Incêndios agravados pela seca levam Amazônia a emissão de gases de efeito estufa

Em vez de capturar carbono, floresta tropical pode passar a contribuir com o aumento das emissões, segundo especialistas; situação pode agravar o aquecimento global

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Bloomberg — Exacerbadas por uma seca severa, as queimadas ameaçam um dos ecossistemas mais cruciais do mundo e consomem os vastos estoques de carbono da Amazônia, enviando para a atmosfera mais gases prejudiciais do efeito estufa.

Com milhares de focos de incêndios pelo Brasil, metade deles na Amazônia, o governo correu com uma série de medidas para tentar mitigar a situação e a imagem do país nos últimos dias.

Entre junho e agosto, 2,4 milhões de hectares de florestas, campos e pastagens queimaram na Amazônia. O número de focos de calor no bioma amazônico ultrapassou os 95.000 neste ano até 18 de setembro, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Os incêndios emitiram 31,5 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente entre junho e agosto, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Isso representa um aumento anual de 60%, um valor similiar ao nível de emissões de oito usinas de energia a carvão em um ano.

A Amazônia é um dos mais importantes sumidouros de carbono da atmosfera, afirmou Lucas Ferrante, biólogo e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “Hoje ela passou a emitir”, disse. “Estamos em um turning point, um ponto de não retorno.”

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Embora os incêndios sejam comuns durante o período de seca, os números recorde deste ano são um sinal de alerta para os especialistas.

“Quando isso está acontecendo e o quanto isso tem durado é o que preocupa”, disse Ritaumaria Pereira, diretora executiva do Imazon, uma organização sem fins lucrativos focada em pesquisa e projetos na região amazônica. “Tudo fugiu do controle, e o nome disso é mudança climática.”

Florestas tropicais queimam

Os climatologistas alertam há tempos que eventos como o deste ano poderiam acontecer. As secas nas últimas duas décadas se tornaram muito mais severas e muito mais comuns. O último ano — o mais quente já registrado globalmente — levou os extremos no Brasil a um novo nível.

“Isso sempre foi algo que sabíamos que aconteceria”, disse Michael Coe, cientista sênior e diretor do programa de trópicos no Woodwell Climate Research Center. “Mas há uma enorme diferença entre saber que isso vai acontecer e ver isso acontecer.”

Quando as florestas tropicais queimam, o que vem em seu lugar não consegue substituir o armazenamento de carbono e o resfriamento evaporativo que beneficiam o clima global.

A Amazônia é uma parte crítica do sistema climático global e, sem ela, a modelagem sugere que a Terra poderia aquecer mais um grau Celsius além dos perigosos 2,7°C ou mais que já estão previstos.

A queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e outras causas aumentaram a temperatura média global em cerca de 1,3°C em comparação a antes da industrialização.

Cerca de 40% dos focos de incêndio no Brasil estão em áreas de vegetação primária, enquanto o restante se concentra principalmente em áreas desmatadas. O desmatamento está menor do que nos últimos anos, um indicativo de quão preparada a terra está para queimar devido às condições quentes e secas.

A mudança climática piora as condições das queimadas, disse Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama. “Embora não seja o clima que coloque o fogo”, acrescentou.

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O Ibama afirma que quase todos os incêndios foram causados por humanos, seja deliberada ou acidentalmente. A queima é comum na agricultura brasileira já que, historicamente, o país encorajou a prática como uma maneira rápida e barata de limpar a terra e preparar o solo para novos plantios. O governo já proibiu a prática, embora muitos agricultores não obedeçam à regra.

Agostinho disse que o Ibama entrou em uma operação de guerra, com milhares de viaturas e centenas de fiscais, para controlar os incêndios. O instituto pediu assistência de países vizinhos, até mesmo de alguns que também estão lidando com seus próprios incêndios florestais.

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, disse aos senadores no início deste mês que a floresta tropical está “perdendo umidade” e se tornando mais vulnerável a incêndios em um “processo severo de mudança do clima”.

Na terça-feira, Marina afirmou durante uma entrevista de rádio que “neste momento, qualquer incêndio se caracteriza como incêndio criminoso”, em um momento em que o governo quer endurecer as penalidades existentes para quem faz queimadas.

Céus enevoados

A fumaça dos incêndios já atingiu grande parte do país e encobriu, inclusive, o céu de São Paulo. A fumaça chegou até mesmo à Argentina e ao Uruguai, de acordo com o Climatempo - agravada ainda por incêndios em outros países, incluindo Bolívia e Paraguai.

O presidente Lula anunciou nesta semana R$ 514 milhões em crédito extraordinário para financiar medidas emergenciais, como mais investigações e contratação de mão-de-obra especializada.

No ano passado, no início de seu terceiro mandato, Lula retornou ao cenário internacional prometendo reforçar as proteções para a Amazônia, proteger terras indígenas da extração de recursos e fazer uma transição verde da economia.

O desmatamento caiu e um projeto estabelecendo diretrizes para o desenvolvimento de combustíveis sustentáveis foi aprovado, marcando algum progresso em direção a um futuro de energia mais limpa.

No entanto, a crise na Amazônia — capturada em fotos vistas ao redor do mundo — pode representar um desafio para Lula quando ele chegar à Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York, neste fim de semana.

A região precisa de melhor prevenção contra queimadas, mais investimento em combate a incêndios e reforço da fiscalização, disse Manoela Machado, pesquisadora de pós-doutorado na Woodwell, que estuda os fatores de risco de incêndio na Amazônia.

“Lula está tentando convencer o mundo de que o Brasil é um líder climático. Mas há alguma desconexão disso com ações de verdade”, disse Machado.

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