Opinión - Bloomberg

Por que delegar a busca por conhecimento para a IA é um risco à nossa cognição

Muitos defendem que é necessário ‘terceirizar’ a memória para otimizar o cérebro diante da facilidade de buscar informações, mas estudos apontam que isso pode prejudicar a capacidade de aprendizado

Adolescente em seu notebook
Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — A Inteligência Artificial (IA) persuadiu muitas pessoas de que é necessário reformular radicalmente a educação.

Agora que os chatbots podem recuperar informações rapidamente e responder a perguntas complexas, por que se preocupar em memorizar fatos históricos ou citações? Em vez disso, não deveríamos ensinar as crianças a pensar criticamente e a resolver problemas e deixar o trabalho pesado para os computadores?

Há um problema com esses argumentos: os seres humanos precisam de conhecimento para pensar de forma criativa. Terceirizar nossa memória e cognição para o Google e a IA corre o risco de nos tornar mais burros e mais suscetíveis a informações incorretas (inclusive erros cometidos pela IA).

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Não me oponho à modernização.

Acho incrível que tenhamos tantas informações disponíveis graças à internet, e o ChatGPT e outros bots podem atuar como tutores e, se usados criteriosamente, podem reforçar o conhecimento ao responder a todas as nossas perguntas.

Também entendo por que as pessoas podem pensar que isso desvalorizou a capacidade de recitar um soneto de Shakespeare ou a tabela periódica e que o importante agora é saber onde encontrar informações.

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No entanto ser capaz de lembrar fatos é indispensável na era dos mecanismos de busca e dos grandes modelos de linguagem, e não sou o único a acreditar nisso.

Em um ensaio seminal publicado em 2000, dois anos após a fundação do Google, o educador americano E.D. Hirsch derrubou o argumento de que sempre podemos simplesmente pesquisar as coisas.

“Há um consenso na psicologia cognitiva de que é preciso ter conhecimento para adquirir conhecimento”, escreveu ele. “Sim, a internet colocou uma grande quantidade de informações na ponta de nossos dedos. Mas, para podermos usar essas informações [...], já devemos possuir um depósito de conhecimento”.

As ideias de Hirsch inspiraram o governo conservador a reformular o sistema educacional da Inglaterra nos últimos 14 anos para promover um currículo mais “rico em conhecimento”: aos 9 anos de idade, os alunos de matemática agora precisam memorizar a tabuada até 12, por exemplo.

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Não se pode ignorar a possibilidade de que o governo possa estar equivocado em relação ao aprendizado mecânico (embora a melhora relativa da Inglaterra nos rankings internacionais de educação sugira o contrário). E certamente é possível debater quais tipos de fatos as crianças devem memorizar.

Mas o argumento essencial de Hirsch de que o conhecimento geral fornece uma espécie de “ponte mental” e nos torna mais inteligentes (e melhores cidadãos) parece evidente; o conhecimento prévio nos ajuda a absorver mais do que aprendemos e fornece o combustível para o pensamento criativo.

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“A capacidade de ‘simplesmente pesquisar no Google’ é altamente dependente do que uma pessoa tem armazenado em sua memória de longo prazo”, disse o influente ex-ministro das escolas do Reino Unido Nick Gibb em um discurso em 2021.

Isso significa que a alfabetização e o conhecimento numérico continuam sendo vitais, mesmo agora que os computadores possam fazer contas e escrever textos mais rapidamente do que nós.

A sugestão de que deveríamos terceirizar nossa memória para “liberar” espaço limitado para um pensamento mais criativo baseia-se em uma concepção errônea, segundo Nicholas Carr em seu livro “A Geração Superficial: O que a internet está fazendo com os nossos cérebros”.

Graças à sua plasticidade, o centro de memória de longo prazo do cérebro pode se expandir (como os cientistas descobriram quando estudaram motoristas de táxi de Londres).

“Quando começamos a usar a web como substituta da memória pessoal e ignoramos os processos internos de consolidação, corremos o risco de esvaziar nossas mentes de suas riquezas”, escreveu Carr.

Tornar-se dependente da internet ou da IA é uma má ideia porque nossa memória só é capaz de processar alguns itens novos de cada vez, lembra Daisy Christodoulou, autora de “Seven Myths About Education”, em um ensaio recente. Portanto, se encontrarmos muito vocabulário ou informações novas, ficaremos sobrecarregados, o que prejudica nossa capacidade de aprender.

Na verdade, procurar informações no Google muitas vezes faz com que não consigamos nos lembrar delas mais tarde – seja porque nosso cérebro está condicionado a pensar que não precisamos nos lembrar delas, seja porque a internet, os celulares e as redes sociais dispersam nossa atenção, ou ambos.

Também é provável que superestimemos nossa inteligência e acabemos por confundir o conhecimento encontrado na internet com o nosso próprio.

A única maneira eficaz que encontrei para me lembrar de trabalhos acadêmicos e artigos é imprimi-los, marcá-los com um marcador de texto e fazer muitas anotações.

Outra coisa que deve ser levada em conta é que o chamado descarregamento cognitivo reforça a dependência da tecnologia, o que pode explicar por que algumas empresas de IA querem que entreguemos ainda mais informações – uma delas até mesmo pediu que os humanos “adotem o esquecimento”.

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É claro que muitos lamentam os impactos da tecnologia há séculos, enquanto otimistas citam a calculadora de bolso como apenas um exemplo de equipamento que facilitou certas tarefas, mas não inutilizou nossos cérebros.

Mas, como observa um artigo recente publicado na revista Frontiers in Psychology, as calculadoras têm funcionalidade limitada, enquanto os chatbots de IA abrangem uma gama cognitiva muito mais ampla “desde conhecimento geral, solução de problemas e apoio emocional até tarefas criativas”.

Se os alunos passarem a confiar nas máquinas não apenas para recuperar fatos mas para pensar por eles, talvez não seja apenas a memória que sofra: a cognição e a criatividade também podem se atrofiar.

Um aumento constante nas pontuações de QI, conhecido como efeito Flynn, começou a desaparecer em vários países, embora as causas sejam debatidas.

Os governos ainda estão nos estágios iniciais de reflexão sobre o papel da IA na educação. Tenho certeza de que haverá benefícios que aumentarão o aprendizado humano, enquanto alguns dos efeitos negativos que descrevi podem ser atenuados.

Mas não precisamos reinventar a roda: Em uma era de teorias da conspiração e desinformação, é ainda mais vital que nós, humanos, tenhamos uma firme compreensão dos fatos básicos.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Chris Bryant é colunista da Bloomberg Opinion e cobre empresas industriais na Europa. Anteriormente, trabalhou para o Financial Times.

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