Opinión - Bloomberg

Milei deveria focar nos desafios da economia em vez de buscar ‘lacrar com a lacração’

Em Davos, presidente argentino buscou mais uma vez desmoralizar a agenda climática e de diversidade, deixando a estabilização da economia e da inflação em segundo plano

Javier Milei participou da cerimônia de posse de Donald Trump e do Fórum Econômico Mundial em Davos (Foto: Alessia Pierdomenico/Bloomberg)
Tempo de leitura: 4 minutos

Bloomberg Opinion — Javier Milei passou mais uma semana sob os holofotes.

O líder argentino foi um dos dois únicos presidentes estrangeiros que participaram da posse de Donald Trump em Washington (a outra foi a italiana Giorgia Meloni, outra aliada de Trump), solidificando sua aliança política com o movimento MAGA. Em seguida, Milei viajou para Davos, onde mais uma vez deu um sermão aos ricos e poderosos sobre os perigos da esquerda e da “hegemonia” da “lacração”.

Em sua opinião, tudo, desde o feminismo até a ecologia e o gênero ou as políticas que buscam a diversidade, a igualdade e a inclusão (DEI, na sigla em inglês), são apenas desculpas para justificar a “barbárie” dos países e das organizações supranacionais.

“É nosso dever moral e responsabilidade histórica desmantelar a construção ideológica da ‘lacração’”, disse Milei, acusando os organizadores do Fórum Econômico Mundial de promover essas ideias “erradas”. “É o câncer que temos que remover.”

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Leia mais: Milei diz que deixaria o Mercosul para fechar acordo de livre comércio com os EUA

Mesmo no atual clima antidiversidade, os comentários às vezes de mau gosto de Milei em Davos na quinta-feira (23) seriam reprovados nas políticas de RH de muitas multinacionais, o que pode explicar o aplauso glacial que ele recebeu de um público geralmente energizado por seu ethos econômico.

É verdade que, independentemente das razões ideológicas, a guerra cultural de Milei traz benefícios políticos ao reunir seus apoiadores. Isso também permitiu que ele cultivasse seu relacionamento oportuno com o novo presidente dos EUA, catapultando-o para o papel de herói nessa versão conservadora da Liga da Justiça.

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No entanto, infelizmente para o autodenominado liberal libertário, seu foco em questões culturais não o levará muito longe se ele não for bem-sucedido na única tarefa que os eleitores lhe atribuíram: domar a infame economia argentina volátil e derrubar a inflação.

Milei admitiu isso na conversa que teve com o editor-chefe da Bloomberg News, John Micklethwait, um dia antes, também em Davos: “Tenho uma atribuição no trabalho que é: reduzir a inflação, reduzir a pobreza, acabar com a insegurança e fazer a economia crescer.” Não há nada de “acabar com a ‘lacração’” na lista.

Não faz muito tempo, Milei admitiu que não seria presidente se não fosse pelo histórico de repetidos fracassos econômicos da Argentina. É por isso que foi bizarro que, em seu “discurso especial” de meia hora, ele tenha feito apenas uma referência passageira às vitórias econômicas que obteve em seu primeiro ano no poder (ao contrário de seus comentários mais extensos na Bloomberg TV).

Se não estivesse tão focado em suas obsessões sociais, Milei poderia ter destacado o impressionante superávit fiscal registrado pela Argentina no ano passado, o primeiro desde 2009, após cortes drásticos no orçamento que abriram caminho para uma desaceleração histórica da inflação.

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Ou a recuperação mais rápida do que o esperado na atividade econômica, com o crescimento de pelo menos 5,5% no PIB no último ano, de acordo com o JPMorgan. Ou a enorme expansão que o setor de hidrocarbonetos do país registrou.

Esses teriam sido lembretes oportunos de que, além de seu estilo abrasivo, o projeto político de Milei está enraizado em um plano econômico ambicioso e sério que está mostrando os primeiros sinais de sucesso.

Em vez disso, ele optou por atacar a União Europeia, com a qual a Argentina acaba de assinar um acordo de livre comércio por meio do Mercosul.

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É bem possível que Milei tenha decidido exagerar seu tom para fazer eco a alguns dos comentários de Trump no início desta semana: afinal de contas, a ajuda do presidente dos EUA será crucial para desbloquear um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (provável) e um acordo de livre comércio entre a Argentina e os EUA (improvável).

Mas sejamos claros: um país como a Argentina não pode se dar ao luxo de perder qualquer investimento potencial ou acesso diplomático por causa de um discurso ideológico.

Depois de passar um mês em Buenos Aires, estou convencido de que a economia propensa à crise terá dois anos de crescimento considerável em 2025 e 2026, colocando o país no caminho de uma recuperação sólida e, talvez, de uma estabilidade sustentada.

Mas também sei que outros presidentes, de Carlos Menem a Mauricio Macri, passaram por situações semelhantes, apenas para ver seu sucesso inicial e alta popularidade evaporarem devido a inconsistências financeiras, erros políticos e o peso da história. A Argentina está sempre a apenas um passo do desastre. Milei não deve tentar o destino.

Leia mais: Trump intensifica esforço para desmantelar políticas de diversidade nas empresas

Aqueles que dizem que o presidente está apenas falando suas verdades, como fez durante toda a sua vida, devem considerar como suas fixações ideológicas firmes se desintegram no momento em que ele é questionado sobre a China.

“Não fazemos pactos com comunistas”, ele me disse quixotescamente em agosto de 2023, antes de ganhar a presidência. Questionado agora sobre o assunto por Micklethwait, ele diplomaticamente disse que os dois países “têm muito a fazer juntos”.

“Bem, às vezes é preciso aprender”, acrescentou Milei, quando pressionado sobre essa significativa reviravolta. “Você não aprende todos os dias? Bem, se eu não aprender, estarei prejudicando os argentinos. Tenho uma pressão extra para aprender rápido.”

Esperemos que, após a resposta morna ao seu discurso em Davos, Milei tenha aprendido um pouco mais.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Juan Pablo Spinetto é colunista da Bloomberg Opinion e cobre negócios, assuntos econômicos e política da América Latina. Foi editor-chefe da Bloomberg News para economia e governo na região.

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