Opinión - Bloomberg

Esquerda latino-americana comete um erro histórico na Venezuela

Ao não condenar a fraude eleitoral de Maduro, alguns dos líderes de esquerda da América Latina alimentam a instabilidade regional, além de trair seus ideais

Manifestantes em Caracas após as eleições
Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — A imagem era simbólica: uma estátua do falecido Hugo Chávez caindo no chão, derrubada por uma multidão enfurecida de venezuelanos que protestavam contra a fraude nas eleições do país no domingo (28).

A mensagem claramente expressava a sede por mudança do país e a frustração pública em ebulição com os últimos truques do regime socialista do presidente Nicolás Maduro. Os venezuelanos estavam fartos e, para quem olha de fora, a fabricação pura e simples dos resultados da eleição pelo governo deveria ser uma prova conclusiva de seu comportamento autoritário.

Mas nem mesmo essas manifestações avassaladoras podem convencer alguns dos que jogam na equipe ideológica de Maduro de que já basta. Do PT, no Brasil, ao Podemos, na Espanha, grande parte da esquerda dominante na região e fora dela permaneceu inabalável em seu apoio, explícito ou tácito, ao regime venezuelano.

O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador falou sobre como a Venezuela deveria ser deixada em paz (palavras rapidamente repetidas por sua sucessora Claudia Sheinbaum) e acusou a Organização dos Estados Americanos (OEA) de “parcialidade”.

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A presidente de Honduras, Xiomara Castro, classificou a eleição como um “triunfo inquestionável” de Maduro, enquanto o ex-líder equatoriano Rafael Correa bradou glórias ao povo venezuelano, como se ele não fosse vítima de uma conspiração governamental.

Mais previsivelmente, as ditaduras nicaraguense e cubana rapidamente parabenizaram a vitória “histórica” de Maduro, juntamente com a Rússia, a China e o Irã.

No topo do cinismo ideológico está a Madres de Plaza de Mayo da Argentina, uma organização que liderou a corajosa luta contra as violações dos direitos humanos no país durante a feroz ditadura dos anos 1970, mas que agora promete apoiar Maduro “quantas vezes forem necessárias”.

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Embora os ideólogos cínicos estejam entre nós há muito tempo, essas manifestações públicas merecem atenção porque a Venezuela é uma catástrofe geracional que não será revertida sem uma compreensão completa de sua tragédia e de suas consequências dramáticas.

Seu regime corrupto sobreviveu todos esses anos, em parte devido ao descrédito de opositores e à simpatia de seus aliados ideológicos que, em cumplicidade, desviaram o olhar quando o assunto era importante.

Alguns que apoiavam o chavismo buscavam puro ganho financeiro ou geopolítico, é claro. Outros, aderindo à visão infantil de que o mundo é um jogo em que tudo é justo na luta contra o “imperialismo” dos Estados Unidos, estavam prontos para tolerar os atos políticos mais criminosos, desde o desvio de fundos públicos até o encarceramento de oponentes, tortura e execuções extrajudiciais.

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Mas não condenar as ações de Maduro é um erro de proporções históricas – um impressionante gol contra com consequências duradouras na América Latina.

A defesa de uma Venezuela democrática, estável e próspera deveria ser um fator unificador na região, e não uma fonte de divisão entre linhas ideológicas. Todos deveríamos concordar que desconsiderar o voto popular e falsificar os resultados das eleições é uma linha que absolutamente ninguém pode cruzar sem consequências.

Foi isso que os países da região assinaram quando adotaram a Carta Democrática Interamericana – que, a propósito, deveria ser vinculante. Com que bússola moral os líderes do PT podem denunciar as práticas antidemocráticas de Jair Bolsonaro se agora correm para reconhecer Maduro como o vencedor da votação de domingo?

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Isso também se aplica àqueles direitistas que se apresentam como combatentes da liberdade, mas que depois sucumbem rapidamente ao poder magnético de caras durões com a mesma opinião (olá, Sr. Bukele!).

É por isso que as palavras corajosas e oportunas do presidente chileno Gabriel Boric na noite da eleição foram tão importantes. Ao dizer que os números de Maduro são “difíceis de acreditar” e exigir a divulgação completa e transparente dos resultados detalhados da votação, Boric – de esquerda – expôs imediatamente a principal inconsistência dessa eleição.

Para ser justo, outros representantes mais razoáveis desse espectro político, principalmente a Socialist International, juntaram-se a Boric em seu protesto.

Alguns relataram que a relutância do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e de seu colega colombiano Gustavo Petro em condenar explicitamente os eventos recentes faz parte de uma estratégia para manter alguma influência sobre o regime na esperança de uma mediação. Talvez, mas o histórico deles é de cumplicidade com Caracas, e não de apoio à mudança democrática.

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O lado positivo é que, pelo menos, eles pediram a divulgação dos resultados completos e se abstiveram de qualquer felicitação, como fez a Casa Branca.

Esse deveria ser o grito de guerra de qualquer pessoa interessada em expor a verdade sobre o que aconteceu durante a votação. Durante os dias que se passaram desde então, o regime não apresentou um único recibo de cédula para provar que ganhou a eleição, como afirma. Eles não fizeram isso simplesmente porque não podem: eles não ganharam a eleição.

Pelo contrário, Maduro e seus partidários emulam Cuba ao deter membros da oposição, reprimir protestos e inventar as conspirações mais absurdas para tentar retomar o controle da situação.

As palavras do principal general do exército da Venezuela ao dizer que o país está sofrendo um golpe confirmam a solidez da aliança da liderança militar com Maduro.

Mas a América Latina deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para evitar que a Venezuela se torne outra autocracia, como Cuba ou Nicarágua. Esse resultado apenas aumentará os fluxos migratórios, aumentará as disputas entre as grandes potências da região e levará a mais retrocessos democráticos. Mais importante ainda, condenará milhões de venezuelanos à penúria, à tirania e ao ostracismo nas próximas décadas.

Em um discurso descontrolado no Palácio de Miraflores na terça-feira (30), Maduro prometeu caçar aqueles que derrubaram não uma, mas 10 estátuas de Chávez em todo o país durante os protestos desta semana.

Sem dúvida, ele considera essas ações profundamente ofensivas ao seu movimento. Mas se ele parar para refletir sinceramente sobre o arco da história venezuelana, talvez veja a ironia de como as coisas estão agora.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Juan Pablo Spinetto é colunista da Bloomberg Opinion e cobre negócios, assuntos econômicos e política da América Latina. Foi editor-chefe da Bloomberg News para economia e governo na região.

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