Opinión - Bloomberg

Nós vivemos na era da abundância, mas isso não é necessariamente só positivo

Desde meados do século XX, a humanidade está cada vez mais abastecida e rica; essa fartura, porém, acabou exacerbando a individualidade e humanos sem senso do coletivismo

Mulher sentada na rua em protesto. Ela segura um cartaz escrito "There is no Planet B" (Não existe Planeta B, em tradução livre)
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Bloomberg Opinion — As notícias parecem terríveis: guerras, mudança climática, democracia em crise, tiranos surgindo pelo mundo. No entanto eis que surge um estudioso que nos lembra que a humanidade nunca esteve tão abastecida. Desde 1945, estamos nos tornando cada vez mais ricos, mais saudáveis e mais educados.

O produto interno bruto per capita do mundo aumentou 185% entre 1950 e 2000 – e mais ainda desde então. A produção agrícola dos Estados Unidos, que disparou nos anos 1800, aumentou novamente quase cinco vezes no século seguinte. A disponibilidade e a eficiência do combustível aumentaram enormemente, enquanto seu custo real caiu drasticamente.

Novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, prometem sustentar e, de fato, acelerar todas essas tendências produtivas. Apesar do aumento das tensões globais, os gastos militares são muito menores do que no passado – 2,2% do PIB global contra 6,4% em 1961.

O estudioso otimista é Francis J. Gavin, professor de história da Universidade Johns Hopkins e consultor veterano para governos. Em suma, ele não é um charlatão. Seu novo livro – ou talvez um longo ensaio – intitula-se The Taming of Scarcity and The Problems of Plenty (“A Domesticação da Escassez e os Problemas da Abundância”, em tradução livre).

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A primeira metade do livro destaca os fatos de que, durante a maior parte da história, o mundo lutou contra problemas endêmicos causados pela escassez de quase tudo, principalmente de alimentos. Ele cita as fomes que afligiram a maior parte do globo nos séculos XIV e XVI.

Mas os grandes cataclismos econômicos são cada vez mais uma coisa do passado. A abundância gerou uma revolução nas atitudes em relação aos direitos humanos, com a tolerância e o respeito à raça, ao gênero e à religião aceitos como elementos centrais das sociedades civilizadas. Sejam quais forem as imperfeições dos países, a ONU ajudou a consagrar a soberania territorial como norma.

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Racionalmente, segundo o autor, deve-se considerar que as guerras perderam sua utilidade, porque as evidências da história recente mostram que elas raramente, ou nunca, produzem os resultados desejados pelos vencedores. Elas certamente não justificam seu custo. Gavin enfatiza que não propõe o desarmamento do Ocidente, pois é vital que todo Estado possua meios de autodefesa, principalmente quando os agressores continuam desafiando a lógica.

Mas como convencer os agressores de que esse é o caso? É nesse ponto que o ensaio de Gavin perde o otimismo. Racionalmente, Vladimir Putin nunca teria invadido a Ucrânia. Mesmo, com o avanço de seu exército, graças ao bloqueio dos republicanos à cooperação dos EUA à Ucrânia, os interesses da Rússia seriam mais bem atendidos com o cessar-fogo.

No entanto Putin percebe uma grandeza na conquista e na mudança dos limites das fronteiras do antigo e encolhido império soviético, objetivo que nenhuma lógica econômica parece impedir.

Da mesma forma, Gavin reconhece o perigo de a China invadir Taiwan, embora o custo dessa ação para sua própria política deva ser terrível: “Washington deve reconhecer que a discordância sobre Taiwan é a única questão que poderia causar uma guerra de grandes superpotências nucleares, o que seria um desastre absoluto para a China, os EUA e o mundo”.

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A segunda metade do livro de Gavin aborda os enormes problemas e dilemas criados pela abundância, tanto para os países quanto para os indivíduos.

Cidadãos de sociedades ricas são mimados; elevamos o culto ao ego a proporções maníacas: “venerar o individualismo e incentivar identidades criadas por nós mesmos pode enfraquecer os laços de empreendimentos coletivos maiores, deixando as pessoas isoladas, solitárias, vulneráveis e, às vezes, perigosamente alienadas”.

Na era da abundância, fica mais difícil persuadir as pessoas a subordinarem seus desejos e interesses pessoais imediatos ao serviço da comunidade ou do país. Além disso, os responsáveis não têm o poder de oferecer muitos dos resultados que as pessoas desejam: a redução das temperaturas extremas do verão, a prevenção de enchentes, o controle da migração, a identificação de cada vez mais golpes digitais.

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O autor reserva suas advertências mais graves para o fracasso dos governos em geral, e do governo dos EUA em particular, juntamente com a liderança intelectual do Ocidente, em enfrentar a estupenda ameaça da mudança climática.

“A ordem liderada pelos Estados Unidos, que surgiu em resposta à escassez histórica, não é mais adequada para gerenciar as consequências potencialmente catastróficas da era da abundância.” A massa produzida pelo homem agora excede toda a biomassa da Terra. Para cada pessoa no mundo, é produzida industrialmente uma massa igual ao seu peso corporal toda semana.

A ânsia dos republicanos por petróleo e a ganância por cada vez mais riqueza material e posses está totalmente em desacordo com as medidas exigidas pelo aquecimento global. Embora a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA de 2022 tenha identificado a crise climática como o grande desafio da atualidade, a maioria dos países avançados parece incapaz de tentar fazer as reformas e os sacrifícios necessários para enfrentá-la.

“Os Estados Unidos, até o momento, não conseguiram demonstrar a urgência ou a liderança necessária para coordenar a ação internacional sobre os problemas da abundância”, escreve ele. Sejam quais forem as deficiências de Joe Biden nesse aspecto, seu antecessor e possível sucessor, Donald Trump, parece um nacionalista americano do século XX quando se recusa a aceitar a validade das perguntas feitas por Gavin e não oferece respostas a elas.

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Mesmo com Trump fora da equação, Gavin fica maravilhado com a preocupação de nossos cérebros estratégicos com o retorno da competição entre as grandes potências e com as possíveis respostas militares a ela, em vez de focar nas ameaças muito mais graves e de fato apocalípticas representadas pelos oceanos em extinção e pelas terras potencialmente inabitáveis.

Não acredito que Gavin preste atenção suficiente aos perigos representados por atores não estatais e pelos problemáticos – países como a Rússia de Putin que, aparentemente incapazes de competir com sociedades bem-sucedidas e dinâmicas no Ocidente e na Ásia, buscam ser forças destruidoras, sem se importar com a falta de vantagens materiais a serem obtidas.

Os argumentos de Gavin merecem atenção e respeito porque nos forçam a pensar grande sobre o estado das coisas, em vez de nos concentrarmos apenas nas manchetes de hoje e em nossas próprias preocupações privadas triviais. Ao comparar o presente e o futuro plausível da humanidade com seu passado, o autor nos lembra que, ao contrário de muitas percepções populares, há boas notícias ao lado de motivos consideráveis para apreensão e, de fato, medo.

Gavin conclui seu ensaio acendendo uma chama de esperança. Ele acredita que ainda é possível que um país tão vasto, diversificado, descentralizado e repleto de conhecimento científico e tecnológico como os EUA recupere e exerça a liderança de que o mundo precisa para enfrentar os desafios da Era da Abundância – ou melhor, talvez, do Excesso.

Ele cita o sucesso – até o momento – do controle de armas nucleares, juntamente com a erradicação da varíola, como exemplos de como os inimigos de Estado podem trabalhar juntos para realizar coisas notáveis no interesse da humanidade. Seria absurdo ver nessas conquistas motivos para um otimismo exagerado em relação às nossas perspectivas. Mas elas devem manter viva nossa fé no grande mantra da Igreja: nunca se desespere.

The Taming Of Scarcity And The Problems of Plenty, de Francis J. Gavin, foi publicado como um Adelphi Paper pelo International Institute for Strategic Studies.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Max Hastings é colunista da Bloomberg Opinion e seu livro mais recente é “The Abyss: Nuclear Crisis Cuba 1962″.

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