mesma fábrica ou a mesma instalação com menos recursos, está economicamente se saindo melhor. O que fazemos é conduzir as duas agendas junto com nossos clientes. Começa primeiro pela digitalização para que a empresa saiba o que está acontecendo. Depois há uma segunda fase em que definimos a estratégia com nossos clientes.

Quais as principais oportunidades diante desse cenário?

A Schneider tem uma vantagem: não somos apenas médicos, como acabei de descrever, mas também somos farmácias porque no mundo temos 200 fábricas. Sabemos o que é trabalhar na indústria.

Isso significa que podemos trazer soluções. Podemos trazer uma solução para edifícios inteligentes, para a indústria inteligente, para medição inteligente, para ajudar nossos clientes a evoluir. Se quisermos descarbonizar o mundo, precisamos ser, em primeiro lugar, mais eficientes. Em segundo lugar, mais elétricos. Em terceiro lugar, mais digitais.

O mundo em que vivemos hoje é apenas 20% elétrico. É o caso no Brasil hoje. Todas as previsões que qualquer pessoa está fazendo hoje para o futuro dizem que o mundo será de duas a três vezes mais elétrico nos próximos 30 anos. É uma revolução importante. É óbvio dizer, por exemplo, que os carros serão mais elétricos. Mas os prédios também serão mais elétricos.

O Brasil tem uma chance única, pois tem eletricidade descarbonizada que vem de hidrelétricas e de fontes renováveis. O Brasil é um dos poucos países que não apenas será mais elétrico mas de forma nativa será elétrico sem carbono. E isso é uma enorme oportunidade.

Quando falamos sobre digitalização, estamos apenas no início desse processo. A primeira parte da digitalização foi a internet das pessoas conectando tudo e mudando completamente nossa vida. Agora você faz suas declarações de impostos digitalmente, conhece pessoas digitalmente. O segundo episódio da digitalização é a Internet das Coisas (IoT).

Estamos apenas começando. Hoje, se eu olhar qualquer país, qual seria a proporção de edifícios que estão digitalizados? Talvez menos de 5%, certo? Muitas fábricas ainda não são digitalizadas. A IoT será acelerada pelo 5G. Tudo controlado com software e IA aplicada também a tudo. Portanto, essa conexão de IoT, big data em IA e em software, está criando uma capacidade poderosa para a economia se tornar mais eficiente.

Essas inovações estarão presentes no nosso dia a dia mais rápido do que podemos imaginar? Sim. E eu acredito que onde estamos hoje e de 2025 a 2030 é um ponto de inflexão. Porque a digitalização traz economias imediatas de custos, e a eletricidade já é mais barata que a [fonte de energia a combustível fóssil] tradicional. O que precisamos são de arquitetos e designers integrando essa capacidade em seus projetos e pessoas capazes de implementar.

A Schneider é um exemplo vivo. Multiplicamos o tamanho da empresa por quatro ao apostar nesse tripé de sustentabilidade, digitalização e eletrificação nos últimos 20 anos. Portanto, crescemos muito mais rápido do que o restante da indústria. Multiplicamos nosso investimento em P&D por quatro e multiplicamos o valor da Schneider por quase dez no mesmo período, o que está muito acima da média da indústria.

Portanto, no momento em que estamos olhando para o futuro, sabemos para onde esse futuro está indo. Organizamos com a Agência Internacional de Energia (AIE) o congresso mundial sobre eficiência energética, que aconteceu em Paris [em junho de 2023]: governos, empresas, 700 pessoas presentes.

A conclusão foi a seguinte: em primeiro lugar, a tecnologia existe. Em segundo, é tudo uma questão de pessoas e cultura. Precisamos treinar e implementar. Em terceiro, a mais alta prioridade em toda a transição energética é a eficiência energética. Em quarto lugar, o futuro será digital e elétrico.

Qual é o papel de governos nesse processo?

Acho que todos concordam que o papel do governo é incentivar e acelerar a mudança. É preciso oferecer incentivos para as pessoas migrarem de despesas em cima de combustíveis fósseis. Todos os dias eu pago gás, eu pago combustível, que estão emitindo [gases de efeito estufa].

É preciso mudar esse dinheiro para que incentive investimentos verdes, despesas de capital verdes, para que eu possa trocar meu veículo tradicional por um elétrico, minha caldeira a gás por uma bomba de calor. Para que eu possa equipar meu prédio com medição digital.

Esse investimento tem um retorno muito rápido. O investimento em eficiência tem um retorno de cerca de três anos ou menos de três anos na maioria dos casos. E, com a digitalização, ainda mais curto. Então esse é o papel do governo. Além disso, incentivar a educação nessas especialidades.

O senhor tem liderado a estratégia da Schneider Electric no tema da transição energética e da sustentabilidade desde os anos 2000. Sob a perspectiva das metas globais de redução de emissões, o mundo corporativo já trata a questão com a devida prioridade?

Estou feliz que finalmente as empresas, muitas das quais mais antigas, tenham percebido sua responsabilidade não apenas econômica mas também socioambiental. E isso se deve a alguns pontos.

Primeiro, houve uma conscientização com a COP 21 [em Paris em 2015] sobre a necessidade ambiental. Depois, o grande impulso veio dos investidores. E então eu diria que a covid criou a percepção de que muitas soluções estavam vindo dos negócios para o clima, para pandemias, para desigualdade social. Vemos agora um movimento global de empresas na mesma direção.

Dados mostram que há uma conscientização e que investidores exerceram muita pressão. Isso foi provavelmente o ponto de virada. Os investidores estão responsabilizando CEOs e conselhos de admnistração não apenas pelos aspectos financeiros mas também pelos não financeiros.

Neste momento em que mais empresas estão em busca desse objetivo mais amplo da transição energética, como a Schneider faz para se manter à frente dos concorrentes?

Investimos mais em capacidade para tecnologias, mas, principalmente, em pessoas. Porque o que enfrentamos hoje é que nossos clientes querem que sejamos seu parceiro, seu conselheiro de confiança no campo da sustentabilidade e da digitalização. E isso toma a forma da Indústria 4.0 como o conselheiro na industrialização. No campo da cibersegurança também.

Quando uma empresa, por exemplo, precisa eletrificar seu processo, seja na indústria química ou em outras formas de infraestrutura, temos arquiteturas que podem ajudar a definir como converter, por exemplo, um processo baseado em combustíveis fósseis em um processo elétrico.

Somos o maior fornecedor de infraestrutura de energia para data centers do mundo. Isso se aplica ao Brasil. E trabalhamos junto com nossos clientes no espaço industrial, de infraestrutura, para criar um gêmeo digital completo desde o momento em que se projeta algo até o momento da operação.

Como funciona esse gêmeo digital?

Todo mundo fala sobre o metaverso hoje. Eu argumentaria que estamos fazendo o metaverso no espaço industrial há pelo menos cinco anos, em que o cliente pode ter sua planta, sua manufatura, ou estação de tratamento de água e esgoto, completamente digitalizada.

Você pode treinar seus operadores com realidade aumentada virtual para qualquer tipo de acidente ou problema que possa ocorrer: incêndios, vazamentos, desligamentos, de forma completamente virtual.

Você tem 30.000 pontos conectados que enviam todos os seus dados e então você aplica a IA. Portanto, o metaverso empresarial é algo que já podemos fornecer em grande escala.

The Schneider Electric SE stand at the Enlit energy conference in Cape Town, South Africa, on Tuesday, May 16, 2023. Africa’s most industrialized economy has been dogged by rotating blackouts since 2008. Photographer: Dwayne Senior/Bloomberg

Em 2022, a Schneider adquiriu a participação remanescente na Aveva, de soluções de software. Considerando a transformação dos últimos 20 anos, como o senhor enxerga a empresa nos próximos cinco a dez anos?

Os últimos 20 anos da Schneider são um exemplo vivo de tudo o que estou descrevendo. Multiplicamos por 15 o nosso tamanho em soluções digitais. E isso inclui o software da Aveva. Multiplicamos por 60 o que fazemos no campo da sustentabilidade.

Chegamos a um patamar em que 70% de nosso faturamento é dedicado a soluções de sustentabilidade. Multiplicamos por quatro o nosso tamanho em eletrificação. Já éramos líderes mundiais e agora somos de longe a maior empresa em eletrificação da demanda no mundo.

Se olharmos para o futuro, será ainda mais digital, ainda mais sustentável. Comprometemo-nos em três anos a direcionar 80% de nosso faturamento para a sustentabilidade. Vamos ser 60% digitais.

E vamos ser mais uma empresa de software. Esses novos produtos criam dados, toneladas de dados. E, uma vez que você tem dados, seu cliente diz: “Não estou interessado apenas em dados, estou interessado no sentido dos dados”.

E foi aí que começamos a desenvolver software, IA e assim por diante, que hoje representam 10% do nosso faturamento. Então você vai ver mais dessa empresa de software. No momento em que falamos, a Schneider já está entre as 30 principais empresas de software em todo o mundo. Mas é um software especializado em energia, indústria, eficiência e sustentabilidade.

Eu sempre digo às nossas pessoas, aos meus colegas na Schneider, que devemos ser os executores da mudança climática. Porque podemos resolver a equação inovando em soluções que nos permitam aproveitar ao máximo a energia e os recursos. Precisamos conciliar o progresso com a sustentabilidade.

Precisamos levar energia para mais 3 bilhões de pessoas nos próximos 20 anos, os 800 milhões que não têm acesso à eletricidade hoje, além dos outros 2 bilhões de pessoas que se juntarão a nós na Terra. Muitos deles na África, no Oriente Médio, na América Latina. E precisamos levar energia para todos eles.

A Schneider está presente nos principais países desenvolvidos. E o senhor mencionou essa demanda no mundo em desenvolvimento. Como conciliar os investimentos diante dessa necessidade que não pode ser atendida ao mesmo tempo de forma ampla?

Hoje somos um caso um tanto único no mundo. Somos 50% países desenvolvidos e 50% países emergentes. Não há muitas empresas assim. A prioridade nos países desenvolvidos é modernizar tudo, pois o modelo atual é obsoleto para o futuro. Ele é carbonizado. Portanto, precisamos ser mais eficientes, mais elétricos, mais eficientes e mais descarbonizados.

Isso significa modernizar muitos edifícios e muita infraestrutura. Isso está relacionado com o tema da Lei de Redução da Inflação nos EUA. Recuperar uma infraestrutura que foi construída há 150 anos e reconstruí-la de forma sustentável. Isso custa muito dinheiro. É modernizar dez vezes mais rápido.

Agora, olhamos para as novas economias. A prioridade é construir do zero, atingir o zero líquido [em emissão] desde o início o máximo possível. Sou pragmático. Vai ser difícil para pessoas que não têm muitos recursos construir completamente com zero líquido. Mas é possível construir e não cometer os erros do mundo desenvolvido no passado.

Eu diria que todos os países em desenvolvimento vão construir nos próximos 30 anos o equivalente a metade do que já existe de edifícios no mundo. Isso é equivalente à China e à Europa hoje, mais um pouco, provavelmente o Japão.

Mas vou dar o exemplo da Europa, que tem hoje muitos edifícios e 75% são ineficientes. A Europa faz o retrofit do equivalente a 0,5% da base a cada ano. Se continuarmos com a metodologia existente, vamos terminar em 150 anos. E a Europa se comprometeu a atingir o zero líquido em 30 anos. A única maneira de modernizar dez vezes mais rápido é usar soluções elétricas e digitais.

Vou fazer uma analogia. Nos anos 90, o objetivo da humanidade não era sobre energia, era sobre digitalização. Naquela época, éramos 5 bilhões de pessoas no mundo e apenas 10% tinham acesso a uma linha telefônica.

Vamos avançar 30 anos: hoje 90%, 95% das pessoas no mundo têm acesso à digitalização. Como conseguimos esse milagre, sendo que, nesse meio tempo, nos tornamos 8 bilhões de pessoas? Simplesmente mudamos de tecnologia. Passamos de linhas terrestres para sem fio. Tornamos a implantação muito mais rápida.

No campo da energia, será exatamente a mesma coisa. Se quisermos passar de 75% dos edifícios ineficientes na Europa para 0%, temos que alavancar novas tecnologias.

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Marcelo Sakate

Marcelo Sakate é editor-chefe da Bloomberg Línea no Brasil. Anteriormente, foi editor da EXAME e do CNN Brasil Business, repórter sênior da Veja e chefe de reportagem de economia da Folha de S. Paulo.