Trens de passageiros no Brasil? Projetos enfrentam barreira para atrair investidores

Com obras complexas e que se arrastam por anos, a expansão do modal é cada vez mais incerta no país mesmo após o leilão do Trem Intercidades (TIC), que promete ligar São Paulo a Campinas

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Bloomberg Línea — Diante de um cenário macroeconômico complexo no Brasil e no mundo, as perspectivas para o setor de transporte de passageiros sobre trilhos tornam-se ainda mais incertas no país. Com projetos que se arrastam por anos, o modal tem sido deixado de lado, com interesse cada vez menor dos investidores.

O último grande projeto colocado no mercado foi o Eixo Norte do Trem Intercidades (TIC), que promete ligar São Paulo a Campinas com viagens de baixa e média velocidades.

O leilão, promovido em 29 de fevereiro pelo governo de São Paulo, foi arrematado em lance único por um consórcio liderado pelo grupo Comporte, da família Constantino (dos irmãos fundadores da Gol), com a gigante chinesa de material ferroviário CRRC.

A CCR (CCRO3), que estudava o ativo, ficou de fora da disputa. Segundo uma fonte próxima à companhia, que falou sob anonimato porque as discussões são privadas, as condições para o leilão não foram satisfatórias para o grupo de infraestrutura, um dos maiores do país, embora sua posição de destaque no segmento de mobilidade urbana em São Paulo fosse propícia para a briga pelo ativo.

Para fontes ligadas às empresas e ao governo paulista ouvidas pela Bloomberg Línea, era esperado que a disputa fosse restrita.

Na avaliação do diretor de infraestrutura do Banco Fator, Ewerton Henriques, quando um projeto vai a mercado e tem apenas um licitante, isso gera incertezas.

“A disputa com lance único levanta questionamentos sobre a capacidade de o vencedor realizar o projeto. Em dez anos de discussões sobre o TIC, a CCR demonstrou que participaria [do leilão] e se mostrava a mais capacitada para executar o serviço”, diz.

Para o sócio da prática de direito público e regulação do escritório Lefosse, Eduardo Carvalhaes, quanto maior e mais complexo o projeto, menor a quantidade de concorrentes na disputa. “O capex necessário para viabilizar a primeira fase do TIC é muito grande, isso limita bastante o número de players no leilão.”

Ele acredita que o poder público vem tentando dar mais prioridade ao modal ferroviário, em meio a décadas de domínio das rodovias no país. Para o advogado, o êxito do TIC pode ser um catalisador para novas iniciativas. “Se o projeto for implementado com sucesso, talvez outros saiam do papel, embora o custo de capital no Brasil e no exterior esteja mais caro no geral.”

Henriques pondera que a CCR era a mais cotada para arrematar o leilão do TIC, principalmente por ser uma grande operadora do setor metroferroviário. O executivo destaca que o traçado do projeto concorre, em certa medida, com uma das concessões rodoviárias do grupo. “A ausência da CCR na disputa levanta preocupações sobre a viabilidade do projeto do TIC Eixo Norte.”

Segundo apurou a reportagem da Bloomberg Línea, diversas empresas – de infraestrutura a mercado financeiro – estudaram o leilão do TIC. No entanto, o volume de investimentos previsto de mais de R$ 13 bilhões e a alta complexidade do projeto afastaram os grupos.

Neste contexto, o leilão foi arrematado com um deságio de apenas 0,01%. A Comporte, que lidera o consórcio vencedor, atua no setor de transporte rodoviário de passageiros. Em dezembro de 2022, venceu uma disputa para operar o Metrô de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Anteriormente, viabilizou o projeto do VLT (veículo leve sobre trilhos) de Santos a São Vicente, na Baixada Santista.

O diretor do Banco Fator observa que ainda não é possível avaliar a capacidade de gestão da Comporte no projeto de Belo Horizonte, já que o certame é relativamente recente. Ele alerta, porém, para a ligação do grupo com a Gol, que está em processo de recuperação judicial (Chapter 11) nos Estados Unidos.

“A Gol vem apresentando dificuldades financeiras relevantes. Isso coloca em dúvida a capacidade do grupo [Comporte] de realização dos investimentos e obrigações do contrato do TIC, que exige aporte considerável e uma alavancagem muito grande”, afirmou.

Atratividade

Logo após o certame, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), comemorou o resultado. “Este leilão abre um ciclo de novos investimentos em projetos ferroviários e nos dá a oportunidade de sonhar. Por que não fazer outros trechos?”, disse durante o evento na B3, em São Paulo.

Freitas afirmou que o governo paulista pretende leiloar, em 2025, um novo trecho do TIC, que ligará São Paulo a Sorocaba. Há ainda um terceiro trecho, ligado à Baixada Santista, que faz parte dos planos do governo para completar projeto.

Para o sócio do Castro Barros Advogados, Paulo Dantas, o primeiro leilão do TIC vai servir de modelo para eventuais novos trechos. “O sucesso desse projeto vai ser determinante para o que vai acontecer daqui para frente”, disse.

Mesmo com uma contrapartida do governo de São Paulo de cerca de R$ 8 bilhões em investimentos, o lance único do consórcio e o deságio praticamente inexistente são sinais de que o investidor tem dificuldades de enxergar o setor como uma boa aposta.

“É uma particularidade do modal de trens de passageiros, não só aqui como no mundo. O estado tem que criar condições para que as pessoas possam se locomover e uma delas é viabilizar esses projetos”, disse Dantas.

Eduardo Carvalhaes, do Lefosse, observou que durante a última década o transporte de passageiros sobre trilhos teve exemplos mal sucedidos no Brasil, em meio a projetos da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016.

“Vemos algumas iniciativas locais acontecendo, de menor porte, mas no geral projetos grandes parecem uma realidade distante, com metrôs nos grandes centros sendo o principal desafio do poder público”, avaliou.

Ele acrescentou que os incentivos ao setor são escassos. “Não temos tantos operadores ferroviários de passageiros de grande porte no Brasil. Para o TIC sair do papel, o projeto ficou anos em discussão.”

Trem-bala

No início do ano passado, a empresa TAV Brasil recebeu autorização para construir um trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro. O trem-bala é um desejo antigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas neste caso não contará com recursos do governo por se tratar de um projeto de responsabilidade 100% privada.

O fundador da consultoria Inter.B e ex-economista do Banco Mundial, Cláudio Frischtak, relata que esse tipo de sistema sobre trilhos foi construído ao redor do mundo basicamente com recursos do estado. “Um projeto de trem de alta velocidade custa caríssimo, é difícil se sustentar em bases privadas”, avaliou.

No caso do trecho Rio-São Paulo, o especialista ressalta que o projeto já teve outras tentativas no passado, mas acabou sendo abandonado por falta de viabilidade econômica. O projeto original começou a ser gestado há cerca de 20 anos.

“Os modais aéreo e rodoviário são muito eficientes entre as duas cidades. No passado, chegou-se à conclusão que não existia mercado para um trem de alta velocidade entre Rio e São Paulo. Além disso, os atuais operadores do trecho podem reduzir as tarifas de tal maneira que o trem acaba ficando inviável”, esclarece.

Outro ponto crucial é o traçado. Segundo Frischtak, para ganhar o título de trem-bala é preciso uma velocidade de 300 km/h. “Os requisitos de engenharia e operação são extremamente restritos, incluindo raio de curvatura e qualidade dos trilhos, que também conta muito nesse tipo de projeto. É tudo muito caro e complexo.”

Ele lembra que projetos totalmente novos - os chamados greenfield - no setor de ferrovias demoram de forma significativa no Brasil. “São projetos que sistematicamente demoram muito e custam mais caro do que o previsto. Muitas vezes, acabam alicerçados com recursos públicos”, afirmou Frischtak.