Bloomberg Línea — A proposta de emenda à Constituição (PEC) contra a jornada de seis dias de trabalho com um dia de descanso tem mobilizado discussões políticas e empresariais no país, mas muito do debate tem se prendido à polarização de opiniões que não levam em consideração estudos sobre os impactos econômicos da mudança para as empresas e a sociedade, segundo Gustavo Gonzaga, professor da PUC-RJ.
Em entrevista à Bloomberg Línea, ele defendeu que o papel dos economistas em um momento como este é apontar o que se sabe sobre os possíveis efeitos de uma mudança na jornada de trabalho em escala nacional.
“Uma mudança de jornada de trabalho atinge o país como um todo, mas se outras coisas acontecem ao mesmo tempo, você não consegue identificar direito o efeito da mudança. É difícil achar um estudo empírico que comprove os efeitos dela e permita medir os seus impactos”, disse.
Gonzaga oferece uma disciplina de instituições trabalhistas na universidade carioca há três décadas. Ele é autor de um estudo que avaliou os impactos da redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas de trabalho estabelecida na Constituição de 1988. Naquele momento há 36 anos, disse, não houve aumento imediato do desemprego e o impacto na inflação não foi muito significativo.
Mas isso não significa dizer que a situação se repetiria no caso da aprovação do projeto da deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que estabelece a duração do trabalho de até oito horas diárias e 36 semanais, com jornada de quatro dias por semana e três de descanso.
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“A realidade do Brasil no final dos anos 1980 era outra, a inflação já era muito alta. Na discussão atual, é preciso entender que a mudança da jornada pode aumentar o desemprego, pode ter outros problemas para a economia, mas também vai melhorar a qualidade de vida das pessoas|, explicou.
Para o economista, o mais importante é entender que não é uma decisão simples e é preciso reconhecer que a mudança trará custos.
“Tem que ver as evidências e entender o quadro completo para tomar uma decisão o mais bem embasada possível. É algo que precisa ser avaliado pela sociedade como um todo na hora de tomar uma decisão. É uma questão de escolha da sociedade indicar se ela acha isso razoável, apesar dos custos que isso vai envolver”, disse.
Outro ponto importante, segundo ele, é que a discussão se prende demais na questão da distribuição da jornada de trabalho, mas há outras questões trabalhistas que mereceriam ser discutidas também.
“O Brasil tem regras como o pagamento antecipado de férias, adicional de férias, o valor das horas extras, o limite de horas trabalhadas, tudo isso poderia ser rediscutido nesse contexto”, disse.
“Talvez o melhor caminho seja a flexibilização, que já acontece na prática quando as empresas usam estratégias para fugir do excesso de regras, como no caso da informalidade e da enorme rotatividade do emprego no país.”
A flexibilização e a previsão de que o negociado entre empresas e trabalhadores possa prevalecer sobre o que está em lei para questões como a jornada, dentro de certos limites, foram alguns dos principais pontos da reforma trabalhista que entrou em vigor em 2017, após anos de discussões e aprovação pelo Congressos.
‘Grito de socorro’
Na avaliação do economista Cassio Calvete, a proposta pelo fim da escala 6x1 pode ser interpretada como uma espécie de “basta” da parte de trabalhadores diante do aumento da carga de trabalho.
Segundo ele, estudioso do mercado de trabalho no Brasil há mais de 20 anos, a jornada vem se intensificando no país desde 1980, o que tem tornado a situação dos trabalhadores gradualmente mais difícil, e há espaço para pensar em mudanças como as que são discutidas atualmente no Congresso.
“Desde a Constituição em 1988, a situação do trabalho vem piorando muito no Brasil. Há um movimento de aumento da jornada. Trabalhadores digitais representam o setor que mais cresce no país, e nesse grupo fala-se não em 6x1, mas em jornadas de até 12h de trabalho todos os dias da semana. São 40 anos de piora da jornada. A PEC é um ‘grito de socorro’”, disse em entrevista à Bloomberg Línea.
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Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Calvete fez de sua tese de doutorado, defendida em 2006, uma análise econômica sobre a possibilidade de redução da jornada de trabalho no país, em que discutiu as condições da economia brasileira em assimilá-la como política pública.
Segundo ele, há estudos que mostram que a redução da jornada em 1988 gerou postos de trabalho. “No contexto atual, uma mudança ajudaria a elevar a geração de emprego, pois estamos vivendo um momento positivo da economia, com crescimento do PIB”, avaliou o professor.
“Reduzir a jornada de trabalho tem dois vetores: pelo vetor micro, isso eleva o custo do trabalho, o que pode gerar desemprego. Pelo vetor macro, leva as empresas a contratarem mais trabalhadores para complementar as horas necessárias, o que acaba gerando empregos. É impossível saber antecipadamente qual dos dois vai prevalecer. É preciso avaliar o cenário e realizar testes”, explicou.
Desafio político
Apesar de enxergar espaço econômico para o avanço da pauta que reduz a jornada de trabalho, Calvete disse que há desafios políticos para mudanças como essa no Brasil e no mundo.
“O mundo discute a redução da jornada de trabalho”, disse. “A única coisa que impede é a política.”
Calvete foi coordenador técnico do Dieese em uma campanha pela redução da jornada de trabalho ocorrida no país entre 2003 e 2011. Segundo ele, era um movimento bem articulado, organizado com participação de sindicatos, e o objetivo era reduzir a jornada para 40 horas semanais, mas o escândalo de corrupção do “Mensalão” teria enfraquecido a campanha, que acabou sem conseguir avançar.
“A conjuntura política hoje é pior, com predomínio de conservadores no Congresso, mas o apelo popular da medida é maior. As pessoas estão cansadas de uma jornada dura”, disse.
“Há muita vontade popular, pois as condições do mercado formal são consideradas tão ruins que muitas pessoas preferem pedir demissão e trabalhar de forma autônoma com ajuda da internet.”
Experiência internacional
O modelo de jornada de trabalho também está em discussão em países como Nova Zelândia e em algumas partes da Europa. De acordo com o professor Price Fishback, da Universidade do Arizona, há uma conexão clara entre as discussões e os níveis médios de renda anual desses países.
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Fishback é autor de uma pesquisa recente sobre a história de movimentos para reduzir a jornada de trabalho nos Estados Unidos no século passado.
No artigo Labor Market Effects of Workweek Restrictions: Evidence from the Great Depression, ele examinou os efeitos das restrições de duração da jornada de trabalho implementadas no país durante e após a Grande Depressão de 1929.
Ele argumentou que os limites impostos à época levaram a um aumento no emprego, mas também resultaram em uma redução nos rendimentos semanais dos trabalhadores.
Segundo ele, o caso analisado pode ensinar lições importantes para que diferentes países levem adiante debates sobre a jornada de trabalho.
Na Europa, segundo Fischback, há mais proteções ao emprego e semanas de trabalho mais curtas, mas isso também leva a taxas de desemprego mais altas.
Nos EUA, o foco ainda está em jornadas mais longas, enquanto no Brasil, aqueles que estão no setor de serviços, como em restaurantes, bares e postos de gasolina, em que o trabalho é intenso, têm sido os mais vocalmente críticos ao sistema atual, explicou em entrevista à Bloomberg Línea.
“A mudança para horários mais flexíveis, trabalho remoto e discussões sobre equidade de gênero no mercado de trabalho também influenciam essas dinâmicas. No entanto um ponto central permanece: quanto maior o padrão de vida, maior o espaço para discussões sobre lazer e qualidade de vida”, disse Fishback.
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