Bloomberg Opinion — “Futebol é algo simples. São 22 homens correndo atrás de uma bola por 90 minutos. No final, os alemães sempre ganham”, observou certa vez o ex-atacante inglês Gary Lineker em um comentário irônico sobre a supremacia alemã no esporte na década de 1990. Uma versão atualizada poderia ser: “o futebol é um jogo muito complicado, e no final os contadores vencem”.
O meia do Chelsea FC, Conor Gallagher, foi o foco de uma ampla especulação da mídia no período que antecedeu o prazo final da janela de transferências da Premier League na quinta-feira (1º), com o surgimento de vários relatos que sugeriam que o clube estava disposto a vendê-lo.
Para o mundo do esporte, teria sido uma transação desconcertante. Gallagher tem se destacado nesta temporada e foi nomeado capitão da equipe pelo técnico Mauricio Pochettino.
Ele também tem apenas 23 anos de idade e já joga pela seleção inglesa. A maior parte de seus melhores anos estão pela frente. É exatamente o tipo de jogador que um grande time como o Chelsea, com aspirações de disputar grandes troféus e se classificar para as competições europeias, poderia esperar.
No caso, a transferência não aconteceu. Mas a disposição do Chelsea de sequer cogitar a venda é um sinal de como as considerações contábeis interferem cada vez mais nas decisões do futebol.
Antigamente, os torcedores podiam acompanhar um time sem prestar muita atenção às suas finanças. Na era dos oligarcas russos, dos estados-nação ricos em petróleo e dos investidores de private equity dos Estados Unidos, entender o que está acontecendo em campo pode exigir um conhecimento de cronogramas de amortização, capitalização de juros, tempo de reconhecimento de receita e outros arcanos contábeis.
As Regras de Rentabilidade e Sustentabilidade da Premier League foram introduzidas há uma década como parte de um esforço europeu mais amplo para limitar o efeito desestabilizador dos proprietários super-ricos e restringem os clubes a perderem no máximo 105 milhões de libras esterlinas (US$ 133 milhões) em três anos.
O resultado foi uma corrida para garantir a conformidade e, ao mesmo tempo, gastar o suficiente para se manter competitivo, o que, por sua vez, elevou a importância das políticas contábeis dos clubes.
No caso do Chelsea, a especulação da venda de Gallagher decorre de uma onda de gastos com transferências no valor de 900 milhões de libras (US$ 1,1 bilhão) após a compra do clube pelos investidores norte-americanos Todd Boehly e Clearlake Capital em 2022.
Isso levantou a questão de como a equipe sediada em Londres poderia permanecer dentro das regras de lucratividade. Parte da resposta foi o fato de o Chelsea ter colocado os jogadores que comprou em contratos excepcionalmente longos.
Os times de futebol normalmente amortizam o valor pago pelos jogadores durante seus contratos: um contrato mais longo significa, portanto, uma taxa de amortização anual mais baixa.
O Chelsea deu contratos de 8,5 anos para suas duas contratações mais caras, Enzo Fernandez (comprado por 106,8 milhões de libras, ou US$ 133,8 milhões) e Mykhailo Mudryk (88,5 milhões de libras, ou US$ 111 milhões).
Posteriormente, a Premier League fechou essa brecha exigindo uma duração máxima de contrato de cinco anos – um sinal de como as regras de gastos do futebol se transformaram em um jogo entre reguladores e contadores astutos.
No entanto, se um clube ainda estiver correndo o risco de estourar os limites de prejuízo, será necessário encontrar outras maneiras de reforçar os resultados.
A venda de jogadores é uma opção óbvia. Mas não se trata apenas de vender os que podem cobrar a maior taxa de transferência: os clubes precisam procurar aqueles que podem gerar os maiores ganhos contábeis.
Jogadores como Gallagher – desenvolvidos pelos times desde a base – têm um custo básico próximo de zero, portanto, qualquer venda se traduz em lucro puro. Isso os torna alvos atraentes para venda – por isso, o Chelsea já se desfez de vários jogadores do tipo.
Há várias outras técnicas que os times podem usar para melhorar suas contas, algumas mais questionáveis do que outras.
Digamos que a equipe A e a equipe B precisem lucrar. A equipe A vende à equipe B por US$ 60 milhões um jogador que comprou por US$ 20 milhões, e a equipe B vende à equipe A por US$ 50 milhões um jogador que comprou por US$ 10 milhões.
Apenas US$ 10 milhões mudam de mãos, e ambos os clubes registram um ganho de US$ 40 milhões. Essa é, em linhas gerais, a forma de transação que fez com que a Juventus da Itália recebesse uma punição de 10 pontos em 2023 em um caso de inflação artificial dos valores dos jogadores.
Os custos da transgressão das normas da Premier League – muitas vezes chamadas de regras de “fair play financeiro” – podem ser igualmente severos.
O Everton FC recebeu uma punição de 10 pontos deduzidos em novembro por violar o limite de prejuízo, colocando a equipe em risco de rebaixamento. Esse é um golpe financeiro potencialmente desastroso para qualquer time que tenha gastado muito em busca do sucesso.
O caso girou em torno de vários pontos contábeis esotéricos, incluindo se o Everton tinha o direito de deduzir os pagamentos de juros sobre empréstimos para construir um novo estádio.
Em princípio, isso deveria ser permitido: os custos de financiamento de um empreendimento são normalmente adicionados ao valor do ativo no balanço patrimonial e, em seguida, depreciados gradualmente ao longo de sua vida útil.
O clube de Liverpool entrou em conflito com as normas porque os empréstimos não estavam explicitamente vinculados ao projeto. Ao ler o julgamento da comissão independente, a impressão que fica é a de que o clube poderia ter escapado com processos contábeis mais inteligentes ou mais meticulosos. O Everton está recorrendo da penalidade.
O Nottingham Forest é outro clube que gasta muito e foi acusado de violar as regras de lucro. Nesse caso, o erro do clube pode ter sido o fato de não ter agido com rapidez suficiente.
O Forest rejeitou duas ofertas pelo jogador Brennan Johnson antes de finalmente concordar em vendê-lo ao Tottenham Hotspur por 47,5 milhões de libras (US$ 59,5 milhões) em setembro – mais do que as ofertas anteriores, mas três meses após o final do ano fiscal e, portanto, tarde demais para ser contabilizado no período analisado.
Talvez as maiores penalidades ainda estejam por vir. O Manchester City, de propriedade de Abu Dhabi, que venceu a Premier League em cinco das últimas seis temporadas, enfrenta 115 acusações de violação das regras financeiras, que está contestando.
E o Chelsea está sendo investigado por pagamentos secretos feitos por empresas pertencentes ao ex-proprietário Roman Abramovich, que foi forçado a vender o clube após a invasão russa na Ucrânia.
A era de bonança no futebol contribuiu para a perda de concorrência no campo. Os órgãos reguladores estão, pelo menos, proporcionando algum drama financeiro para compensar. Para acompanhar os próximos capítulos, mantenha seu livro de contabilidade por perto. A situação pode se complicar.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Matthew Brooker é colunista da Bloomberg Opinion e cobre negócios e infraestrutura. Foi editor da Bloomberg News e do South China Morning Post.
Veja mais em Bloomberg.com
Leia também
Blackstone considera fazer oferta pela L’Occitane, dizem fontes
Como uma aposta do Julius Baer gerou uma perda de US$ 700 mi e derrubou o CEO
© 2024 Bloomberg L.P.