Como o seguro agrícola se tornou uma barreira para a agricultura regenerativa nos EUA

O modelo de produção que visa proteger o solo não é coberto pelas apólices do seguro federal em caso de prejuízos com eventos climáticos

Homem manejando cerca para gado em um pasto. Ele veste trajes e chapéu claros e está cercado por bovinos.
Por Miranda Jeyaretnam
01 de Agosto, 2024 | 11:53 AM

Bloomberg — No estado americano do Kansas, onde uma seca prolongada matou plantações e erodiu o solo, a fazenda de Gail Fuller é como um oásis. Ovelhas, vacas e galinhas pastam livremente nas plantações e na vegetação em uma bagunça paradisíaca.

Mas se a fazenda de Fuller fosse atingida por um tornado ou uma enchente ou fosse seriamente afetada pela seca, ele seria o único a pagar a conta. Isso porque suas práticas agrícolas não são protegidas pelo seguro agrícola federal, uma rede de segurança de quase um século que não se adaptou à era da mudança climática.

Fuller faz parte de um número cada vez maior de agricultores que não têm seguro ou têm seguro insuficiente porque o setor ainda não se ajustou para levar em conta a mudança da agricultura tradicional para o novo modelo de agricultura regenerativa, uma abordagem que tem o potencial de sequestrar carbono suficiente para reduzir pela metade as emissões agrícolas até 2030.

A mudança ficou cada vez mais urgente, tanto para desacelerar a mudança climática quanto para proteger os agricultores de seus impactos, mas o setor de seguros continua sendo um obstáculo.

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Nos Estados Unidos, a agricultura é responsável por cerca de 11% de todas as emissões de gases de efeito estufa. Grande parte disso está ligada ao cultivo do solo, que libera dióxido de carbono, e à aplicação excessiva de fertilizantes, que emite óxido nitroso.

O óxido nitroso é um gás de efeito estufa que é mais de 270 vezes mais potente que o CO2. A agricultura regenerativa reduz essas emissões ao absorver o dióxido de carbono por meio da fotossíntese, armazenando carbono no solo e capturando nitrogênio que, de outra forma, iria para os mananciais próximos.

Porcos e gado à sombra de uma árvore

As condições climáticas extremas também ficaram mais frequentes, ameaçando a produção agrícola e as cadeias de suprimentos. Além do Kansas, 23 estados do país enfrentam secas severas a excepcionais, de acordo com o US Drought Monitor. Isso representa um problema, assim como as chuvas fortes que podem encharcar as plantações e que caem com uma intensidade cada vez maior.

Quase 20% dos US$ 140 bilhões em pagamentos de seguro agrícola de 1991 a 2017 foram efetuados devido ao aumento das temperaturas, de acordo com pesquisadores da Universidade de Stanford. Eles estimam que essa porcentagem continuará a aumentar com a frequência cada vez maior de condições climáticas extremas devido ao aquecimento global.

Apesar desses riscos – e do benefício que a agricultura regenerativa pode ter ao manejar as mudanças climáticas – incentivos mais fortes mantiveram o status quo, de acordo com Anne Schechinger, diretora do Centro-Oeste do Environmental Working Group (EWG), uma organização sem fins lucrativos.

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Como funciona o seguro agrícola

As apólices de seguro das safras cobrem principalmente as culturas convencionais de commodities, como milho, soja, algodão e trigo. Os agricultores que as cultivam normalmente contratam um seguro multirrisco, que protege culturas individuais contra colheitas ruins causadas por doenças, inundações, secas e outras condições climáticas extremas.

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Assim como o seguro de saúde, de carro ou de propriedade, as avaliações de perdas ou danos dependem de padrões – conhecidos como Boas Práticas Agrícolas – que garantem que os baixos rendimentos não sejam causados por má administração.

Mas essas regras não podem incluir uma prática que possa reduzir o rendimento de uma safra e, portanto, tendem a seguir práticas industriais e de monocultura estabelecidas: um agricultor que cultivar diferentes culturas ou encerrar suas culturas de cobertura tarde demais, por exemplo, corre o risco de ter seus pedidos de seguro negados.

A agricultura regenerativa geralmente envolve a intercalação de diferentes culturas no mesmo campo e o cultivo de plantas perenes de menor rendimento, o que pode criar problemas para as seguradoras. Mas os pagamentos do seguro agrícola não dependem, em grande parte, do fato de as práticas do agricultor aumentarem ou reduzirem os riscos climáticos, de acordo com a professora Silvia Secchi, da Universidade de Iowa.

Fuller, que faz parte da terceira geração de agricultores da família, começou a fazer experimentos com práticas agrícolas regenerativas em meados da década de 1990, acreditando que teria melhores rendimentos e colheitas mais resistentes a longo prazo. Ele cultivava culturas de cobertura na entressafra, uma das práticas agrícolas regenerativas mais comumente empregadas, que envolve o plantio de culturas não comerciais que melhoram a saúde do solo.

Na época, Fuller ainda estava coberto pelo seguro de safra tradicional e, de acordo com as regras do seguro, matou suas culturas de cobertura com herbicida antes de plantar sua safra comercial.

Homem branco com vestes e chapéu claros e óculos

Mas quando sua seguradora avaliou a terra em agosto de 2012, durante uma seca severa, determinou que as culturas de cobertura eram ervas daninhas. A empresa negou todos os sinistros de Fuller, o que fez com que sua instituição de empréstimo cancelasse sua linha de crédito operacional.

Fuller processou sua seguradora e ganhou. No entanto, dois anos mais tarde, quando ele precisou que a seguradora cobrisse as perdas de dois campos de soja, ela negou novamente seus sinistros. A turbulência financeira desses dois anos o forçou a reduzir o plantio em sua fazenda de 728 hectares para 162 hectares, e ele finalmente decidiu abandonar totalmente o seguro agrícola.

“Quando um agricultor vai à falência, é muito difícil se recuperar”, disse Fuller. “Eu não queria fazer parte desse sistema. Temos que encontrar uma maneira melhor de cultivar.”

O Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) introduziu reformas e alternativas no programa de seguro agrícola para acomodar os riscos climáticos na última década, incluindo a inclusão de cobertura para novas culturas e um incentivo de US$ 2 por hectare para o plantio de culturas de cobertura durante a entressafra.

A Agência de Gerenciamento de Riscos do país, que controla o seguro agrícola federal, também ampliou a cobertura de determinadas práticas inteligentes em relação ao clima, como a redução do uso de água, o cultivo de cobertura e a injeção de nitrogênio no solo, em vez de colocá-lo na superfície do solo.

Os agricultores ainda precisam seguir regras específicas, como terminar suas culturas de cobertura com antecedência suficiente, o que, segundo alguns cientistas, limita o quanto essas práticas podem reduzir as emissões.

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O sistema de seguro agrícola já está sob pressão devido às mudanças climáticas. O programa precisa evoluir para incentivar práticas apropriadas a diferentes regiões e cobrir uma variedade de riscos, disse um porta-voz do Departamento de Agricultura, tudo isso sem deixar de ser atuarialmente sólido – o que significa que o programa deve cobrar prêmios altos o suficiente para cobrir as perdas esperadas.

“Mesmo em microescala, uma tempestade ruim pode ser prejudicial a um tipo de cultura, ao mesmo tempo em que proporciona a tão necessária chuva para outra cultura”, disse o porta-voz do USDA à Bloomberg.

“O seguro de safra é voluntário”, disse RJ Layher, diretor de assuntos governamentais da American Farm Bureau Federation. Os agricultores que praticam técnicas regenerativas não cobertas pelas Boas Práticas Agrícolas podem procurar outras opções, acrescentou ele, incluindo mostrar à Agência de Gerenciamento de Riscos que suas práticas são atuarialmente sólidas.

No entanto, coletar dados suficientes para provar que práticas favoráveis ao clima, como a diversificação de culturas, não afetarão o rendimento é uma tarefa difícil para qualquer agricultor.

Quatro imagens: no canto superior esquerdo, uma plantação; no canto superior direito, cinco gansos; no canto inferior esquerdo, cabeças de porco; no canto inferior direito, um homem cuidando de galinhas

O USDA também lançou o Whole-Farm Revenue Protection Program em 2014, que assegura toda a receita de uma fazenda em vez de culturas individuais e fornece uma rede de segurança para os agricultores que plantam culturas complementares ou criam animais em seus campos.

Mas o número de agricultores que participam do Whole-Farm Revenue Protection Program é pequeno, de acordo com Schechinger, do EWG. Cerca de 1.800 apólices foram vendidas em 2023, de acordo com o USDA, o que representa menos de 1% do seguro agrícola. O programa envolve muito mais burocracia e um limite de receita segurada que nem sempre cobre toda a receita da fazenda, o que pode ser proibitivo para os agentes de seguro venderem e para os agricultores comprarem a apólice, disse Layher.

De acordo com Layher, o Farm Bureau apoia melhorias no Whole-Farm Revenue Protection Program que o tornariam mais acessível aos agricultores e mais fácil para os agentes de seguros venderem – ambas as reformas são propostas no projeto de lei Farm Bill que está parado na Câmara até pelo menos setembro.

Novo modelo de produção agrícola

O movimento da agricultura regenerativa é relativamente pequeno, mas ganhou força nos últimos anos graças ao apoio federal e a empresas do agronegócio ansiosas para alinhar suas cadeias de suprimentos e metas de sustentabilidade.

Companhias como a CoverCress, de propriedade majoritária da Bayer, tentam fazer com que os agricultores plantem culturas de cobertura que possam ser usadas como combustível de aviação sustentável. E a General Mills (GIS) implementou programas-piloto para ajudar 24 produtores de trigo no Kansas, a iniciar suas práticas regenerativas.

Mas, por enquanto, a pressão para mudar as regras de seguro agrícola ainda depende em grande parte de agricultores como Fuller e Rick Clark, um agricultor de terceira geração do centro-oeste de Indiana que não tem seguro há seis anos porque pratica agricultura regenerativa.

Quando não está trabalhando em sua fazenda – que utiliza culturas de cobertura em todos os 2.800 hectares – Clark ensina outros agricultores a eliminar os fertilizantes químicos e a utilizar culturas de cobertura em suas fazendas.

“Temos que garantir que o caminho para a mudança seja fácil”, disse Clark. Um dos maiores desafios que os agricultores sem seguro enfrentam é a instituição de crédito, que geralmente exige que eles tenham uma apólice de seguro para continuar recebendo empréstimos.

Clark depôs perante o Congresso americano no final de 2022 em nome da Regenerate America, uma coalizão que faz lobby pela reforma agrícola, pedindo as reformas legislativas que Schechinger disse serem necessárias.

No dia seguinte ao depoimento de Clark, o Congresso aprovou a Lei de Redução da Inflação, a lei histórica do presidente Joe Biden que inclui um investimento de US$ 19,5 bilhões nos programas de preservação do USDA. Clark sentiu que tinha um pequeno papel a desempenhar nesse processo.

“Em algum momento, quando você está lá dentro, você se pergunta se alguém presta atenção no que você diz”, disse Clark. Mas então, “você sente que talvez suas palavras foram ouvidas e que talvez haja pessoas que realmente prestem atenção”.

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