Indústrias globais enfrentam desafio de rastrear origem do cacau que vem da África

Norma da União Europeia que determina que matéria-prima importada não tenha sido cultivada em área desmatada deve pressionar preços da indústria que vai do chocolate a cosméticos

Workers unload cocoa beans at a rebagging plant in San Pedro, Ivory Coast. Photographer: Paul Ninson/Bloomberg
Por Mumbi Gitau - Ekow Dontoh - Baudelaire Mieu
29 de Fevereiro, 2024 | 04:07 PM

Bloomberg — A jornada do cacau desde o grão até a exportação passa por uma planta de ensacamento como a que existe em San Pedro, na Costa do Marfim, onde cerca de 20 caminhões chegam todos os dias carregados com toneladas de estoque para mercados internacionais.

Trabalhadores usando máscaras contra a poeira descarregam sacos que pesam até 65 quilos e os rasgam, preparando o conteúdo para secagem, classificação e limpeza. Outros varrem os grãos soltos no chão em montes para recolhimento.

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Em todo lugar para o qual se olha e anda, há grãos de cacau. Milhões e milhões são entregues a instalações semelhantes na África Ocidental e depois enviados para armazéns em Amsterdã, na Holanda; Hamburgo, na Alemanha; e Antuérpia, na Bélgica, para os principais chocolatiers do mundo.

No entanto uma mudança massiva em curso ameaça desestabilizar essa cadeia de abastecimento e sacudir os preços de doces, produtos para cuidados com a pele e medicamentos à base de ervas.

A partir de 30 de dezembro deste ano, a União Europeia (UE) exigirá que empresas como Cargill, Grupo Ferrero, Nestlé e Mars provem que cada grão que importam para o continente não contribuiu para o desmatamento em outro lugar.

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Isso significa rastrear o cacau desde a vagem até o porto, um mandato custoso para uma indústria já abalada pela produção em declínio e preços recordes para os contratos futuros.

Mas não provar uma origem sustentável significará não vender - uma penalidade significativa, dado que a UE, com seus 27 países-membros, é o maior comprador da Costa do Marfim e de Gana.

“Há uma arma apontada para a nossa cabeça para estabelecer sistemas e nos preparar”, disse Paul Davis, presidente da Associação Europeia de Cacau. “Esperamos interrupções no abastecimento por cerca de um a dois anos, e isso poderia significar preços mais altos na Europa.”

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Cada remessa - em sacos ou a granel - terá que listar as coordenadas com informações de GPS das fazendas onde o cacau foi cultivado, e essas informações precisam ser carregadas em um banco de dados da UE.

Cargill, Ferrero e Nestlé disseram que estão expandindo suas redes de geolocalização na Costa do Marfim, que fornece 44% do cacau do mundo.

União Europeia lidera com ampla vantagem a lista dos mercados que mais importam cacau da Costa do Marfim

Nenhuma das empresas contatadas quis dizer quanto está gastando em seus esforços, e não discutiram se os consumidores acabarão arcando com esses custos na forma de chocolates mais caros. Também não está claro se o ônus recairá sobre os agricultores, que já estão entre os mais pobres do mundo.

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Em teleconferência de resultados em 22 de fevereiro, o CEO da Nestlé, Mark Schneider, disse estar “muito confiante” de que a empresa terá uma cadeia de abastecimento livre de desmatamento até o prazo final.

No entanto, mesmo enquanto trabalham para cumprir o mandato, alguns estão pressionando o bloco a adiar a implementação, de acordo com Peter Feld, CEO da Barry Callebaut, outra gigante de chocolates.

“A regulamentação da UE entrou em vigor e na verdade não conversou com nenhum dos players da indústria”, disse Feld durante uma teleconferência de resultados em 1º de novembro passado. “Os players estão todos envolvidos com a Comissão da UE para fazer lobby por um período de transição.”

Do cafe à soja

O Regulamento de Desmatamento da UE, ou EUDR, também abrange óleo de palma, café, soja, madeira e gado - condutores notórios de desmatamento. A lei, que vai da Amazônia à África e à Ásia, se aplica a matérias-primas, bem como a produtos como couro e móveis.

Sem ele, cerca de 248.000 hectares de floresta seriam perdidos a cada ano até 2030, estimou o bloco.

Grãos considerados fora de conformidade pelas empresas provavelmente serão vendidos nos EUA ou na Ásia - mercados decididamente menores e menos lucrativos para os produtores da África Ocidental. Se a UE descobrir que uma remessa violou a lei, as penalidades incluem multas, confisco ou uma proibição temporária de negociação no bloco.

Países do oeste da África, especialmente Costa do Marfim e Gana, são os maiores produtores mundiais de cacau; Brasil é o sexto na lista

Isso criou um problema urgente para a indústria. Os grãos de cacau levam cerca de 12 a 18 meses desde o momento da colheita até chegarem à Europa, de modo que a safra atual precisa cumprir a regulamentação porque chegará após 30 de dezembro.

A ansiedade sobre a lei envolveu a conferência da Fundação Mundial do Cacau neste mês em Amsterdã, em que uma sessão sobre “Os desconhecidos conhecidos do EUDR” transbordava entre reguladores e executivos da indústria.

Os participantes questionaram a autoridade para Política da Comissão Europeia, Zoe Druilhe, por detalhes sobre a implementação, mas não obtiveram todas as respostas que queriam.

Druilhe não pôde especificar quando o site do EUDR entrará no ar ou qual mapa de referência as autoridades usarão para verificar os documentos que as empresas vão submeter.

“Há um alto nível de inquietação entre os traders porque a regulamentação tornará difícil para os grãos entrarem no mercado da UE”, disse Fuad Mohammed Abubakar, chefe da Ghana Cocoa Marketing Company. “Isso só vai elevar os preços.”

Grãos de mais de 80 mil fazendas

Os futuros de Londres custam cerca de US$ 800 a mais por tonelada do que os de Nova York, segundo cálculos da Bloomberg com base em contratos mais ativos.

O cacau é responsável por 7,5% da contribuição da UE para o desmatamento global, segundo a BloombergNEF.

Algumas empresas já rastreiam grãos por meio de programas voluntários de sustentabilidade, mas a nova lei exige um nível mais profundo de vigilância que começa com o mapeamento dos limites muitas vezes imprecisos de parcelas remotas e individuais.

Na Costa do Marfim, o maior produtor de cacau, o mandato de diligência será um grande desafio. Cerca de 30% da área plantada do país está dentro de florestas protegidas, apesar de leis contra isso, segundo um artigo de pesquisa de 2022.

A expansão das fazendas de cacau foi associada à perda de mais de 360.000 hectares de floresta de 2000 a 2020, segundo o estudo. Isso é duas vezes o tamanho de Londres.

Visitas da Bloomberg News a estações intermediárias em todo o sudoeste da Costa do Marfim no final de 2023 revelaram as falhas que podem interromper a implementação do EUDR.

A Europa está tentando controlar uma cadeia de abastecimento que é fragmentada, de baixa tecnologia, desorganizada e propensa a abusos por milhares de pequenos agricultores e intermediários sorrateiros.

Atualmente, o cacau muda de mãos pelo menos seis vezes durante seu percurso até o bloco, e é misturado com outros lotes em cada etapa. Um transportador a granel pode conter grãos de mais de 80.000 fazendas - e nem todos são conhecidos pelos traders.

“A UE se envolveu em uma profunda complexidade que não compreende”, disse Marc Donaldson, consultor de sustentabilidade do cacau. “Rastrear um saco de grãos até um fazendeiro é algo de tirar o fôlego.”

A primeira mistura ocorre imediatamente após a colheita em um centro de compra comunitário, em que cerca de 20 a 30 agricultores deixam seu produto. Esses pequenos centros pontilham o cinturão de cacau da Costa do Marfim.

Lá, os grãos são colocados em sacos de juta e transportados para uma cooperativa regional que recebe entregas de outros centros comunitários também. Produtos de até 2.000 fazendas podem passar por aqui.

Na Casib Coop-CA em Gabiadji, sacos de fontes separadas são abertos e o conteúdo é despejado em uma lona enorme do lado de fora para secagem. Trabalhadores passam pelo tapete marrom marmorizado com os pés descalços - como chutando areia na praia - para expor a colheita ao sol.

A partir desse ponto, os grãos vão para uma instalação como a da Societe Ivoirienne de Transformation des Produits Agricoles, a cerca de 8 quilômetros do porto de San Pedro.

Cocoa beans dry outside at the Casib Coop-CA in Gabiadji. Photographer: Paul Ninson/Bloomberg

Várias esteiras transportadoras levam grãos de várias cooperativas para limpeza, classificação e ainda mais ensacamento juntos. Então, são levados para os cais e enviados para o exterior.

Complicando os esforços de rastreabilidade está a existência de uma rede paralela e clandestina que a consultoria Trase estima que possa fornecer até 60% dos grãos da Costa do Marfim.

Intermediários locais, chamados pisteurs, dirigem caminhonetes para campos remotos, pagam aos agricultores em dinheiro por sua colheita e trazem a carga diretamente para armazéns, contornando os checkpoints anteriores completamente.

Os principais traders precisam desse chamado suprimento “indireto” para atender aos pedidos dos clientes - e saber quais grãos na caçamba vieram de qual fazendeiro não é uma prioridade.

“O cacau que todos afirmam ser de áreas protegidas está indo para algum lugar, e alguém está comprando”, disse Alex Assanvo, secretário executivo da Iniciativa de Cacau da Costa do Marfim e de Gana criada pelos dois países. Ele acredita que sistemas administrados pelo governo garantiriam que os dados sejam padronizados e todos os agricultores sejam contados.

“As empresas raramente divulgam quanto de seus volumes vêm de fontes indiretas”, disse Valentin Guye, pesquisador da universidade UCLouvain, na Bélgica, que estuda cadeias de suprimentos de cacau.

Alguns evitam isso.

A Ferrero não compra cacau de origem indireta e exige que os fornecedores apresentem mais detalhes sobre onde seus grãos se originam, disse Floriane Hédé, gerente de rastreabilidade.

A Cargill, maior trading agrícola do mundo, trabalha com cerca de 400.000 agricultores de cacau globalmente, disse Marijn Moesbergen, líder de fornecimento de cacau, em Amsterdã. A empresa está mapeando áreas na Costa do Marfim e fornece aos agricultores QR Codes únicos para digitalizar nos centros comunitários e etiquetar cada saco.

“O risco é muito alto para qualquer pessoa na cadeia de suprimentos comprar cacau que não possa rastrear”, disse Jack Steijn, co-fundador da consultoria de commodities sustentáveis Equipoise.

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