Bloomberg Opinion — Os traders de commodities vivem sob um lema: ‘cumprimos nossa palavra’. A confiança é essencial em um setor no qual um aperto de mão ainda importa. E poucas coisas exigem mais confiança que contas.
A Archer-Daniels-Midland (ADM), uma das maiores tradings agrícolas do mundo, descobriu nesta segunda-feira (22) o quanto é difícil quando alguém não cumpre sua palavra. Suas ações despencaram 24% – a maior queda intradiária em no mínimo 40 anos – depois de colocar o CFO em “licença administrativa com vigência imediata” durante uma investigação em andamento “com relação a determinadas práticas e procedimentos contábeis”. A ADM não divulgou o que poderia estar errado com as contas.
A empresa desempenha um grande papel (mesmo que longe da vista de todos) na economia global. Para quem está no negócio de comprar e vender o pão de cada dia, a ADM é a letra “A” na sigla “ABCD” que denomina os principais players do setor de trading agrícola. Os outros membros são a Bunge, a Cargill e a Louis Dreyfus.
Até o momento, a empresa, que tem sede em Chicago, ofereceu informações limitadas sobre o problema investigado. Mesmo assim, é possível chegar a algumas conclusões provisórias:
Primeiramente, a empresa divulgou que a investigação está focada em sua unidade de nutrição. Nos primeiros nove meses de 2023, o segmento teve lucros operacionais ajustados de US$ 468 milhões – cerca de 10% do total da empresa no período. Em 2022 e 2021, a unidade de nutrição representou 11% e 15% do lucro operacional, respectivamente. Se qualquer questão contábil afeta apenas o negócio de nutrição, a queda das ações parece um tanto excessiva. Mas a investigação está apenas no começo: ela começou após a Securitites and Exchange Commission dos EUA (SEC) – órgão semelhante à CVM – ter solicitado que a ADM entregasse alguns documentos. A ADM afirmou estar cooperando com a SEC.
Em segundo lugar, apesar da investigação, o resto do negócio parece sadio. A ADM reduziu seu lucro ajustado para o ano de 2023 para “acima” de US$ 6,90 por ação – uma pequena queda ante uma previsão anterior de mais de US$ 7 por ação. Se confirmado quando a empresa divulgar seus resultados trimestrais, isso poderia sugerir que qualquer questão contábil é limitada. No domingo (21), a ADM também reiterou o guidance para suas duas maiores unidades: serviços agrícolas e oleaginosas e soluções em carboidratos. Se confirmado, isso poderia sugerir que as principais unidades ainda estão com bom desempenho.
Em terceiro lugar, há algumas ressalvas. A importância do negócio de nutrição vai além dos lucros mais recentes. A ADM gastou muito na última década, inclusive ao fazer sua maior transação: a compra da Wild Flavors por US$ 3 bilhões. A ideia por trás da expansão era melhorar as margens ínfimas da compra, venda e processamento de matérias-primas como milho e soja e de fato produzir os aromatizantes necessários para as empresas de alimentos e bebidas. Essa diversificação foi o que justificou o prêmio pelo qual as ações da ADM foram negociadas em relação a outras ações do mesmo setor – principalmente as da principal concorrente, a Bunge. Sem essa diversidade, as ações terão um preço mais baixo. Em sua teleconferência de apresentação de resultados mais recente, a ADM destacou seu negócio de aromas, em particular, como um “motor de crescimento” que “atuará como um marcador de ritmo para o restante de nosso portfólio”.
Em quarto lugar, nada é tão ruim que não possa piorar. O setor de commodities agrícolas já estava com dificuldades com as margens em queda durante as interrupções causadas pela pandemia e pelo conflito entre Rússia e Ucrânia. Os lucros do trading, que aumentaram vertiginosamente entre 2020 e 2022, devem cair significativamente em 2024 – este ano, a ADM realmente precisa que seu negócio de nutrição traga os benefícios da diversificação, principalmente porque a Bunge se ocupou com a compra da Viterra, negócio de trading de grãos da Glencore. Antes da segunda-feira, as ações da ADM já tinham caído 30% em relação à máxima estabelecida no início de 2022.
Além disso, há um contexto importante. Os investidores estavam fadados a serem impiedosos. Na última década, duas grandes traders de commodities – a Noble Group e a Hing Leong – entraram em colapso devido a irregularidades contábeis. A Noble era listada em Cingapura, enquanto a Hin Leong era de propriedade privada. Outros comerciantes menores também entraram em colapso. Não estou sugerindo que qualquer problema na ADM seja semelhante, mas os acionistas podem estar precificando o pior cenário possível.
A própria ADM tem um histórico de dificuldades que alguns investidores devem se lembrar. Na década de 1990, a empresa estava no centro de uma conspiração de fixação de preços de commodities que posteriormente inspirou o filme O Desinformante!, estrelado por Matt Damon. A ADM se declarou culpada das acusações de fixação de preços em 1996. Desde então, a ADM se esforçou reconstruir a confiança dos investidores. Mas esse é um cenário desconfortável.
Tudo aponta para uma certeza: o tempo está passando. No setor de commodities, a confiança é conquistada ao longo de décadas e perdida em minutos. A ADM precisa oferecer rapidamente mais informações aos acionistas. Um bom começo seria uma teleconferência, em vez de uma breve declaração, na qual a diretoria poderia explicar a extensão da investigação.
Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Jabier Blas é colunista da Bloomberg Opinion e cobre energia e commodities. É coautor de “The World for Sale: Money, Power and the Traders Who Barter the Earth’s Resources”.
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