Bloomberg Opinion — Em toda alta sustentada dos preços de commodities, há um momento em que os fundamentos – oferta, demanda, estoques – deixam de ter importância. O custo das moléculas, seja na forma de energia, gêneros alimentícios ou metais, deixa de ser um preço e se torna apenas um número. O mercado passa de ordenado a indisciplinado.
Ficou claro que esse momento chegou para o cacau. Na terça-feira (26), os futuros do cacau em Nova York subiram acima dos até então impensáveis US$ 10.000 por tonelada. Em termos puramente matemáticos, o valor subiu mais de US$ 1.000 em dois dias – igual à faixa de negociação que, no passado, teria levado um ano para ocorrer.
Inicialmente, os problemas do cacau estavam enraizados nos fundamentos, desencadeados em grande parte por uma série de quebras de safra na África Ocidental, a região que normalmente produz cerca de 75% do suprimento mundial. Nessa região, uma combinação de árvores envelhecidas, pragas e mau tempo se combinaram para criar o maior déficit observado no mercado de cacau em mais de seis décadas.
O resultado foi uma alta vertiginosa dos preços, que levou o cacau a US$ 6.000 por tonelada em fevereiro, ante US$ 2.500 há um ano, superando o recorde de 1977.
Diante de um déficit massivo, o mercado estava fazendo seu trabalho, aumentando os preços o suficiente para conter o consumo e restaurar o equilíbrio entre oferta e demanda. Embora em termos nominais os preços do cacau estejam em um nível recorde, em termos reais – ajustados pela inflação – os preços permanecem abaixo dos picos da década de 1970. O recorde de alta estabelecido na época equivale a cerca de US$ 27.000 por tonelada em termos atuais.
Desde então, no entanto, os preços subiram vertiginosamente, estabelecendo novas máximas quase diariamente. É verdade que o déficit de cacau é tão grande – três anos consecutivos de déficit e, possivelmente, um quarto ano chegando – que são necessários preços altíssimos para conter o consumo de forma significativa. Mas as últimas semanas de recordes diários de alta têm mais a ver com fatores financeiros do que com os fundamentos.
Para entender o que está acontecendo, é preciso observar a estrutura do mercado – e quem está em baixa e quem está em alta.
Por que alguns traders ainda mantêm posições vendidas – ou seja, apostas de baixa – nos futuros do cacau, embora todos os fundamentos tenham apontado para preços mais altos por vários meses? O motivo é o hedge.
Os traders de cacau que mantêm uma posição comprada no mercado físico – mantendo estoques de amêndoas de cacau ou produtos semiprocessados, como licor, manteiga e pó de cacau – normalmente compensam essa posição assumindo a posição oposta no mercado financeiro.
O hedge deveria funcionar; em um mercado em alta, como o atual, as perdas nas posições vendidas são cobertas por ganhos no valor das participações físicas. No entanto, enquanto aguardam o vencimento dos contratos financeiros – que podem durar vários meses –, os traders precisam de dinheiro para atender às chamadas de margem sobre essas perdas com derivativos.
Em um mercado normal, as empresas usam reservas de caixa para atender a essas chamadas de margem ou tomam emprestadas pequenas quantias de dinheiro.
Porém, em uma corrida de alta sustentada, como a que atualmente envolve o cacau, as chamadas de margem podem sobrecarregar a capacidade de pagamento de uma empresa com saúde financeira sólida, forçando-a a elevar seus hedges para evitar uma crise de caixa. Nesse cenário, a única opção é fechar as posições vendidas a qualquer preço que o mercado exigir. É por isso que eu disse que, às vezes, os preços não são preços – apenas números. A alternativa é a inadimplência.
Mercados desordenados podem fazer com que as corretoras enfrentem dificuldades e até mesmo entrem em colapso. Foi isso que aconteceu nos mercados europeus de eletricidade e gás natural em 2022, forçando vários governos europeus a oferecer linhas de crédito financiadas pelo contribuinte aos traders para atender às chamadas de margem. Isso também aconteceu no mercado de algodão em 2008 e novamente em 2011, levando ao colapso da histórica corretora Paul Reinhart.
No mercado de cacau, estou ouvindo conversas sobre uma crise de caixa à medida que as chamadas de margem aumentam. Assim como no caso do algodão, o cacau é um mercado dominado por alguns grandes players e várias pequenas corretoras que podem ter dificuldades para garantir crédito em um momento de aperto. Os órgãos reguladores devem prestar muita atenção ao mercado com o objetivo de ajudar qualquer pessoa em dificuldade antes que o problema se torne uma metástase.
Há um segundo problema.
Atualmente, alguns traders de cacau enfrentam um descompasso entre suas posições físicas compradas e suas posições financeiras vendidas. Na linguagem do setor, eles estão com excesso de cobertura porque venderam futuros que valem mais do que possuem em produtos reais. O motivo? A quebra de safra reduziu as entregas, e os traders garantiram menos grãos e produtos semiprocessados do que originalmente contratados.
As fábricas de processamento de cacau na Costa do Marfim e em Gana, por exemplo, pararam de funcionar devido à falta de fornecimento, deixando de entregar os produtos que já haviam vendido. Se entregues, alguns desses grãos e produtos estão sendo despachados mais tarde do que o esperado, de modo que alguns traders têm seus hedges financeiros cobrindo os meses errados. Todas essas incompatibilidades estão forçando os traders a comprar de volta seus hedges em níveis inflacionados.
A magnitude das chamadas de margem e do hedge excessivo está clara no rápido declínio do número agregado de contratos em aberto no mercado futuro de cacau de Nova York e Londres.
O chamado open interest (o número total de contratos de derivativos em circulação para um ativo não liquidado) caiu 35% nos últimos três meses – a maior queda em um período de tempo tão pequeno em pelo menos três décadas –, à medida que os traders recompram suas posições.
Em última análise, trata-se de um problema autossustentável; quanto mais os preços do cacau sobem, maiores são as exigências de margens e a escala do excesso de hedge. E quando alguns traders recompram suas posições, eles aumentam ainda mais os preços, criando o mesmo problema para outros.
Uma vez que os preços se desvinculam dos fundamentos, é quase impossível parar um mercado em alta – até que algo mude. Prepare-se para que o atual aumento do cacau tenha ramificações mais amplas do que inflacionar o custo do seu ovo de Páscoa.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Jabier Blas é colunista da Bloomberg Opinion e cobre energia e commodities. É coautor de “The World for Sale: Money, Power and the Traders Who Barter the Earth’s Resources”.
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