Bloomberg — A China enfrenta pressão crescente para produzir mais alimentos internamente, uma vez que as importações de grãos têm atingido níveis recordes e as tensões comerciais aumentam. O cenário tem levado as principais lideranças em Pequim a focarem em um componente essencial dessa tarefa: a terra.
O país alimenta um quinto da população global com menos de 10% da terra arável do mundo, atendendo boa parte da demanda com compras de produtos agrícolas do exterior.
Pequim agora busca mudar esse equilíbrio e tem impulsionado o uso da tecnologia e os investimentos para transformar áreas salinas ou poluídas em campos cultiváveis.
Esforços como esse são os alicerces de uma campanha cada vez mais forte da China para produzir alimentos suficientes para a sua população.
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Embora seja uma preocupação de longa data, Xi Jinping tem dado ênfase crescente à autossuficiência à medida que os laços com o Ocidente se desgastam, uma possível segunda presidência de Donald Trump se aproxima e a invasão da Ucrânia pela Rússia expõe os riscos de fornecimento global de grãos.
Condições climáticas extremas, agravadas pelo aquecimento global, também têm prejudicado com mais frequência as colheitas chinesas — e as de países produtores no exterior.
Embora seja improvável que a China deixe o mercado global tão cedo, a determinação em trabalhar pela segurança alimentar é clara. Sua primeira lei de segurança alimentar entrou em vigor no mês passado, visando reforçar os esforços para aumentar a produção doméstica e responsabilizar autoridades por sua implementação. A lei foi rapidamente redigida e adotada, destacando a urgência da questão.
“Garantir a segurança alimentar é uma escolha inevitável para um país com 1,4 bilhão de pessoas, é a segurança mais fundamental e uma questão de soberania básica”, disse Kong Xiangbin, professor especializado em terras na Universidade Agrícola da China. “E a terra arável é a coisa mais crucial para esse fim.”
Kong estima que a China tem mais de 6 milhões de hectares — ou 100 milhões de mu usando a unidade de medida chinesa — de terras que são deixadas sem uso devido à rápida urbanização.
Além disso, grandes áreas são inutilizáveis devido à poluição ou salinidade excessiva. É esse último problema que a China começou a mostrar sucesso após anos de pesquisa.
Um exemplo é a vila de Nanliuhe, na província oriental de Shandong, que antes ficava submersa. A menos de 20 quilômetros do Mar Amarelo, seu solo ainda é tão salgado que montes brancos brilhantes de sal são coletados de lagoas que pontilham a paisagem. Por gerações, os agricultores no local foram forçados a arcar com baixos rendimentos das colheitas ou buscar trabalho longe de casa.
Agora, graças a um método pioneiro que funciona afrouxando o solo denso que prende o sal e permitindo que ele seja lavado, os campos da vila ostentavam em maio fileiras de trigo na altura dos joelhos, que foram recentemente colhidas. Se replicável, a tecnologia poderia transformar a produção doméstica de grãos e outras culturas.
“Desde que me lembro, temos tentado melhorar a terra”, disse Li Genyuan, que gerencia cerca de 67 hectares de campos onde também são cultivados milho e soja. Ele voltou à agricultura depois de trabalhar por uma década na construção civil e têxteis, e até em fazendas de sal próximas. Após tentativas ao longo dos anos utilizando métodos como pesticida e adubo, o novo modelo foi a solução mais rápida encontrada.
A área de solo afetado pelo sal na China é quase do tamanho da Áustria e equivale a cerca de 6% de sua terra arável.
As terras alcalinas estão até se espalhando ao longo do Rio Amarelo devido aos métodos tradicionais de irrigação e à mudança climática. O problema é tão sério que Xi até levantou a questão repetidamente em discursos, algo que não fazia antes de 2020, segundo um banco de dados oficial.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) disse em uma declaração escrita que os solos salinos representam pelo menos 10% da terra arável global, com mais de um bilhão de hectares em risco, e “o manejo sustentável desses solos é crucial para atender à demanda por alimentos.”
Li trabalha com Hu Shuwen, um professor de Pequim que desenvolveu o método para tratar terras salinas após passar anos na América do Norte trabalhando com biomateriais. Os rendimentos triplicaram desde que o solo foi tratado, em níveis comparáveis aos de um campo de trigo regular, dizem os pesquisadores de Hu.
Sua equipe transformou mais de 133.000 hectares de terras salino-alcalinas em toda a China desde que seu primeiro projeto de campo foi lançado em 2008, e eles planejam fazer mais 27.000 hectares este ano.
Não são apenas as terras salinas que estão sendo transformadas. A Chongqing Greatech Architectural Technology, uma empresa de tecnologia de construção no sudoeste da China, está entre os muitos atores que têm experimentado transformar minas ociosas em terras agrícolas. Ela transformou mais de 30 hectares de minas de calcário em terras aráveis de 2020 a 2023.
Em casos mais extremos, o governo fechou alguns campos de golfe que, segundo autoridades, ocuparam ilegalmente terras aráveis, em uma campanha intensificada para regular a construção desses locais.
Alguns governos locais, pressionados a aumentar a produção de grãos, até derrubaram dezenas de milhares de árvores em cinturões verdes em cidades para abrir espaço para terras agrícolas.
No conjunto, há sinais de que uma reversão está em andamento. A terra arável total da China aumentou nos últimos dois anos após uma queda prolongada, disse o governo em 2023. A meta é aumentar ainda mais a autossuficiência em grãos e reduzir as importações em mais de 30%.
Ainda assim, os estudiosos alertaram que a poluição por metais e pesticidas ameaça a qualidade das terras agrícolas. E levará tempo para reduzir a liderança de longa data da China nas importações globais de soja. As recentes condições meteorológicas extremas também ressaltam o risco de reduzir as importações de grãos.
As compras combinadas de milho, trigo, soja, sorgo e cevada — as cinco maiores culturas que a China compra em volume — estão programadas para atingir um recorde histórico de quase 161 milhões de toneladas na safra 2023-24 e podem aumentar ainda mais na próxima, prevê o Departamento de Agricultura dos EUA.
“Com ganhos de produtividade, você provavelmente pode acompanhar grande parte do aumento da demanda”, disse Joe Glauber, pesquisador sênior do Instituto Internacional de Pesquisa em Políticas Alimentares. “Mas acho que não há dúvida de que a China continuará sendo um importador de aliemntos e certamente um importador de soja.”
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