Bloomberg — Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobrevoou as áreas de enchente no Rio Grande do Sul no domingo (5), ele observou não apenas a devastação que deixou pelo menos 107 pessoas mortas e 165.000 desabrigadas, mas também um momento decisivo para o seu mandato.
Além da destruição, os desastres naturais, como o dilúvio recorde que atingiu o estado, têm um enorme poder de remodelar a política de um país.
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Em 2005, a resposta considerada lenta do então presidente George W. Bush ao furacão Katrina nos Estados Unidos, em Nova Orleans, prejudicou ainda mais seus índices de aprovação, que já estavam em declínio, e causou uma queda de dois dígitos na percepção de sua capacidade de gerenciar uma crise.
Em contrapartida, as reações consideradas positivas ao modo como Barack Obama lidou com o furacão Sandy, na costa leste e em Nova York, em 2012 proporcionaram um impulso muito necessário nas pesquisas às vésperas de uma eleição que o democrata acabou vencendo.
Lula tem plena consciência da potência de crises repentinas, dizem assessores próximos. Dois anos atrás, ele aproveitou a raiva popular sobre a forma como Jair Bolsonaro manejou o combate à pandemia de covid-19 para obter uma vitória apertada na corrida presidencial.
Agora ele enfrenta sua própria calamidade, que pode ajudá-lo a deter uma queda na popularidade ou alimentar sentimentos cada vez piores sobre a trajetória do país e enviá-lo para um caminho sem volta.
“Este é o momento ‘Katrina’ do governo”, disse Thomas Traumann, consultor de comunicações do Rio de Janeiro. “Para o terço da população que odeia Lula, tudo o que ele fizer será ruim ou insuficiente. Mas há um terço que está observando a resposta de seu governo. E a negligência de Bolsonaro em relação à pandemia está muito fresca na mente dos brasileiros.”
A tragédia consumiu o governo de Lula desde que ele viajou para o Rio Grande do Sul ao lado dos principais ministros de seu gabinete e dos principais líderes do Congresso no fim de semana, desviando a atenção da agenda do governo no legislativo, da presidência do G20 e do planejamento para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) em 2025.
A viagem, organizada às pressas, tinha como objetivo unir os membros do governo que vinham discutindo publicamente sobre planos tributários e outras medidas legislativas, para que pudessem rapidamente ajudar a região, de acordo com três autoridades familiarizadas com o planejamento interno.
Na tarde de segunda-feira (6), Lula havia assinado um decreto para isentar o auxílio emergencial das regras fiscais de 2024, abrindo caminho para que sua equipe econômica – liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pela ministra do Planejamento, Simone Tebet – desenvolvesse medidas específicas de auxílio.
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Nesta quinta-feira (9), Haddad apresentou um pacote de auxílio no valor de R$ 50,9 bilhões que inclui crédito subsidiado e outras medidas destinadas a ajudar trabalhadores, beneficiários de programas sociais e produtores rurais, bem como empresas, estados e municípios.
O governo planeja apresentar um auxílio adicional para as vítimas das enchentes na próxima semana, disse Lula durante um evento em Brasília. Uma proposta de alívio da dívida deve ser finalizada para o estado do Rio Grande do Sul para atender às necessidades de reconstrução de estradas e infraestrutura.
Lula, cuja filosofia de governo está enraizada na ideia de que o governo deve fazer mais para prover para o seu povo, se esforça para evitar a percepção de que ficou aquém do esperado em uma crise: ele advertiu seus ministros contra conflitos internos e disse a eles para desenvolverem uma resposta da qual possam se orgulhar no futuro, de acordo com as pessoas familiarizadas, que pediram anonimato para discutir assuntos internos.
Ele também ordenou que sua equipe não discuta com adversários políticos, dizendo-lhes que priorizem as soluções, independentemente de quem as apresente.
A tragédia tomou conta do Rio Grande do Sul em um momento em que a fé dos brasileiros na capacidade de realização de Lula parece estar diminuindo: seu índice de aprovação caiu 10 pontos, chegando a 50%, desde agosto passado, de acordo com uma pesquisa da Quaest divulgada na quarta-feira (8). A desaprovação aumentou 12 pontos, chegando a 47% no mesmo período.
A resposta inicial do governo federal às enchentes recebeu notas positivas de 53% dos entrevistados em outra pesquisa da Quaest divulgada na quinta-feira, sendo que 24% a consideraram regular, e 23%, negativa.
A escala total da crise só será conhecida depois que as águas das enchentes baixarem, embora possa ter efeitos econômicos e inflacionários perceptíveis que vão além das áreas afetadas.
O Rio Grande do Sul é uma importante região agrícola que responde por cerca de 6,5% do Produto Interno Bruto do Brasil. Também é impossível saber ainda, disse Lula na segunda-feira (6), qual será o auxílio necessário para a recuperação da crise.
Mas o governo enfrenta desafios mais imediatos do que a reconstrução.
Temperaturas mais frias e mais chuvas devem chegar nesta semana à região, o que pode piorar a situação e complicar os esforços de socorro e resgate em andamento, em um momento em que mais de 130 pessoas ainda estão desaparecidas, 67.000, em abrigos, e o número de mortos aumenta diariamente.
Cerca de 500.000 pessoas continuam sem eletricidade e um número igual de pessoas não tem acesso à água potável, de acordo com as autoridades locais.
A tragédia, no entanto, também pode ajudar a reorientar um presidente que dividiu sua atenção entre uma ambiciosa agenda global e uma série de iniciativas domésticas, muitas das quais provocaram rusgas internas em seu gabinete e longas disputas com o congresso que paralisaram o governo.
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As enchentes uniram muitas das causas centrais da presidência de Lula – fome e bem-estar social, questões ambientais e mudança climática – em um único ponto de atenção. E, assim como a tentativa de insurreição de 8 de janeiro de 2023 contra seu governo, elas também lhe deram a oportunidade de elaborar uma resposta unificada à crise que pode ajudar o governo a sair de sua atual “letargia”, disse Traumann.
Os mercados expressaram algumas preocupações sobre o nível de gastos que as enchentes podem exigir, embora o decreto de Lula tenha ajudado a acalmar os temores iniciais sobre um pacote equivalente à resposta massiva do Brasil à pandemia.
Após semanas de intensos debates sobre metas fiscais, metas de receita e a possível necessidade de cortar gastos, as enchentes fizeram com que a conversa se voltasse para a responsabilidade do governo de ajudar seu povo – mudança que beneficiou Obama há uma década e que coloca Lula em um terreno muito mais confortável: a última pesquisa da Quaest revelou que 70% dos entrevistados acreditam que investimentos em infraestrutura poderiam ter impedido a tragédia.
“Não posso fazer com que o sistema financeiro olhe todos os dias apenas para o déficit fiscal e não para o déficit social”, disse ele durante uma entrevista de rádio na terça-feira, após sua viagem à região.
“Olhe para as pessoas que estão desempregadas, que estão dormindo nas ruas, que estão passando fome. Parem de olhar apenas para seus bolsos, parem de olhar apenas para sua conta bancária e olhem para as pessoas.”
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