Como as bets viraram uma ‘epidemia’ com 52 milhões de apostadores no Brasil

Com o endividamento em alta e consequentes desafios econômicos e sociais, governo compara apostas virtuais a epidemia e atua para impor regras mais restritivas para o mercado de jogos online

Beatriz Azevedo dos Santos, que não quis ser identificada, mostra um jogo na plataforma de apostas Br4Bet (Foto: Bloomberg)
Por Martha Beck - Giovanna Belotti Azevedo - Simone Iglesias - Barbara Nascimento
20 de Novembro, 2024 | 02:04 PM

Bloomberg — Na sede das Nações Unidas, cercado por líderes de países do mundo todo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou um discurso sobre os males das apostas eletrônicas.

Foi um tópico estranho para levantar nas reuniões anuais da ONU, em setembro passado, especialmente porque o painel em questão havia sido convocado para debater esforços para preservar a democracia, mas Lula estava muito agitado para se importar com isso.

O jogo, protestou, está destruindo as finanças dos mais pobres: “Nós estamos agora percebendo, no Brasil, o endividamento das pessoas mais pobres que tentam ganhar dinheiro fazendo apostas”.

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Poucos dias antes, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez um desabafo semelhante em Brasília, declarando a questão “uma epidemia”. Haddad fala incessantemente sobre a situação.

O mesmo acontece com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que confessou observar com nervosismo os números de endividamento das famílias aumentarem e disse se preocupar, como Lula, que boa parte disso decorra de apostas.

As três autoridades juntas pressionam para que haja maior controle da recém-liberada indústria de apostas online do Brasil - as bets, como são mais conhecidas.

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Pobreza e vulnerabilidade

O vício em jogos de azar é um problema familiar e crescente em todo o mundo — dos EUA ao Reino Unido e à Austrália — na esteira da legalização de todos os tipos de novas plataformas de apostas.

Mas o que torna o Brasil único é o senso de urgência que esse boom causou entre os formuladores de políticas públicas em Brasília, que detectam na população do país maior vulnerabilidade.

Quase um em cada três brasileiros vive abaixo da linha da pobreza. E a pobreza amplifica o desejo de fazer fortuna instantânea apostando no seu time de futebol ou girando uma roleta virtual.

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Um estudo recente do Banco Central ressaltou a magnitude desse problema e causou ondas de choque por Brasília: 20% do dinheiro que o governo concedeu para o Bolsa Família em agosto teria sido gasto em sites de apostas online.

“A vulnerabilidade que vem com a pobreza é algo que nos diferencia”, disse Daniel Dias, professor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro.

Adicione a isso o fato de que muitos brasileiros agora têm acesso a empréstimos pela primeira vez em suas vidas - por meio de aplicativos e cartões de crédito que cobram taxas de juros anuais de até 438% - e forma-se um “coquetel explosivo”.

As dívidas provenientes das apostas são tantas que o Nubank divulgou um comunicado em setembro para tranquilizar seus investidores de que tem um mecanismo de exposição limitada a empréstimos para apostadores problemáticos.

Pilha de dívidas

Uma dessas apostadoras se chama Beatriz Azevedo dos Santos.

Ela começou a jogar há dois anos, quando tinha 17 anos. Era algo inocente, apenas algumas pequenas apostas em um jogo de cassino virtual chamado Crash.

Beatriz contou que teve algum sucesso inicialmente - “eu ganhava algumas e perdia outras” - e, para provar, ela pensou, que o hype propagado por todos os grandes influenciadores sociais brasileiros era verdadeiro: fortunas realmente poderiam ser feitas em jogos de azar.

Para alguém que ganhava R$ 500 por semana entregando pizza e hambúrgueres em sua bicicleta vermelha e preta no Recife, era uma fantasia irresistível. “Eu queria um estilo de vida luxuoso”, disse Beatriz. “As pessoas faziam parecer fácil.”

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Ela começou a aumentar suas apostas — R$ 2 viraram R$ 10, R$ 20 e então, de repente, centenas de reais — e jogava por horas a fio, acumulando no processo uma pilha impagável de dívidas.

Quando sua bicicleta foi roubada, ela sacou o pagamento do seguro de R$ 1.700 que recebeu e rapidamente jogou fora cada centavo. Ela pediu dinheiro para sua mãe, para seu irmão e até mesmo para o proprietário do apartamento que Beatriz alugava. Tudo desperdiçado em apostas.

“Eu sentia que tinha controle sobre o jogo e que vencer dependia apenas de mim,” disse.

Legalização sem regulamentação

Durante décadas, os brasileiros apostaram de forma ilegal, como no jogo do bicho ou em salas de bingo clandestinas. A prática foi legalizada em 2018 e cresceu, sem regulamentação, até que o Ministério da Fazenda enxergou a chance de aumentar as receitas fiscais e alimentou um frenesi que já existia ao implementar regras mais precisas no ano passado.

Existem duas formas principais de aposta no país.

A primeira é por meio de aplicativos e sites de cassinos online, que oferecem praticamente tudo que se encontra em um cassino real: caça-níqueis, roleta e outros jogos de azar.

Depois, há o futebol, de longe o esporte mais popular do país. Os apostadores investem dinheiro em tudo, desde qual time ganhará um campeonato até o número de cartões que serão distribuídos na partida.

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Como nos EUA e em outros lugares, o jogo se tornou algo difícil de escapar. As redes sociais estão inundadas com anúncios de tigres amigáveis oferecendo riquezas, assim como jogadores famosos e influenciadores sugerindo que vidas luxuosas estão a apenas uma rodada de roleta de distância.

Jingles cativantes com nomes de empresas de apostas - Betano, Betnacional, Blaze (que vende Crash, o jogo em que Beatriz é viciada) - tocam incessantemente na TV e no rádio. Outros - Superbet, Esportes da Sorte, Pixbet - estão espalhados nas camisas dos times de futebol mais populares do Brasil.

52 milhões de apostadores

O número de apostadores dobrou nos últimos seis meses para 52 milhões, de acordo com a empresa de pesquisa Instituto Locomotiva. E o Banco Central estima que os brasileiros gastaram entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês em apostas neste ano até agosto.

O presidente do BC disse que um número desproporcionalmente grande desses apostadores vem de famílias de baixa renda. “É realmente preocupante”, disse ele em um evento em setembro.

Os números do Banco Central não capturam outra tendência preocupante: o uso de cartões de crédito para financiar essas apostas. O Brasil tem taxas de juros notoriamente altas. Em alguns bancos menores, elas podem chegar a 1.000% ao ano. Bancos com as maiores carteiras de crédito, como Nubank e Itaú Unibanco, chegam a cobrar mais de 300% ao ano em algumas modalidades.

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“Tem uma coisa muito interessante do super endividado, que normalmente é um bom pagador. É um cara que fica ali tentando encontrar formas de pagar os seus credores. Então ele pega outro empréstimo, ele pede ajuda da família, ele vai ao agiota, ele vai às financeiras menores”, disse Viviane Fernandes, antropóloga e pesquisadora do Idec, instituição de proteção a consumidores.

“Ele tem múltiplos credores, e aí fica muito difícil dar conta desse malabarismo que ele precisa fazer.”

Ostentação e crime

A explosão das bets ganhou destaque em setembro, depois que a polícia deteve vários influenciadores em meio a uma investigação de lavagem de dinheiro envolvendo empresas de apostas.

A prisão mais chamativa foi a de Deolane Bezerra, uma advogada que se tornou cantora e influenciadora que ostenta sua riqueza - várias casas nos EUA, um Rolls-Royce Cullinan e um Lamborghini Urus roxo - para seus 22 milhões de seguidores no Instagram.

Procurados, representantes de Deolane não responderam a pedido de entrevista da Bloomberg News.

“As estratégias dos influencers são muito convincentes”, disse Fernandes, referindo-se a ofertas como bônus de inscrição que equivalem a cerca de um terço do salário mínimo do país. “Por que será que eu não clico aqui para tentar?”

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Pressão sobre o governo

A controvérsia só aumentou a pressão sobre o governo para agir.

O Ministério da Fazenda antecipou o prazo, inicialmente previsto para janeiro, para as empresas apresentarem a “papelada” para operar e proibiu aquelas que ainda não o fizeram. Atualmente, examina solicitações de mais de cem empresas sediadas em todos os lugares, dos EUA à China e Austrália.

De acordo com as regras, as empresas precisarão criar perfis de cada cliente com dados pessoais e renda declarada. Quando forem detectados valores ou tempo excessivo de jogo, a empresa terá que emitir alertas e até mesmo bloquear o jogo temporariamente.

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A portas fechadas, as autoridades dizem que terão controle total a partir de 1º de janeiro de 2025, dando a elas espaço para limitar os valores que as pessoas apostam, bloquear sistemas de pagamento e observar sinais de lavagem de dinheiro. Uma autoridade comparou isso ao governo sendo o cassino, e as empresas de apostas, os crupiês.

O governo também procura proibir o uso de cartões de crédito para apostas e regular a publicidade para que as empresas não tenham permissão para promovê-la como um investimento. Como o Congresso já aprovou a legislação geral, cabe ao governo regulamentar.

Em 11 de novembro, a Procuradoria-Geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que revisasse a legalidade das leis de jogo por completo, dizendo que a legislação “é insuficiente para proteger direitos fundamentais” dos consumidores e vai contra o dever do Estado de proteger as famílias.

O ministro do STF Luiz Fux deferiu parcialmente o pedido, ordenando medidas para proibir temporariamente os beneficiários de programas como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e outros de apostar online.

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A Associação Nacional de Jogos e Loterias disse em uma resposta por e-mail que apoia a regulamentação, mas qualquer movimento para proibir apostas após ter uma estrutura legal em vigor traria incerteza jurídica e “prejuízos incalculáveis à sociedade brasileira”.

O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, que representa 75% das apostas esportivas online no país, disse que apoia totalmente a regulamentação.

Ilusão e sonho

A pressão regulatória chega tarde demais para Beatriz.

Agora com 19 anos, ela não tem bicicleta, emprego nem esperança de pagar uma dívida de jogo que, pelo que ela calcula, aumentou para R$ 7.000.

Tudo isso em cartões de crédito que ela emitiu de vários bancos, incluindo Nubank, Banco do Brasil e Bradesco. Ela confessa não ter ideia de quais taxas de juros estão cobrando dela (o site do Banco Central indica que todos eles cobram mais de 300% ao ano em dívidas de cartão de crédito).

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Para apaziguar sua namorada, Beatriz recentemente cedeu o controle de suas contas bancárias e contas de jogo. O vício e a necessidade dessa descarga de dopamina continuam fortes, no entanto, e ela ainda faz apostas de vez em quando.

Ela sabe agora o quão tolo isso é. E ela sabe que foi enganada - por todos aqueles influenciadores glamurosos das mídias sociais - a pensar que o jogo era sua passagem para sair da pobreza. Você não está apostando, eles disseram a ela repetidamente, você está investindo. “Hoje, sei que isso foi só um sonho.”

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