Bloomberg — O antigo mantra da tecnologia “move fast and break things” (“mova-se rápido e quebre coisas”, em tradução livre) há muito tempo foi um dos princípios orientadores do movimento das criptomoedas. O problema é: muitas coisas realmente quebraram, o que deixou um longo rastro de colapsos e processos criminais em seu caminho.
No entanto muitas das tochas acesas na fase de “mova-se rápido” estão agora sendo carregadas – embora em um ritmo mais lento –, por um grupo improvável: as mesmas instituições financeiras tradicionais das quais os criptoativos esperavam se desassociar.
Embora nada disso seja tão empolgante quanto os antigos dias de “Dogecoin rumo à lua”, as inovações em blockchain estão cada vez mais sendo apropriadas e aprimoradas para a tarefa mais entediante – mas muito importante – de simplificar partes da infraestrutura de Wall Street.
Os frequentadores de conferências de criptomoedas até notaram uma mudança no estilo: menos moletons e mais ternos e gravatas.
No mês passado, o JPMorgan (JPM) expandiu sua plataforma de pagamentos baseada em blockchain para permitir que clientes corporativos usem euros, e o banco está explorando maneiras de ampliar uma plataforma de tokenização de ativos que já negociou mais de US$ 785 bilhões em valor nocional (valor de face).
O Goldman Sachs (GS) busca aumentar a emissão de títulos tokenizados por meio da plataforma de ativos digitais que lançou em novembro passado.
Gigantes institucionais como BlackRock (BLK) e Fidelity estão entre uma série de empresas que solicitaram a criação de fundos de índice (ETFs) de bitcoin nas últimas semanas, enquanto uma exchange de criptomoedas foi lançada recentemente com o apoio da Citadel Securities, do bilionário Ken Griffin, bem como da Fidelity e da Charles Schwab.
“Pode parecer que tudo está acontecendo de repente. Mas, na verdade, estamos vendo os frutos de muitos anos trabalhando duro nos bastidores e resolvendo problemas a partir da perspectiva de uma instituição financeira regulamentada”, disse Tyrone Lobban, chefe de blockchain e da plataforma Onyx Digital Assets no JPMorgan, sobre os esforços do banco em relação à tokenização.
Oportunidade à vista
O caos em cascata desencadeado pelo colapso de players de criptomoedas não regulados ou pouco regulados, como a FTX, pode ter criado uma nova oportunidade para as tradicionais empresas de Wall Street.
Em uma recente pesquisa da EY-Partheon com investidores institucionais, “clareza e supervisão regulatória”, assim como “entidades financeiras comprovadas e confiáveis para interagir”, foram classificadas como os dois fatores mais importantes ao realizar um investimento significativo em ativos digitais.
“Descentralização”, objetivo de muitos projetos de criptomoedas que buscam eliminar intermediários financeiros, ficou em sétimo lugar, distante das primeiras posições.
E muitos dos esforços de Wall Street no momento vão exatamente na direção oposta: em vez de eliminar intermediários financeiros, eles estão apenas tentando usar a tecnologia blockchain para tornar as transações envolvendo esses intermediários mais eficientes.
“Quase toda semana você vê algum banco ou gestor de ativos dizendo que está tokenizando um título ou um fundo”, disse Prashant Kher, diretor sênior da EY-Parthenon focado em mercados de ativos digitais. “Estamos trabalhando nos bastidores com muitos bancos e gestores de ativos para apoiar essas iniciativas.”
Tokenização
Mas Wall Street não está entrando no business de vender memes coins nem as criptos que desencadearam ações de fiscalização dos Estados Unidos contra empresas como a Coinbase Global (COIN).
Mesmo empreendimentos com foco em criptomoedas em si – em oposição aos que se concentram mais especificamente na utilização da tecnologia blockchain - estão mais contidos. A EDX Markets, uma exchange de criptomoedas recentemente lançada com o apoio da Citadel Securities, da Fidelity e da Schwab, oferece negociação em apenas quatro moedas.
Na própria plataforma da Fidelity, apenas o Bitcoin e a Ethereum estão disponíveis. Wall Street parece feliz em deixar os cantos mais arrojados do mercado de criptomoedas para os entusiastas mais fervorosos.
Em vez disso, o foco está em como ativos do mundo real podem ser convertidos em tokens digitais para criar eficiências de negociação e desenvolver novas oportunidades permitidas por blockchains e contratos inteligentes.
Analistas do Citigroup (C) estimam que até 2030 haverá cerca de US$ 5 trilhões de títulos do setor privado tokenizados, algo que vai abranger desde dívida corporativa e garantias de financiamento até ativos alternativos, como imóveis, private equity e venture capital.
Outros US$ 5 trilhões podem ser movidos para novos tipos de moedas, como as digitais emitidas por bancos centrais (CBDCs) e stablecoins.
É claro que há muitos exemplos de ambições grandiosas em blockchain que acabaram sendo exageradas.
Em 2015, a Santander Innoventures - um fundo de investimento em fintech afiliado na época ao Santander - e a consultoria Oliver Wyman previram que as blockchains poderiam reduzir os custos de infraestrutura dos bancos em até US$ 20 bilhões por ano até 2022. Desnecessário dizer que isso não se concretizou.
Em um exemplo de destaque, a bolsa de valores da Austrália, a ASX, anunciou em novembro passado que estava reavaliando os planos de substituir sua plataforma de liquidação e compensação por um sistema baseado em blockchain, após várias dificuldades. A bolsa disse que iria registrar custos antes de impostos de até 255 milhões de dólares australianos (US$ 168 milhões) relacionados ao projeto.
Alguns obstáculos para uma adoção mais rápida do blockchain incluem a cautela dos reguladores e a dificuldade de despertar interesse em substituir sistemas e processos que não estão com problemas.
“Temos mercados de capitais que cresceram e se desenvolveram ao longo de cem anos e ninguém realmente os projetou para serem como são e terem evoluído ao longo do tempo”, disse John Whelan, diretor administrativo de criptomoedas e ativos digitais no banco corporativo e de investimento do Santander. “Mas, na verdade, funciona.”
O Santander, juntamente com o Société Générale e o Goldman Sachs, liderou a emissão de um título digital do Banco Europeu de Investimento em novembro.
Além disso, o Santander é acionista da Fnality, uma empresa sediada em Londres que desenvolve versões digitais de moedas importantes para serem usadas em pagamentos no atacado e transações de títulos digitais.
Isso permitiria a liquidação instantânea de negociações de ativos como títulos tokenizados. Assim como muitos outros projetos de blockchain, a Fnality levou mais tempo do que o previsto. No entanto, uma versão digital da libra esterlina britânica deverá ser lançada até o final do ano, afirmou o CEO da Fnality, Rhomaios Ram, em uma entrevista.
Desafios com blockchain
A recente série de testes e experimentos com blockchain também resultou em um problema não intencional: falta de interoperabilidade entre todos os novos sistemas propostos, o que ameaça tornar ainda mais complexos os sistemas que estão tentando simplificar.
“Acabamos com uma infraestrutura de mercado digital complexa”, disse Hirander Misra, presidente e CEO da GMEX Group, de infraestrutura de mercado. “Além disso, as instituições financeiras, como bancos, têm opiniões diferentes sobre tokenização e uso de blockchains públicos, privados ou de ambos os tipos.”
Outro obstáculo tem sido a falta de envolvimento dos clientes de Wall Street, embora isso esteja começando a mudar. “Acreditamos que, se pudermos criar mais tokenização de ativos e títulos, que é o que o Bitcoin é, podemos revolucionar novamente as finanças”, disse Larry Fink, CEO da BlackRock, em uma entrevista para o canal Fox Business nesta semana.
A gestora de ativos britânica abrdn tem trabalhado para tokenizar seus fundos, incluindo aqueles para mercados monetários e mercados privados, e também integrar a tecnologia de registros distribuídos em seus processos internos. Outras gestoras de ativos, como Hamilton Lane e KKR, também têm trabalhado na tokenização de fundos.
“Por que demorou tanto? É preciso que o mercado se una”, disse Duncan Moir, gerente sênior de investimentos da equipe de alternativos da abrdn. “Você iria a um mercado para apenas um produto? Provavelmente não. Esse mercado precisa ter uma variedade de opções para fazer com que as pessoas passem pelos desafios de adesão.”
Negociações mais eficientes
O Goldman Sachs tem trabalhado com clientes na criação de títulos tokenizados em diferentes classes de ativos usando a plataforma digital que lançou em novembro.
Mathew McDermott, chefe global de ativos digitais do Goldman, pode listar uma série de benefícios potenciais para a empresa e seus clientes. A liquidação é realizada em fração de tempo. Existem potenciais eficiências operacionais, redução de riscos e mais funcionalidades, como a capacidade de negociar com maior precisão.
“O que é importante para os principais agentes do mercado, incluindo reguladores, é entender os motivadores comerciais para adotar essa tecnologia”, disse McDermott. “E à medida que a adoção aumenta, esses motivadores comerciais se tornarão mais prevalentes.”
A plataforma Onyx Digital Assets do JPMorgan permite que instituições financeiras criem representações tokenizadas de ativos tradicionais, como títulos do Tesouro dos EUA, que podem ser usadas como garantia em transações de operações compromissadas, uma base do sistema financeiro na qual os bancos dependem para empréstimos de curto prazo.
Essa tokenização permite que as negociações sejam programáveis, ou seja, o código pode conter instruções sobre quando os pagamentos devem ser feitos.
Por exemplo, uma negociação pode ser programada para durar apenas três horas, e o dinheiro emprestado com base em garantias é devolvido automaticamente ao credor quando o prazo expira. Nas operações compromissadas tradicionais, as transações normalmente são desfeitas pelo menos um dia após terem sido acordadas.
Lobban disse que a plataforma está negociando atualmente entre cerca de US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões por dia entre as contrapartes, incluindo outros grandes bancos.
Isso ainda é uma pequena parte desse mercado, mas a aspiração de longo prazo é abrir a plataforma para permitir transações nas quais o JPMorgan não seja uma contraparte em cada negociação.
O banco continua a adicionar mais clientes e buscará expandir os casos de uso e as garantias além dos títulos do Tesouro, disse Lobban. O JPMorgan já percebe economias e novas fontes de receita, afirmou Lobban.
“Depois que você vê, não consegue mais ignorar”, disse ele. “Implementamos alguns desses casos de uso e você pode ver que é mais rápido, mais barato e reduz o vai e vem.”
- Com a colaboração de Olga Kharif e Muyao Shen.
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