Bloomberg Línea — Os regimes de exceção à regra geral e a possibilidade de os Estados criarem novos impostos adicionados à reforma tributária são os dois pontos mais preocupantes do projeto aprovado na Câmara na visão de economistas e tributaristas ouvidos pela Bloomberg Línea, à medida que o Senado começa a discutir a proposta e avalia eventuais alterações no texto.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC), aprovada pela Câmara em dois turno no dia 7 de julho, chega agora ao Senado, que voltou do recesso na terça-feira (1º de agosto). O relator será o senador Eduardo Braga (MDB-AM).
Durante a tramitação na Câmara, os deputados incluíram na reforma alguns regimes de exceção, incluindo a isenção de imposto para mercadorias da cesta básica e uma alíquota menor para produtos como remédios e serviços de educação e saúde. Nesses casos, a taxa será de 40% da alíquota geral que ainda será definida por lei complementar.
Um dos pontos questionados por especialistas é que o texto trata de setores de forma genérica em vez de definir quais produtos específicos poderão ser enquadrados na alíquota menor. Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, disse que a questão abre margem para o enquadramento de outros tipos de produtos nessas categorias.
“A proposta vai dar margem para multiplicar, e muito, esses setores iniciais. A área de saúde, por exemplo, vai incluir todos os subsetores? A lei complementar vai dispor sobre o tema. Imagine a grande confusão. E, quanto mais exceções, maior a alíquota geral”, afirmou o economista.
O professor de Direito Tributário na Fundação Getulio Vargas (FGV Carlos Eduardo Navarro destacou ainda que, para que alguns produtos tenham benefícios e sejam incluídos no regime de exceção, todas as demais categorias de bens e serviços terão de pagar mais impostos, o que significa efeitos negativos para a sociedade como um todo.
Outra possibilidade para compensar os benefícios é reduzir os valores dos programas de cashback, que ainda precisam ser criados e preveem a devolução de parte dos valores de impostos pagos nos produtos às famílias de baixa renda.
“Teria sido melhor uma alíquota única mais baixa e um mecanismo de devolução [cashback] mais robusto. Para viabilizar a alíquota menor possível, ela teria que ser a mesma para todos os bens e serviços. Se todo mundo paga, por exemplo, 20%, depois poderia haver um programa de devolução agressivo”, afirmou Navarro.
A PEC 45 original propunha uma alíquota uniforme de 25%, mas, como a versão aprovada tem regimes de exceções, o entendimento é que será necessário uma taxa mais alta.
O relator da PEC no Senado, senador Eduardo Braga, já admitiu que a casa pode rever pontos do texto. Ele deve entregar um plano de trabalho para a tramitação até a próxima semana.
Novas alíquotas
Discutida há cerca de 30 anos, a reforma propõe com a fusão dos cinco impostos atuais sobre consumo (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins) em apenas dois impostos sobre valor agregado (IVAs), um federal e outro para estados e municípios, é considerada crucial para diminuir a burocracia e aumentar a produtividade do país.
A alíquota final dos dois Impostos sobre Valor Agregado (IVA) não foi definida na PEC (Proposta de Emenda Constitucional). O valor deverá ser definido apenas em lei complementar.
Em 2026, os dois impostos começarão a valer com alíquotas pequenas, de 0,9% para a CBS (federal) e de 0,1% para o IBS (estadual e municipal), chegando então ao valor final em 2032 que ainda será definido. Ao mesmo tempo, os cinco impostos atuais vão aos poucos reduzindo sua taxa até não existirem mais.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou, depois do texto sair da Câmara, que, devido aos regimes de exceção, o valor poderia alcançar 28%, sendo assim o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) mais alto do mundo. O número foi rebatido e criticado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pelo secretário especial para a reforma tributária, Bernard Appy.
A definição da alíquota é a grande questão da reforma e que será discutida nos próximos meses, aponta Marcel Alcades Theodoro, advogado tributarista e sócio do Mattos Filho.
“Todo mundo quer a simplificação, não tem uma empresa que receba de forma negativa. A grande discussão é a carga tributária. O princípio geral é que não haverá uma alta na carga de forma nacional. O problema é que isso vai variar de setor para setor. A grande preocupação dos clientes é se vai pagar menos ou mais. Para saber isso, a gente precisa definir a alíquota”, diz.
Felipe Salto afirma que é difícil estimar um valor ideal para a alíquota geral, mas ela deve chegar a algo em torno de 30%. “É uma alíquota alta, que vai onerar sobretudo setores e subsetores que não têm cadeias complexas e não geram crédito, a exemplo dos serviços, em geral, mas aí será preciso avaliar as exceções”, aponta o economista.
O crédito citado por Felipe Salto acontecerá a partir de um mecanismo proposto na PEC para que a cumulatividade atual, em que são pagos impostos sobre impostos em cadeias longas, deixe de existir. O fim dessa cumulatividade, que gera distorções e carga tributária maior que o correto, é visto como essencial.
Impacto menor no PIB
Com as exceções incluídas no projeto, a tendência é de que o benefício econômico da reforma perca força. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que a proposta original da PEC poderia elevar o Produto Interno Bruto (PIB) em 5,75% até 2032.
O efeito cairia para 2,4% do PIB com as exceções incluídas em uma das últimas versões do texto, antes da votação no plenário da Câmara. “Isso [as exceções] permite inferir que certo nível de más alocações produtivas permanecerá”, afirma o estudo do instituto assinado por João Maria de Oliveira.
O impacto do texto final ainda não foi calculado, mas as exceções foram ainda mais ampliadas antes da votação final.
Outras fragilidades
Outros pontos da reforma criticados por economistas são a transição brusca com o fim do ICMS em 2032 e o risco de fraudes no oferecimento de créditos ao longo da cadeia para que os impostos de fato sejam cobrados só do consumidor final, com devoluções corretas no meio do caminho no sistema de crédito.
A PEC permitirá que o Conselho Federativo, responsável por calcular a distribuição do IVA para estados e municípios, conceda livremente créditos às empresas para evitar essa cumulatividade.
“A atuação do Conselho Federativo ficou com um papel gigantesco e poderá gerar incentivos perversos, como dizemos em economia, quando se observa que a promessa é pagar créditos automaticamente aos contribuintes, sem que se tenha construído uma mecânica clara de fiscalização, para evitar notas fraudadas”, afirma Felipe Salto, da Warren Rena.
Carlos Eduardo Navarro, da FGV, destaca outro ponto critico do texto final aprovado. “Uma grande e terrível surpresa foi a contribuição que os Estados ganharam no artigo 20 da PEC. Espero que o Senado exclua esse dispositivo”, afirma.
O professor se refere à possibilidade de os estados contornarem o IVA a ser definido e comum a todos os entes federativos e criem impostos paralelos, mantendo algum controle sobre a arrecadação.
O artigo 20 afirma que os estados poderão criar uma “contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação”.
Avanços
Apesar dos pontos a serem ajustados, há também percepção de evolução, na visão do tributarista Breno Vasconcelos, professor em direito tributário e pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper. O professor ressaltou que, apesar do que apontou como falhas, a PEC 45 é necessária para racionalizar o sistema tributário no Brasil.
“Qualquer crítica que eu possa ter não exclui o meu reconhecimento do esforço para aprovar essa PEC, que de fato implanta um IVA no Brasil e muda a cobrança da origem pro destino”, disse Vasconcelos. “É um enorme avanço, mas não é o ideal. Foi o possível.”
A economista Carla Beni, professora no MBA de Finanças Empresariais da FGV, disse entender que grandes reformas têm espaço para revisões no futuro.
“Essas grandes reformas, como a previdenciária e a tributária, são de longo prazo. São reformas que vão demorar ao menos cinco anos para conseguirmos olhar para trás e falar o que foi positivo. E aí decidir se vale fazer um ajuste. Existe uma diferença entre o modelo ideal e a reforma possível. Quanto mais distante essa reforma possível for da reforma ideal, menor vai ser a duração dela e menor o impacto”, afirmou.
As principais mudanças da reforma tributária
- Extinção dos impostos federais IPI, PIS e Cofins até 2032, com criação de um imposto sobre valor agregado para bens e serviços, batizado de CBS
- Extinção dos impostos municipal e estadual ISS e ICMS até 2032, com criação de um imposto sobre valor agregado para bens e serviços, batizado de IBS
- Mudança da cobrança sobre o bem ou serviço do local de origem para o de destino
- Criação de um conselho composto pelos entes federativos para a criação do mecanismo da distribuição do valor recolhido pelo IBS
- Alíquota diferenciada de 40% da alíquota geral para bens e serviços como medicamentos, bens agropecuários, serviços de educação e saúde
- Isenção para produtos da chamada cesta básica
- Possibilidade de criação de um imposto extra, chamado de seletivo, sobre bens danosos, como cigarros e álcool
- Manutenção do Simples Nacional para empreendedores individuais, micro e pequenas empresas
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