Como Netflix e Hollywood buscam reduzir a pegada de carbono no set de séries e filmes

Dificuldades das empresas para diminuir o impacto ambiental das produções expõem os desafios da indústria cinematográfica de cumprir as metas de zerar emissões

Virgin River set
Por Michelle Ma
08 de Setembro, 2024 | 07:45 AM

Bloomberg — Há uma luz suave, de fim de tarde, que ilumina uma cena entre a personagem protagonista e a mãe do homem por quem ela está interessada, no set de filmagem de Virgin River, uma série da série da Netflix (NFLX) filmada em Vancouver, no Canadá.

O drama, que é centrado na história de uma enfermeira que vive em uma pequena cidade do norte da Califórnia, é o tipo de série que trata de segredos enterrados, vilões frustrados e o reencontro de antigas paixões.

Essa luz solar falsa - criada com a combinação de duas enormes lâmpadas de 18.000 watts que funcionam com uma bateria gigante - é a forma como a Netflix quer reduzir o impacto ambiental do negócio poluente das produções de Hollywood.

Na maioria dos sets de filmagem e estúdios de TV, a iluminação é alimentada por geradores a diesel barulhentos. Virgin River é uma das várias produções da Netflix que substituem os geradores poluentes e o transporte baseado em combustível fóssil por alternativas mais ecológicas.

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Em Atlanta, a produção da série Stranger Things, por exemplo, tem testado também o uso de trailers movidos a energia solar e, nos arredores de Londres, a empresa testou uma unidade de energia a hidrogênio.

Tudo isso faz parte do plano da Netflix de reduzir suas emissões pela metade até 2030.

O progresso da Netflix foi marginal nos três anos desde que começou a se concentrar na sustentabilidade em 2020. As emissões da empresa aumentaram em 2022 em comparação com 2019, que foi escolhido pela empresa como ano de referência. (As emissões caíram drasticamente em 2023, o último ano relatado, mas isso foi atribuído em grande parte às paralisações de trabalho durante as greves de Hollywood).

“Parte disso é que não temos controle operacional direto”, diz Emma Stewart, cujo trabalho como diretora de sustentabilidade inclui a redução das emissões.

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O foco na produção de filmes e séries de TV é fundamental, já que essas atividades costumam ser responsáveis por mais da metade das emissões da empresa.

Com exceção de um estúdio em Albuquerque, a Netflix não possui equipamento ou estúdio próprios para suas produções. (Nesse estúdio de Albuquerque, a empresa investiu em circuitos de água geotérmica, sistemas de armazenamento solar e de bateria e carregadores rápidos de veículos elétricos).

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Embora a empresa possa exigir a redução de emissões de seus fornecedores, locadores e produtores de séries e filmes, Stewart acredita que “criar incentivos” é uma abordagem melhor do que as punições.

Desde seu início das produções em preto e branco, a indústria cinematográfica construiu um ecossistema global próspero, mas distribuído, de fornecedores locais que fornecem equipamentos especializados: luzes, câmeras, caminhões, cabos e geradores.

Carregador elétrico

Fazer com que todas essas unidades diferentes mudem a forma como fazem negócios não é uma tarefa fácil, mesmo com grandes incentivos.

Se a Netflix convencesse seus fornecedores a comprar equipamentos de baixa emissão, isso poderia levar a uma mudança em todo o setor. As emissões da Netflix estão alinhadas com as de seus concorrentes do setor, e seus desafios são os mesmos.

As mesmas lojas que alugam luzes, fontes de energia portáteis e veículos tendem a atender produções em vários estúdios e, portanto, mais tecnologia verde para a Netflix significa mais para todos.

E se a empresa conseguir comunicar aos fabricantes desses equipamentos que existe um comprador, isso ajudaria a diminuir o risco do investimento e incentivaria uma maior adoção em todo o setor.

Fazer isso seria um feito considerável. Embora a pegada de carbono do setor de entretenimento seja, em geral, pequena se comparada a setores com maior intensidade de emissões, como tecnologia e aviação, sua influência social é indiscutivelmente maior.

A marca de Hollywood na cultura e nos hábitos não pode ser subestimada e poderia inspirar uma mudança maior na forma como as grandes corporações priorizam a sustentabilidade.

A Netflix é responsável por cerca de 8% da audiência de TV nos EUA; é uma rede líder na maioria dos principais mercados do mundo. A empresa estima seu público em mais de meio bilhão de pessoas. Ela está no caminho para faturar quase US$ 40 bilhões este ano.

Trabalho no set

Diferentemente do negócio de bens de consumo, o crescimento das empresas de streaming não precisa depender do número de objetos físicos produzidos, ressalta Albert Lin, professor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Davis, especializado em direito ambiental.

Teoricamente, uma empresa de conteúdo pode conquistar mais assinantes sem aumentar o número de séries. “Você também poderia imaginar um crescimento lento, mas melhor”, diz ele.

É claro que argumentar a favor do crescimento lento é um argumento difícil de ser apresentado aos investidores de qualquer empresa, e é improvável que a Netflix ou qualquer outro estúdio de Hollywood considere seriamente essa estratégia.

Por enquanto, a gigante do streaming está concentrada nas mudanças individuais que pode fazer em cada produção.

No set de filmagem de Virgin River, enquanto todos os outros estão alheios à transição energética que está ocorrendo ao seu redor, Jeff Harvey está no calor da situação.

Harvey é o chefe de iluminação de Virgin River, o que significa que ele supervisiona toda a energia e a iluminação. Mas agora, ele se parece mais com um gerente de logística. Ele elabora um “plano de batalha” que inclui onde cada bateria deve ser colocada, quando precisa estar lá e o que precisa alimentar, levando em conta o tempo de recarga. “Gastamos um pouco menos de tempo montando, e eu passo mais tempo no planejamento inicial,” diz Harvey.

Carros elétricos

Para Rob Fairbridge, cuja função como coordenador de transporte envolve o gerenciamento de uma frota de veículos, a integração de carros e caminhões elétricos no set envolve novos obstáculos diários.

Ele faz testes com cada veículo novo por duas semanas antes do início da produção para antecipar os pontos problemáticos dos motoristas. A bateria de um carro carrega mais lentamente quando está no final do carregamento, portanto, os motoristas precisam levar em consideração esse tempo extra.

Os caminhões elétricos normalmente têm um vão menor entre o caminhão e o asfalto do que os caminhões a combustível porque as baterias geralmente ficam na parte inferior do veículo. Portanto, os motoristas precisam levar isso em consideração ao entrar ou sair de determinadas garagens para evitar o tombamento.

E uma lição aprendida da maneira mais difícil: às vezes, a autonomia de um caminhão elétrico indicada pelo fabricante é muito maior do que a realidade.

Descarbonização

Embora seja a mais visível, a descarbonização da produção de filmes e TV tem sido uma pequena parte do trabalho de redução de emissões da Netflix. Veículos elétricos ou híbridos e energia móvel limpa - como baterias e sistemas de hidrogênio - representaram 5% das emissões evitadas totais da empresa em 2022 e 2% em 2023.

A maior parte das reduções de emissões da Netflix veio da compra de energia renovável, seja por meio de seus proprietários dos imóveis ocupados pela empresa ou diretamente por meio das empresas de distribuição de energia. Isso não é tão simples quanto parece.

As empresas de energia permitem que grandes clientes paguem pela energia renovável gerada por uma central específica, como uma usina solar.

Embora os detalhes possam variar de concessionária para concessionária, o objetivo é ajudar os clientes a atingir suas metas de energia limpa e as concessionárias a reduzir os riscos financeiros associados à construção de novos projetos de energia renovável. Stewart, a diretora de sustentabilidade, diz que a Netflix paga um prêmio para optar pela energia renovável.

Para o restante de suas emissões que não consegue evitar ou reduzir, a Netflix compra créditos de carbono. A empresa comprou mais de um milhão de créditos em 2021 e 2022; no ano passado, foram pouco mais de 800.000.

Está documentado que muitos créditos anunciam impactos climáticos positivos que nunca se concretizam. “Não vamos fingir que todo esse mercado é perfeito, nem nenhum mercado é perfeito, mas o que ele exige é uma boa supervisão, boas diretrizes, princípios e responsabilidade”, diz Stewart.

Alternativas

Para que a Netflix aumente a credibilidade de sua alegação de apoiar as metas globais de emissões zero, há muito mais que ela poderia fazer. Por exemplo, ela poderia investir em tecnologias de remoção de carbono mais duráveis, como máquinas que removem carbono do ar, diz Albert Lin, o professor da Universidade da Califórnia. Isso é algo em que outras grandes empresas, como Stripe, Alphabet e JPMorgan Chase já investiram milhões.

Assumir a responsabilidade por mais emissões relacionadas a streaming é outra medida que a Netflix poderia tomar. Atualmente, embora sua contabilidade de carbono inclua as emissões associadas a data centers de terceiros, ela exclui as emissões associadas ao streaming de vídeo em seu site, bem como a eletricidade usada pelos dispositivos para assistir ao seu conteúdo.

Stewart diz que a Netflix consulta o Protocolo de Gases de Efeito Estufa para obter orientação sobre como contabilizar as emissões indiretas relacionadas à internet e aos dispositivos, e ele não especifica exatamente como o setor de entretenimento deve tratar essas emissões, por isso opta por não incluí-las.

Mas alguns especialistas acreditam que a Netflix deveria contabilizar essas emissões.

“É uma omissão generosa de responsabilidade”, diz Vaughan, que aponta para a grande parcela de largura de banda global que os provedores de conteúdo, como a Netflix, detêm, que um relatório estima em quase 15% do tráfego global da internet.

A Netflix reconhece que é preciso fazer mais para acelerar a adoção de tecnologia verde nos sets de filmagem. A empresa tem feito investimentos para tentar impulsionar a cadeia de suprimentos de equipamentos ecológicos para suas produções.

A Netflix, a Walt Disney (DIS) e a organização sem fins lucrativos RMI criaram a Clean Mobile Power Initiative no ano passado. O programa dá às startups acesso a uma nota conversível de US$ 100.000 (um empréstimo que é pago com capital próprio da empresa, em vez de principal e juros), bem como apresentações a investidores em potencial e “dias de teste” nos sets dos estúdios, onde podem testar seus equipamentos.

O programa foi lançado com 10 startups para ajudar a preparar sua tecnologia para a produção. O programa de 18 meses ainda está em seus primórdios e, portanto, é muito cedo para ver os resultados do programa, diz Caroline Winslow, da RMI, que ajuda a administrar o programa.

Limitações para as filmagens

Outra ação no set que resultaria em reduções significativas de emissões é a definição de um orçamento de carbono para cada filme ou série, limitando tanto o número de produções quanto a quantidade que cada produção pode emitir.

Atualmente, os produtores podem ser forçados a cortar uma filmagem de helicóptero devido a restrições financeiras; com um orçamento de carbono, eles teriam que eliminar a filmagem se ela for muito intensiva em emissões.

Mas na Netflix, a vontade do lado criativo supera essas prioridades. "Gostamos muito de ser liderados pelos criadores", diz Stewart.

Embora a Netflix tenha feito experiências de colocar limites em algumas produções, ela está mais interessada hoje em persuadir mudanças sustentáveis no set por meio de incentivos financeiros, diz ela.

As produções que desejam incorporar trocas sustentáveis recebem um “subsídio de sustentabilidade” que pode ser usado para o uso de baterias e veículos elétricos, por exemplo, e não pode ser realocado para outras partes do orçamento.

Vaughan acredita que mais exigências forçariam uma mudança positiva na cultura do setor. "A criatividade floresce sob restrições", diz ele.

Depois de já terem trocado o diesel por baterias e acrescentado mais tempo para o carregamento de veículos elétricos, os trabalhadores da produção podem adotar novas regras.

"Não me importo com mudanças", diz Fairbridge, o coordenador de transporte, cuja realidade é um constante malabarismo com novas restrições. "E acho que o mundo está indo nessa direção."

-- Com a colaboração de Ben Elgin e Lucas Shaw.

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