Bloomberg — Os executivos da Nike fizeram uma descoberta surpreendente no início da década de 1990.
O gás bombeado para as solas dos tênis Nike Air criou um amortecimento excepcionalmente resistente. Mas as moléculas grandes e fortemente ligadas do hexafluoreto de enxofre também o tornam o gás de efeito estufa mais potente do planeta – 24.300 vezes mais potente que o dióxido de carbono.
Os Air Jordan e outros tênis populares da Nike, ao que parece, superaqueceram o planeta tanto quanto metade dos carros do estado natal da empresa – o Oregon.
A gigante dos tênis gastou dezenas de milhões de dólares nos 14 anos seguintes para encontrar um substituto, acabando por declarar em 2006 que havia eliminado todos os gases estufa de seus tênis.
No entanto, em vez de desaparecer nos anais da história do clima, o problema ambiental de décadas da Nike de repente se tornou relevante novamente – e expõe uma fraqueza fundamental no mercado de crédito de carbono atual.
Isso porque a Nike (NKE), ao concluir seu trabalho de substituição de gás há duas décadas, decidiu transformar suas reduções de hexafluoreto de enxofre em um projeto de compensação de carbono.
Isso permitiu que a empresa vendesse créditos por suas emissões eliminadas a outras entidades, que poderiam então subtrair essa quantidade de poluição de seus próprios relatórios ambientais.
A Nike recebeu cerca de 8 milhões de créditos de carbono – aproximadamente o equivalente às emissões anuais de uma grande usina de carvão – do antecessor do American Carbon Registry (agora chamado ACR), um dos poucos registros sem fins lucrativos que sustentam o mercado de carbono.
O projeto da Nike ganhou pouca força na época, e ninguém usou nenhum desses créditos em quase uma década. Mas o projeto ressurgiu no início deste ano de 2024, quando mais de 1,2 milhão de créditos da Nike apareceram, exatamente no momento em que o mercado de compensações de carbono tenta corrigir alegadas falhas crônicas que o levaram a uma espiral.
Os créditos da Nike apareceram no buffer pool da ACR, que é um grande estoque de créditos que funciona como uma apólice de seguro no caso de um de seus projetos de carbono sofrer uma perda massiva. Se um incêndio florestal devastar uma floresta protegida, por exemplo, os créditos do buffer pool substituem os créditos incinerados, preservando assim as reivindicações atmosféricas do mercado.
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Todos os principais registros do mercado de carbono usam buffer pools para se proteger contra esses contratempos.
No entanto esses mecanismos de seguro foram recentemente examinados por acadêmicos e grupos de reflexão por não armazenarem créditos suficientes para garantir reversões, principalmente porque a mudança climática exacerba incêndios florestais, secas e pragas que prejudicam as florestas.
A ACR há muito tempo se recusou a informar quais créditos estão em sua buffer pool.
Quando finalmente revelou o conteúdo no início deste ano, os créditos da Nike representavam 19% do pool de seguros, mais do que o dobro de qualquer outro projeto. A ACR disse que adicionou os créditos da Nike ao buffer pool, mas não quis explicar o motivo.
O projeto da Nike é considerado controverso há muito tempo, mesmo nos primórdios do mercado. “Foi um projeto de certa forma notório para nós que atuamos no mercado de carbono norte-americano há quinze anos”, disse Derik Broekhoff, cientista sênior do Stockholm Environment Institute.
Cerne dos questionamentos
Supõe-se que os créditos de carbono representem reduções de emissões que ocorrem devido à promessa de pagamentos – um conceito conhecido como “adicionalidade”. Esse padrão diferencia a atividade digna de crédito da atividade favorável ao clima que teria ocorrido de qualquer forma.
Pense em uma reserva natural que se abstém de cortar suas próprias terras. Como essas árvores já estavam seguras, protegê-las não seria uma compensação confiável.
A adicionalidade é o que permite que um comprador de créditos de carbono afirme que seu pagamento causou uma mudança nas emissões atmosféricas (ainda que, por outro lado, esse crédito possa servir como incentivo adicional para a sua preservação).
Esse não foi o caso da Nike.
A gigante dos tênis havia prometido pela primeira vez em 1997 eliminar gradualmente os gases que aquecem o planeta de seus calçados, em meio a reações contrárias de grupos ecológicos e reguladores europeus.
Em uma série de e-mails, os funcionários da Nike confirmaram que seus esforços para eliminar o hexafluoreto de enxofre foram motivados por regulamentações futuras, e não foram influenciados por pagamentos de carbono.
Tudo isso deveria significar que as reduções de emissões da Nike basicamente não têm valor como créditos de carbono. E, no entanto, a solução da Nike para seu próprio problema com o ar agora ajuda a respaldar a integridade de longo prazo de dezenas de outros projetos de carbono.
“Se um projeto não é adicional, não tem por que estar em uma buffer pool”, disse Mark Trexler, um consultor que ajudou a Nike a medir sua pegada de carbono pela primeira vez na década de 1990.
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O que diz a Nike
As autoridades corporativas da Nike dizem que a empresa acabou decidindo não vender a maioria dos créditos. “A Nike se orgulha de nossos esforços de redução de emissões e continua na vanguarda das ações do setor”, disse um porta-voz em um e-mail à Bloomberg News.
Os funcionários da ACR, por sua vez, não quiseram ser entrevistados. Mas os representantes da ACR disseram em e-mails que o esforço da Nike Air de duas décadas atrás continua sendo um projeto de carbono confiável.
Em vez de avaliar as motivações de cada projeto individual caso a caso, o ACR e outros registros normalmente exigem que os projetos ultrapassem limites, como provar que sua atividade favorável ao clima não foi exigida por lei ou realizada para aumentar os lucros. O projeto da Nike, segundo eles, atendeu a esses requisitos.
Os funcionários da ACR também enfatizaram que ela possui “sistemas robustos e aplicáveis” para se proteger contra reversões em suas pontuações de projetos de carbono.
Nenhum projeto da ACR recorreu ao buffer pool depois de sofrer um revés não intencional, embora isso possa mudar em breve como resultado de um incêndio florestal ocorrido em julho que queimou um de seus projetos florestais na Califórnia.
Isso expõe um problema enfrentado pelos mercados de carbono, que têm lutado contra uma onda de relatórios que mostram que muitos projetos proporcionam menos benefícios climáticos do que o anunciado.
Os compradores se retraíram, e as compras voluntárias de créditos de carbono caíram de US$ 2 bilhões em 2021 para US$ 700 milhões no ano passado, de acordo com o Ecosystem Marketplace.
Algum tipo de seguro de longo prazo é fundamental para que os créditos de carbono funcionem. Isso porque esses créditos supostamente anulam o impacto da queima de combustíveis fósseis, que deposita novo dióxido de carbono na atmosfera por centenas ou milhares de anos. Para que a matemática dê certo, os projetos de carbono precisam eliminar o CO2 por um período de tempo igualmente longo.
Mas muitos projetos de compensação armazenam CO2 em ecossistemas frágeis, propensos a liberar novamente gases que retêm o calor.
“O aspecto desagradável do dióxido de carbono é que, quando o bombeamos para a atmosfera, ele permanece lá, efetivamente, para sempre”, disse Grayson Badgley, cientista pesquisador da CarbonPlan, uma organização sem fins lucrativos que estuda soluções climáticas. “Isso significa que, se você quiser criar uma compensação, precisa ter algo que se assemelhe a essa permanência.”
Os registros dependem de buffer pools para resolver isso. Qualquer projeto que possa sofrer uma reversão é obrigado a colocar alguns créditos, geralmente entre 10% e 20% do total, em uma conta de seguro compartilhada.
Se um incêndio florestal acabar com um projeto florestal e enviar milhares de créditos de carbono para a fumaça, um número equivalente de créditos será cancelado do buffer pool, tornando a atmosfera completa.
Os pesquisadores têm alertado sobre os perigos das buffer pools subcapitalizadas.
Acadêmicos da Universidade da Califórnia em Berkeley descobriram no ano passado que um grande grupo de projetos florestais no Verra, o maior registro de carbono do mundo, subestimou os riscos de incêndios e outros distúrbios naturais por um fator de dez.
Da mesma forma, a CarbonPlan constatou que os projetos florestais no mercado de carbono da Califórnia já haviam sofrido mais de 95% das perdas por incêndios que deveriam ocorrer ao longo de 100 anos.
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A temporada de incêndios deste verão foi particularmente ruim. A CarbonPlan identificou pelo menos seis projetos de carbono florestal nos EUA que sofreram danos substanciais em incêndios em cerca de 31.160 hectateres e provavelmente causaram a reversão de centenas de milhares de créditos de carbono.
Erros humanos também podem causar danos. Um dos maiores projetos de compensação do mundo, um esforço de proteção florestal no Zimbábue conhecido como Kariba, recentemente se retirou do programa Verra depois de superestimar amplamente seus benefícios climáticos.
A Nestlé, a McKinsey e várias outras empresas haviam comprado mais de 20 milhões de créditos de Kariba para cumprir seus compromissos ambientais. A depender do que acontecer com o projeto, a Verra poderá eventualmente precisar usar até 40% de seu buffer pool para compensar esses créditos.
“Quando a buffer pool inevitavelmente falhar, o que acontecerá... ninguém estará por trás dele”, disse Nandini Wilcke, cofundador e diretor de operações da CarbonPool, uma das várias empresas que trabalham para desenvolver novos tipos de seguro para projetos de carbono.
“O que acontece com todos os outros projetos que deveriam ser cobertos pelo pool?”
As autoridades de Verra afirmaram que seu buffer pool continua forte e que atualizaram as ferramentas de medição de risco para considerar melhor os impactos climáticos em mudança em seus projetos.
As autoridades da Califórnia, por sua vez, afirmaram que sua conta de buffer é robusta e que estudam se ela precisa ser ajustada à medida que as temporadas de incêndios florestais se tornam mais intensas. Os operadores do projeto Kariba não responderam aos pedidos de comentários.
A Nike não é o único projeto supostamente preocupante a aparecer no buffer pool da ACR.
Projetos brasileiros de energia renovável
Três projetos brasileiros de energia renovável respondem por mais de 1 milhão de créditos, ou 16% do total. Os créditos de projetos de energia renovável são criticados há muito tempo porque a construção de energia limpa é geralmente mais barata do que as alternativas de combustíveis fósseis; e é improvável que pequenos pagamentos de carbono desequilibrem a balança para a construção de novas usinas de energia.
“Os parques eólicos seriam construídos de qualquer forma”, disse Haroldo Maia, ex-diretor financeiro da Santos Energia, desenvolvedora de um dos projetos brasileiros no buffer pool da ACR.
Os créditos de carbono, acrescentou ele, representam “uma receita extra que não foi prevista na modelagem financeira da empresa”. O porta-voz da ACR disse que os créditos dos projetos brasileiros de energia renovável foram “verificados para atender à adicionalidade e a outras exigências”.
Não está claro exatamente como os projetos brasileiros chegaram à conta de reserva da ACR. O registro se recusou a comentar sobre isso. Os projetos ligados a turbinas eólicas não são obrigados a colocar nada no pool, já que os benefícios climáticos envolvidos não são vulneráveis a reversão.
O ACR, como alguns outros registros, permite que os operadores de projetos comprem outros créditos para colocar no buffer pool em vez de seus próprios créditos.
Para especialistas como Grayson Badgley, da CarbonPlan, essa falta de clareza não é satisfatória. “O buffer pool deveria ser um substituto: ‘Se algo acontecer ao seu crédito, eu o substituirei por outro que seja igualmente bom’”, disse. “Temos de levar muito mais a sério a questão da permanência.”
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