Opinión - Bloomberg

Por que mega recall da Tesla pode ser prejudicial para os concorrentes

As repetidas e grandiosas promessas de Elon Musk sobre a direção autônoma criaram expectativas irrealistas para o setor

Motorista tira as mãos do volante em um modelo da Tesla que conta com o sistema de assistência de direção
Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — Convocar um recall de praticamente todos os veículos de sua empresa que rodam nos Estados Unidos devido a um problema de segurança de longa data parece ser ruim para sua empresa. A menos que você seja a Tesla (TSLA). Nesse caso, é mais um problema para seus concorrentes.

A Tesla apresentou um relatório de recall à Administração Nacional de Segurança de Tráfego Rodoviário dos EUA para cerca de dois milhões de veículos – o maior de sua história.

O órgão regulador determinou que o sistema de assistência ao motorista da Tesla, apelidado de Autopilot, não faz o suficiente para garantir que os motoristas permaneçam engajados e não façam mau uso do sistema. A Tesla planeja uma atualização de software over-the-air que instalará mais controles e avisos.

As ações chegaram a cair na manhã da quarta-feira (13), mas fecharam em alta no fim do dia. Afinal de contas, trata-se da Tesla. Seu múltiplo de ganhos de 75 vezes tem como premissa implícita a possibilidade de que a empresa venha a obter uma direção totalmente autônoma.

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E essa fé, ligada ao gênio do fundador e CEO Elon Musk, é tão sólida que qualquer retrocesso aparente é racionalizado e deixado de lado. O horizonte é o que importa aqui, não os arredores imediatos.

Obviamente, isso é ótimo para a Tesla. Musk vem divulgando a chegada iminente de veículos que dirigem sozinhos desde pelo menos 2016. Eles continuam visivelmente ausentes; mesmo assim, o valuation da empresa está cerca de US$ 700 bilhões maior.

Mas quem sai perdendo é o projeto mais amplo de direção autônoma.

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Mesmo novas tecnologias atraentes raramente (ou nunca) permeiam a sociedade sem tecnologias subjacentes e próprias e ajustes de comportamento. Isso vale para os veículos elétricos, em que a recarga exige nova infraestrutura e experiência do cliente, e também valeu para os veículos com motor de combustão interna.

Além de permitir passeios mais tranquilos, a direção autônoma é apresentada como uma forma de reduzir acidentes. O que tende a se perder aí é que, mesmo que os dados possam estabelecer que os veículos com Inteligência Artificial matam menos pessoas do que os veículos com “inteligência normal”, a ideia de ser morto ou ferido por um robô é simplesmente mais horrível.

Suponho que somos irracionais nesse sentido; portanto, para chegarmos ao futuro do robô-taxi, será necessário um sério controle e muitos “passos de formiga”.

Mas Musk não anda a passos de formiga.

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Seus próprios engenheiros têm se esforçado ao longo dos anos para transmitir a ele a dificuldade envolvida em chegar à verdadeira autonomia, chamada de Nível 5, em que não é necessária nenhuma intervenção do motorista (o Autopilot está no Nível 2 e exige um envolvimento constante).

Independentemente disso, Musk insiste que os veículos autônomos e os autofinanciados sem volante estão praticamente aqui. Por mais que sua arrogância possa jogar contra, ela também sustenta seus sucessos e, principalmente, o campo de distorção da realidade que fez da Tesla a montadora listada em bolsa mais valiosa do mundo.

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Isso também distorce a realidade na qual as concorrentes operam.

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A unidade Cruise da General Motors (GM) sofreu um revés espetacular em outubro, quando a Califórnia suspendeu sua licença para operar veículos sem motorista no estado.

Os órgãos reguladores do estado acusaram a Cruise de reter as imagens de um acidente no qual um veículo sem motorista atingiu um pedestre, sem culpa própria, mas depois foi para o meio-fio, arrastando a infeliz vítima com ele.

A GM ainda não disse exatamente o que deu errado, mas o cofundador da Cruise, Kyle Vogt, pediu demissão e a empresa enfrenta uma revisão de sua estratégia e cultura de trabalho.

Um culpado óbvio é a expansão agressiva da Cruise, incluindo o uso de São Francisco como seu maior campo de testes; não é a cidade mais fácil para aperfeiçoar a condução autônoma.

Alex Roy, ex-executivo de condução autônoma e agora diretor da consultoria Johnson & Roy, contrasta a corrida da Cruise por escala com o que ele chama de “força silenciosa” do produto de condução autônoma da Waymo em Phoenix – uma cidade menos complicada –, construída de forma incremental ao longo de mais de uma década pela subsidiária da Alphabet (GOOGL).

Roy vê um problema mais amplo, de expectativas irrealistas sobre veículos sem motorista, levando alguns desenvolvedores a se moverem mais rápido do que são capazes.

Ele lamenta a atitude predominante de que a intervenção humana, geralmente realizada por funcionários em centros de operações remotos, é considerada uma espécie de falha dos veículos sem motorista, em vez de um serviço vital para aprimorar o produto e incentivar a adoção por pessoas nervosas.

Com o tempo, o setor precisaria, é claro, que o número de operadores remotos diminuísse, refletindo uma tecnologia melhor e reduzindo os custos. Ainda assim, como ele diz, “todos os produtos, especialmente um produto de tecnologia avançada, têm uma função de atendimento ao cliente”.

A experiência da Cruise mostra os riscos de não atentar ao ritmo do setor. No entanto todos os desenvolvedores de tecnologia de direção autônoma operam em um ambiente moldado, em grande parte, pelas repetidas e grandiosas promessas de Musk, a começar pelo próprio nome “Autopilot”.

A Alphabet talvez não se importe em financiar uma estratégia ponderada de várias décadas, mas a maioria das empresas e todos os capitalistas de risco querem escala e rapidez. O fato de os aparentes contratempos da Tesla não parecerem abalar a fé na visão de seu CEO apenas reforça essa dinâmica corrosiva.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Liam Denning é colunista da Bloomberg Opinion e cobre energia. Foi editor da coluna “Heard on the Street”, do Wall Street Journal, e escreveu para a coluna “Lex”, do Financial Times.

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