Como CEOs estrangeiros estão mudando o cenário corporativo da França

Empresas como Air France-KLM, Renault, Sanofi e Atos optaram por contratar CEOs nascidos fora da França, contrariando a tradição de manter lideranças nativas

A internacionalização das lideranças coincidiu com a ascensão das empresas francesas, das quais muitas obtinham mais de 70% das suas receitas fora do país (Foto: Cyril Marcilhacy/Bloomberg)
Por Albertina Torsoli
06 de Julho, 2024 | 04:17 PM

Bloomberg — Uma revolução vem acontecendo há algum tempo na França: CEOs nascidos em outros países lideram algumas das empresas mais estratégicas do país, algo impensável há apenas algumas décadas.

Agora que alguns tiveram sucesso em suas carreiras, a tendência deve ser longeva.

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O carro-chefe do país, a Air France-KLM; a Renault, símbolo da indústria no país; a Sanofi, maior empresa farmacêutica da França; e a de tecnologia Atos, que atende a indústrias nucleares e de defesa, são lideradas por executivos que não são franceses.

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Embora não seja incomum no Reino Unido ou nos Estados Unidos, o fenômeno marca uma mudança radical no cenário empresarial francês, no qual os cargos em empresas importantes costumavam não apenas ir somente para executivos franceses, como também para aqueles que frequentaram determinadas escolas de elite – como a École Nationale d’Administration ou a Polytechique.

“O mundo ficou muito mais flexível e global, e as contratações de CEOs refletem isso”, afirma Philippe Waechter, economista-chefe da Ostrum Asset Management. “A geração mais velha não tinha uma cultura tão aberta.”

As contratações também coincidiram com a crescente internacionalização das maiores empresas francesas – muitas delas obtêm mais de 70% das suas receitas fora da França.

Os CEOs estrangeiros ainda representam apenas 18% das lideranças das principais empresas francesas – menos que a média global de 25%, segundo dados da empresa de recrutamento de executivos Heidrick & Struggles. Mesmo assim, isso mostra uma evolução em relação às décadas passadas.

As medidas ocorreram sob o governo do presidente Emmanuel Macron, ex-banqueiro de investimentos eleito pela primeira vez em 2017 e cuja postura pró-negócios o ajudou a conquistar votos dos trabalhadores de colarinho branco.

Macron pressionou pela reindustrialização da França, buscando atrair mais empresas de tecnologia para rivalizar com Londres, Frankfurt e Berlim e também para atrair diversos talentos internacionais.

Gráfico

Um dos pioneiros da tendência é o canadense Ben Smith, de 52 anos, que foi contratado para chefiar a Air France-KLM em um momento crítico para a companhia aérea no final de 2018.

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A parte francesa da companhia aérea franco-holandesa estava em crise por questões trabalhistas e greves. Com foco na herança francesa da companhia aérea, Smith conseguiu transformar com sucesso a empresa – e o grupo chegou a relatar lucro recorde em 2023.

Homem vestindo camisa e terno e óculos na cabeça se prepara para sentar em uma mesa

Ainda assim, sua nacionalidade foi um problema quando ele foi considerado para o cargo, disse a presidente da Air France-KLM, Anne-Marie Couderc, em entrevista.

“Uma das questões levantadas pelo governo era o fato de ele não ser francês”, disse ela. “Mas depois de conhecê-lo, analisarem seu perfil e ouvir o que ele tinha a dizer, o governo e todos os nossos acionistas apoiaram a nossa escolha. É claro que ele também teve que melhorar o seu nível de francês quando chegou.”

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Smith contou com uma relação próxima de trabalho com Couderc, ex-ministra, para ajudá-lo a navegar pelas complexidades do governo francês, que detém uma participação de 28%.

Para os temas trabalhistas, ele recorreu à CEO da Air France, Anne Rigail, que é francesa e diz que passa “entre 30% e 50%” do seu tempo negociando com sindicatos e demais funcionários – muitas vezes ao lado de Smith – para garantir que a estratégia seja compreendida.

O resultado: em 2023, durante as semanas de greve geral em protesto contra as reformas previdenciárias do governo, a Air France não teve suas operações paralisadas.

Uma transformação semelhante está em curso na Renault, cuja participação do governo é de 15%. A montadora, liderada desde julho de 2020 pelo CEO italiano Luca de Meo, de 56 anos, voltou a contratar na França e aposta que poderá fabricar lucrativamente pelo menos alguns veículos elétricos acessíveis no país.

De Meo assumiu o comando da Renault quando a empresa perdia milhões de euros por dia – atualmente, ela está de volta ao azul, pagando dividendos e com valor de mercado superior ao de pares como a Nissan pela primeira vez em anos.

Homem em vestes escuras sorri para a câmera

O executivo, que tem mais de 30 anos no setor automotivo e foi crucial no sucesso da reformulação do Fiat 500, agora investe pesado para promover um produto genuinamente francês – o novo Renault 5 traz a bandeira francesa nas luzes frontais, e o vidro foi fornecido por outra potência francesa, a Cie. de Saint Gobain.

Ele renomeou a equipe de Fórmula 1 da Renault como Alpine para reviver a marca de carros esportivos do grupo e escolheu dois pilotos franceses de F1 para isso.

A Renault acaba de inaugurar uma nova loja conceito chamada rnlt no central Boulevard Haussmann, a poucos passos da movimentada área turística da capital francesa em torno da Ópera Garnier.

Ao lado de de Meo – que nunca dirigiu uma empresa de capital aberto antes de assumir o cargo máximo na Renault – está o presidente Jean-Dominique Senard, um mentor e aliado na difícil tarefa de recuperar uma empresa que foi abalada pelo drama que envolveu a prisão do ex-CEO Carlos Ghosn no Japão.

Quando Ghosn assumiu o comando da Renault em 2005, o fato de não ser francês foi visto como uma desvantagem para o executivo libanês-brasileiro.

No primeiro plano, um rosto de perfil, não é possível ver suas características físicas por conta do foco, que fica no segundo plano, em um homem grisalho, também de perfil e com olhar consternado

“Quando quis que Ghosn fosse meu sucessor, o aconselhei a obter a cidadania francesa”, conta o ex-presidente e CEO da Renault, Louis Schweitzer. “A Renault é uma empresa muito simbólica para a França; achei que isso faria dele um CEO mais forte.”

Práticas de governança mais modernas, com uma divisão das funções de presidente e CEO, tendem a facilitar a contratação de CEOs estrangeiros, assim como o fim do idioma estrangeiro como barreira linguística para um conselho de administração e para os executivos franceses, disse Schweitzer.

Na verdade, não ser francês pode até ter ajudado Smith, da Air France-KLM, e De Meo, da Renault. Ambos os CEOs viram como era difícil a relação com seus pares globais, e o fato de não serem franceses – e, portanto, mais neutros – pode ter facilitado as negociações.

De Meo conseguiu desfazer relações complexas com a japonesa Nissan, enquanto Smith ajudou a melhorar o contato com a transportadora holandesa KLM, que faz parte do grupo franco-holandês, no qual ambos os governos possuem uma participação.

“Ben é sensível a diferentes culturas”, disse Couderc. “Ele tem respeito não só pelas pessoas, mas também pelas diferentes marcas e pelas culturas do grupo.”

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De Meo recebeu a mais alta condecoração da França, a Legion d’Honneur, no ano passado; Smith deve receber a honra em breve.

Liderança globalizada

CEOs estrangeiros – ou com dupla cidadania – estão à frente de várias outras empresas francesas reconhecidas: o alemão Peter Herweck, de 57 anos, dirige a gigante industrial Schneider Electric, e Paul Hudson, de 56 anos, é o CEO da farmacêutica francesa Sanofi.

No setor bancário, o executivo franco-polaco Slawomir Krupa derrotou um rival francês para o cargo principal do Société Générale em 2022. A marca Peugeot da Stellantis (STLA) é gerida por uma executiva britânica, Linda Jackson.

Já a empresa francesa de TI Atos, que este mês obteve financiamento provisório do governo francês para se manter na ativa enquanto enfrenta quase 5 bilhões de euros (US$ 5,3 bilhões) em dívidas, é agora chefiada pelo norte-americano Paul Saleh.

A empresa fornece serviços de TI para os setores nuclear e de defesa e cuida da cibersegurança das Olimpíadas.

Apesar do avanço em diversos setores, alguns, como a indústria do luxo, na qual as empresas costumam ter controle familiar, executivos franceses ainda têm um domínio sobre os cargos do topo.

O setor alimenta o índice de referência CAC-40 do país com algumas das maiores empresas do mundo em valor de mercado, e os seus CEO seguem sendo franceses: o bilionário Bernard Arnault é o presidente e CEO da LVMH Moet Hennessy Louis Vuitton, a maior empresa da Europa em valor de mercado.

Os chefes da Kering, dona da Gucci, e da Hermès International também são franceses.

Mas cada vez mais, à medida que as empresas francesas procuram uma fatia maior dos mercados globais em que operam, velhos tabus nacionalistas começam a desaparecer, disse Couderc da Air France-KLM.

“Muitas empresas podem ser francesas e sediadas na França, mas com negócios globais”, disse ela. “Muitas empresas querem se desenvolver fora das suas fronteiras, o que significa que ser francês não é uma obrigação.”

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