Mercado antecipou riscos fiscais, mas travessia será conturbada, diz Sergio Vale

Em entrevista à Bloomberg Línea, economista da MB Associados diz que o dólar a R$ 6 é reflexo de um mercado que ‘não vai pagar para ver’ o ajuste necessário e que momento chave do país ficou para 2027

Palácio do Planalto, sede do Executivo, em Brasília: governo Lula inicia a segunda metade do mandato em crise de confiança com investidores (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)
13 de Janeiro, 2025 | 05:10 AM

Bloomberg Línea — A acentuada deterioração dos preços de ativos brasileiros nas últimas semanas de 2024, como reflexo da crise de confiança de investidores e agentes privados com o governo Lula e do risco fiscal, reforçou as preocupações com os efeitos para a economia do país nos próximos dois anos.

Esse cenário deve se estender pelo menos por mais um ano e meio, até que a campanha eleitoral de 2026 esteja mais evidente, segundo avaliação de Sergio Vale, sócio e economista-chefe da consultoria MB Associados. A diferença é que a economia jogará cada vez menos a favor do governo.

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“O mercado não está em modo de desespero total porque entrou em compasso de espera até as eleições, mas seguirá tenso. A passagem até 2027 parece que será, assim, bastante conturbada” disse Vale em entrevista à Bloomberg Línea.

“No primeiro semestre de 2027, daí, sim, as atenções se voltam para quem ganhar, e isso mesmo se for Lula reeleito, e para a reforma necessária, com medidas inescapáveis”, disse Vale, economista presente há mais tempo na ala dos céticos com a real disposição de reforma fiscal do governo Lula.

Vale apontou que há fatores que sustentam esse modo de espera do mercado, citando contas externas, balança comercial que deve melhorar com o agro, investimento estrangeiro direto, economia que cresce, desemprego baixo e e inflação que, embora acima da meta, não está fora do controle.

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Mas, se a questão fiscal não for enfrentada em 2027, momento em que o presidente eleito contará com a habitual força política de início de mandato, Vale disse antever um quadro de dominância fiscal - em que a política monetária perde eficácia - e de piora aguda dos preços dos ativos do país. “Nesse cenário, o estresse seria tamanho que o governo, seja qual for, acabará sendo obrigado a fazer o ajuste.”

“Hoje temos ainda o princípio de uma base [de piora do equilíbrio fiscal] que tem sido construída lentamente”, disse Vale ao se referir ao desarranjo que se reflete na trajetória de aumento da dívida pública - e, por tabela, nos preços depreciados de ativos brasileiros para refletir esse risco.

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“A diferença desta vez [em relação a crises passadas como a do governo de Dilma Rousseff] é que o mercado está mais atento e decidiu antecipar com mais velocidade os riscos de o governo não fazer nada [no front fiscal] ou de fazer de maneira inadequada.”

Nesse segundo caso, trata-se de uma referência à aguardada apresentação do novo pacote de contenção de gastos anunciado em dezembro depois de meses de espera e que acabou agravando a crise de confiança de investidores ao trazer medidas na direção contrária, como a proposta de aumento da isenção do Imposto de Renda para indivíduos com renda mensal de até R$ 5.000.

O cerne do pacote também foi considerado insuficiente, dado que, nas contas de Vale, deve conseguir gerar um déficit da ordem de R$ 30 bilhões neste ano. O valor, somado ao impacto esperado de R$ 45 bilhões com o pagamento de precatórios, deve levar o déficit para perto de R$ 75 bilhões.

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“Isso sem contar o impacto nas receitas, dado que o governo fez as contas supondo um crescimento de 2,5% a 3,0%, e o mercado já prevê de 1,5% a 2,0%, diante do impacto das taxas de juros mais altas e sobre o investimento, que é o que sofre primeiro quando há piora da confiança como agora.”

Nas contas da MB Associados, a economia brasileira deve crescer 1,8% neste ano, abaixo dos 2,6% previstos pelo governo. Essa diferença de quase um ponto percentual se traduziria em R$ 27 bilhões a menos de receitas, perto do valor previsto oficialmente para o déficit público.

“Esse é um governo que tem sistematicamente errado na política fiscal e o mercado não paga mais para ver. O câmbio a R$ 6 é justamente o reflexo dessa postura. Vai ficar por aí e talvez até acima”, afirmou.

A pressão do câmbio desvalorizado se junta à pressão de demanda em um quadro de inflação corrente e de expectativas já acima do teto e em trajetória de deterioração - a mediana das expectativas pelo boletim Focus de 6 de janeiro apontou IPCA a 4,99% ao fim de 2025.

“O Banco Central, e é um Banco Central que ninguém sabe qual será pela frente, teria que dar um choque de credibilidade [para reancorar as expectativas para a meta], levando a taxa de juro lá para cima.”

“Para trazer a inflação de volta a 3%, teria que levar a Selic para 15% ao ano. Tem economista que fala em 15%, mas eu não acredito que esse Banco Central, cuja nova diretoria é uma incógnita, terá disposição de fazer isso. Com muita boa vontade, eu trabalho com um cenário de Selic a 14%”, disse Vale.

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Nesse cenário do economista, a inflação segue próxima ao teto da meta - em 2024, ficou acima, em 4,83% -, enquanto a atividade perde força diante da taxa de juros a 14% ao ano. “A questão é como esse novo Banco Central vai reagir diante da pressão que certamente vai sofrer do Palácio do Planalto com a proximidade das eleições [de 2026] e uma economia enfraquecida”, apontou.

“A consequência de mais inflação e juros será menos crescimento em 2026, talvez na casa de 1% ou menos. Lula está onde Dilma estava em 2013. Ainda dá tempo de ajustar a casa, mas não parece haver vontade política”, disse o economista. “A eleição em 2026 já se torna bem mais difícil para Lula nas condições que ele mesmo está criando.”

Ao remeter o momento atual ao enfrentado por Dilma no terceiro ano de seu mandato, o economista apontou paralelos do ponto de vista de incertezas. “É verdade que não esperados os impactos tectônicos da Lava Jato e das manifestações de junho de 2013, mas teremos Donald Trump, que, do ponto de vista econômico para o mundo, pode ser tão turbulento quanto foram aqueles eventos.”

Vale disse não trabalhar com um cenário de reversão de expectativas do mercado causado pela força de um candidato de oposição bem posicionado nas pesquisas eleitorais, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, uma hipótese aventada por alguns estrategistas de mercado.

Em sua avaliação, o ex-presidente Jair Bolsonaro, atualmente impedido de se candidatar após condenação pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) relacionada a crimes nas eleições de 2022, vai insistir com sua chapa “até o último instante”, a exemplo do presidente Lula na campanha de 2018.

A MB Associados é considerada a consultoria econômica em atividade mais longeva do país. Fundada em 1978 pelos irmãos Luiz Carlos Mendonça de Barros e José Roberto Mendonça de Barros, segue com o segundo entre seus sócios, além de Sergio Vale e outros. Tem um braço com atuação também de longa data no agronegócio, a MB Agro, conduzida por Alexandre Mendonça de Barros.

Sergio Vale, economista e sócio da MB Associados (Foto: Divulgação)

Cenário alternativo

Segundo Vale, o que o governo Lula poderia fazer para recuperar parte da confiança, em cenário alternativo dadas as circunstâncias atuais, seria apresentar uma resposta de longo prazo para a questão fiscal.

“Para uma sociedade que envelhece rapidamente como a nossa, é preciso buscar soluções com celeridade, que passam por três pontos que ‘sumiram’ no meio do caminho da estrutura que foi apresentada no fim do ano, por serem socialmente de difícil aceitação”, disse.

O economista ressaltou a sua avaliação - e de outros especialistas - de que não faz mais sentido, dentro da atual estrutura de gastos e de dívida, manter os limites constitucionais de despesas obrigatórias em saúde e educação. E a vinculação do salário mínimo para o pagamento de benefícios sociais.

“A desvinculação é uma medida inescapável. O país não vai conseguir fazer isso agora, mas, em 2027, terá que entrar na conta”, disse Vale, apontando que o déficit da Previdência continua em níveis elevados apesar da aprovação da reforma em 2019 - deve ter ficado na ordem de R$ 300 bilhões em 2024.

“O país terá que aprovar o aumento das idades de aposentadoria de homens e mulheres de novo. Vamos ter que fazer um ajuste fiscal por meio da Previdência. E um passo para fazer isso é desvincular o pagamento dos benefícios do salário mínimo”, afirmou.

Vale ponderou, por outro lado, que seria naturalmente difícil de esperar que um governo como o do presidente Lula decidisse alterar regras de gastos em saúde, educação e Previdência em meio de mandato, dada a tradição do PT de dedicar atenção mais às receitas do que às despesas.

Para ele, a PEC da Transição encaminhada pela equipe econômica do então presidente eleito Lula no fim de 2022 já sinalizava como a questão seria potencialmente enxergada pelo iminente governo.

“Ali [a PEC da Transição] foi o sinal amarelo. O sinal vermelho veio com o arcabouço fiscal. Eu falo para os clientes desde que foi apresentado [em meados de 2023] que ele não tinha como se sustentar e que se quebraria no meio do caminho”, disse o economista, citando cálculos de que o governo precisaria de R$ 350 bilhões para fechar a conta e zerar o déficit primário em 2024, como prometido.

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O governo de fato alterou as regras em maio passado e, ainda assim, enfrentou - e vai enfrentar - dificuldades para entregar um resultado mais magro nas contas públicas no ano fechado.

Ele apontou que, para estabilizar a dívida pública bruta nos patamares atuais de endividamento, o governo teria que entregar um superávit primário da ordem de 4% do PIB. “Isso representaria uma recessão brutal. O governo não vai fazer isso. O que significa que a dívida vai continuar a crescer.”

Ao analisar a questão das expectativas de mercado, o economista, um dos mais respeitados do debate público há cerca de duas décadas, ressaltou as diferenças em relação ao começo do governo Dilma, que contou com o voto de confiança de uma parcela do mercado e de investidores.

As condições da economia também são menos favoráveis do que aquelas vigentes no primeiro mandato de Lula como presidente, há vinte anos, tanto do ponto de vista de crescimento do PIB como da estrutura das contas públicas - do resultado primário ao nível da dívida sobre o PIB.

Por outro lado, em uma perspectiva mais ampla da economia brasileira, Vale apontou que o país continua se destacar em frentes como uma matriz energética limpa, algo fundamental no contexto de mudanças climáticas, e pela força estrutural em commodities, o que inclui ganhos decorrentes de inovação e tecnologia, “por mais que muitos não reconheçam essa dinâmica”.

“É um Brasil que está no centro do crescimento e onde o investimento acontece. A pena é que isso poderia ser replicado no país como um todo se nós conseguíssemos endereçar a questão macro, como ocorreu em outros momentos, como no próprio primeiro mandato do presidente Lula”, afirmou.

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Marcelo Sakate

Marcelo Sakate é editor-chefe da Bloomberg Línea no Brasil. Anteriormente, foi editor da EXAME e do CNN Brasil Business, repórter sênior da Veja e chefe de reportagem de economia da Folha de S. Paulo.