Bloomberg Opinion — Em 2013, as pessoas que gostavam de estar na moda começaram a usar óculos com uma câmera e um display embutidos, pequenos, mas inevitavelmente visíveis.
Esses fashionistas eram excepcionalmente distraídos, mesmo para uma época de distrações – perdiam o fio da meada da conversa, olhavam para o espaço, inclinavam a cabeça de forma estranha, murmuravam comandos estranhos (“tire uma foto”, “grave um vídeo”) e, de vez em quando, recitavam listas de fatos impressionantes, embora irrelevantes, retirados das páginas da Wikipédia.
Os óculos eram chamados de “Google Glass” e as infelizes criaturas que os usavam, de “Glass Explorers”. Mas logo a moda desapareceu e os óculos não estão mais disponíveis.
Será que a Internet das Coisas (IoT) é um experimento mais prolongado do Google Glass – uma maneira complicada de resolver um problema que não é problema?
Nos últimos 20 anos, as empresas investiram bilhões de dólares na IoT. As consultorias falam em relatórios brilhantes sobre um futuro maravilhoso em que objetos “burros” são infundidos com inteligência – cabos de guarda-chuva que brilham quando está prestes a chover, caixas de comprimidos que gritam quando você se esquece de tomar seus remédios, fornos inteligentes que oferecem um assado perfeito, raquetes de tênis que alimentam seu smartphone com dados que lhe dizem como melhorar seu saque.
A propaganda continua. Um novo relatório da consultoria de gestão McKinsey estima que “o potencial de valor total do ecossistema de IoT pode chegar a US$ 12,6 trilhões até 2030″.
Um novo livro de Vijay Govindarajan, da Tuck School of Business da Dartmouth University, e Venkat Venkatraman, da Questrom School of Business da Boston University, chamado Fusion Strategy (”Estratégia de fusão”, em tradução livre), prevê que a fusão de big techs e gigantes de ferro, aço e silício produzirá nada menos que uma quarta revolução industrial. Mas, se o hype continua, o mesmo acontece com as decepções.
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Pesquisas realizadas por fabricantes sugerem que menos da metade dos dispositivos com capacidade de conexão à internet estão conectados à internet.
Empresas como a LG e a Whirlpool (WHR) reagiram a esses números desanimadores por meio de ainda mais investimentos em IoT. Mas muitos clientes permanecem indiferentes.
“Why Has the Internet of Things Failed” (“Por que a Internet das Coisas fracassou”, em tradução livre) é o título de um artigo recente do blogueiro de tecnologia Pete Warden. A resposta simples à pergunta de Warden é que, para muitos consumidores, não vale mais a pena insistir.
O benefício para o consumidor de conectar seus dispositivos domésticos à internet geralmente é pequeno. Qual é a vantagem de conectar sua lavadora de louças à internet?
Talvez você possa ligá-la remotamente (depois de usar o polegar para ativar o telefone, encontrar o aplicativo, clicar no aplicativo e pensar em todas as outras coisas que poderia ou deveria estar fazendo no telefone). Mas você ainda precisa colocar as roupas manualmente.
Qual é a vantagem de poder controlar a temperatura da sua geladeira remotamente? Fanáticos por geladeiras podem se deleitar com esse poder, mas a maioria de nós simplesmente ajusta a geladeira para a temperatura certa e se esquece dela.
A mesma pergunta vale para as notificações de que a máquina de lavar roupa terminou de lavar, de que a chaleira ferveu ou de que o forno esquentou.
Talvez você nunca tenha considerado “o papel da IoT nos copos reutilizáveis”. Fique tranquilo, pois o sempre inventivo setor de IoT pensou. “As estações de devolução habilitadas para IoT permitem que os usuários devolvam seus copos usados de forma conveniente” e, ao mesmo tempo, fornecem à equipe de limpeza informações atualizadas sobre a quantidade de copos acumulados.
Os dispositivos de IoT podem rastrear a localização e o status dos copos reutilizáveis fornecer dados valiosos sobre os padrões de uso e ajudar a otimizar o processo de distribuição e coleta. E as máquinas de limpeza habilitadas para IoT podem garantir que os copos sejam higienizados de acordo com os padrões do setor.
Não seria mais simples e mais barato simplesmente instalar uma pia e fazer com que todos lavassem seus próprios copos?
Se os benefícios costumam ser pequenos ou até inexistentes, o fardo da instalação é alto. É preciso fazer o download de um aplicativo diferente para cada fabricante. É necessário certificar-se de que o dispositivo esteja conectado à Internet (as lavadoras e secadoras geralmente são mantidas em locais afastados, onde o sinal de internet é fraco).
A configuração de um iPhone ou iPad pode ser bastante trabalhosa, embora os benefícios sejam óbvios e os dispositivos venham equipados com teclados. Mas digitar instruções complicadas em um forno é uma tarefa de magnitude diferente.
Os problemas não param quando você está conectado. As pessoas tendem a manter seus produtos de linha branca por anos. A IoT as obriga a reprogramar esses dispositivos sempre que mudam seus provedores de serviços, seus smartphones ou até mesmo suas senhas.
Um dos benefícios mais elogiados da IoT é que ela permite que as empresas atualizem os produtos remotamente. Mas e se a atualização der errado?
Os usuários dos dispositivos de áudio da Sonos que baixaram o aplicativo mais recente da empresa descobriram que ele deixava os alto-falantes descontrolados – tocando música em volumes que estouram os ouvidos ou emitindo sons agudos no meio da noite.
Quanto mais interconectados os aparelhos se tornarem, maior será a chance de todos eles falharem juntos.
O argumento a favor da IoT é um pouco mais forte no mundo das máquinas caras do que no mundo dos fornos e das máquinas de lavar. Elon Musk revolucionou o setor automobilístico ao reimaginar o carro como um computador conectado sobre rodas.
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A Deere (DE) está tentando revolucionar o setor de máquinas agrícolas, sendo igualmente ousada em relação aos tratores. A empresa alega que coleta entre 10 milhões e 15 milhões de informações por segundo de cerca de 500.000 máquinas conectadas em mais de 131 milhões de hectares de terra em todo o mundo para possibilitar a agricultura de precisão – por exemplo, pulverizar ervas daninhas individuais com herbicida em vez de pulverizar um campo em geral.
Grandes empresas de infraestrutura, como a Schlumberger e a Halliburton, usam sensores para vigiar, por exemplo, plataformas de petróleo em busca de sinais de ferrugem e desgaste. A Rolls-Royce os utiliza para monitorar o desempenho de seus motores a jato no ar e se há desperdício de combustível.
Em todos esses casos, a análise de custo-benefício da conexão de máquinas à internet é diferente da do setor de consumo: ainda vale a pena insistir. Mas isso não impede brigas amargas entre as empresas e seus clientes sobre a divisão de espólios e o equilíbrio de poder.
A Apple é famosa por forçar seus clientes a irem às suas próprias lojas para realizar consertos quando seus telefones quebram, em vez de optarem por lojas de conserto terceirizadas mais baratas.
A empresa chegou a usar atualizações de software para desativar telas instaladas por terceiros. A John Deere provocou a revolta dos fazendeiros por sua tentativa de fazer o mesmo com seus tratores, argumentando inclusive que seus produtos são tão computadorizados e interconectados que os fazendeiros não são mais proprietários dos tratores, mas apenas os alugam.
A última preocupação com a IoT é que ela transforma tudo ao seu redor em um espião. As pessoas demoraram a se preocupam em fornecer tantas informações sobre si mesmas a seus computadores e telefones.
Será que aqueles de nós que finalmente começaram a se preocupar em expor suas vidas a seus iPhones querem adicionar suas máquinas de lavar, fornos ou carros à lista de dispositivos de escuta?
E será que podemos confiar nos fabricantes de máquinas de lavar ou fornos para proteger nossas informações com a mesma competência com que confiamos no Google ou na Apple? Quanto mais informações colocamos na IoT, maior é o risco de vazamento ou de elas caírem em mãos erradas.
As empresas começaram a se queixar da resistência dos consumidores à tecnologia quando se trata da IoT. Mas antes de investir ainda mais bilhões na criação de uma Internet das Coisas, as empresas devem se perguntar se essa “resistência à tecnologia” é apenas atraso ou se é motivada por um cálculo astuto do equilíbrio entre o uso do produto (geralmente mínimo) e a ameaça à privacidade.
Às vezes, é melhor confiar em seus clientes em vez de persistir na busca de um hype comercial. As pessoas podem ficar felizes em ver este ou aquele dispositivo conectado à internet se puderem ver benefícios óbvios. Mas uma Internet das Coisas abrangente, que vai da sua torradeira ao seu carro e ao seu copo reutilizável no trabalho, continuará sendo um sonho impossível.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Adrian Wooldridge é o colunista de negócios globais da Bloomberg Opinion. Ele já foi escritor para o The Economist e é autor de “The Aristocracy of Talent: How Meritocracy Made the Modern World”.
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