Por que a dolarização não deve salvar a Argentina da crise

Candidatos à presidência têm falado até em abandonar o peso, mas o que o país precisa é olhar para as políticas que deram certo em seus vizinhos, incluindo o Brasil

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Bloomberg Opinion — Javier Milei, candidato à presidência da Argentina que tem chamado a atenção no país, tem uma proposta radical para lidar com a inflação descontrolada do país, que chegou a quase 110% em abril: a Argentina deveria abandonar o peso, que está cada vez mais fraco, e substituí-lo pelo dólar.

A proposta pode ser tentadora – a exemplo do Equador, que tornou o dólar moeda corrente em 2000 e alcançou a estabilidade de preços – mas a opção não é viável nem desejável para a segunda maior economia da América do Sul.

Há maneiras muito mais eficazes (e até mais simples) de trazer estabilidade econômica para a Argentina.

A economia argentina de US$ 641 bilhões já está parcialmente dolarizada, mas a substituição do peso pelo dólar exigiria reservas internacionais significativas que o país não tem (e provavelmente não terá). Portanto, seria necessária uma grande desvalorização para compensar a escassez de dólares.

A dolarização também deixaria o país vulnerável a oscilações no valor do dólar em um momento em que sua predominância está sendo questionada.

Além disso, há as restrições políticas. A eleição presidencial da Argentina será em outubro e, ainda que Milei vença, seu grupo provavelmente não terá o controle do Congresso e o apoio político necessário para aprovar uma reforma desse porte.

Uma pesquisa recente também mostrou que a maioria dos argentinos se opõe a ter o dólar como moeda nacional, mesmo que o utilizem em muitas transações cotidianas importantes.

Por fim, há um motivo estratégico. A dolarização fracassará, assim como aconteceu com a conversibilidade da moeda durante a década de 1990, se as autoridades não resolverem o problema subjacente da Argentina: a negligência das políticas.

Diferentemente de seus emergentes, a Argentina vem implementando, nas últimas décadas, um conjunto de ferramentas de políticas pouco ortodoxas que não só não combateram a inflação, como também a pioraram.

O país financiou saldos orçamentários com a impressão de dinheiro, falsificou estatísticas de inflação, concedeu subsídios crescentes ao setor de energia, ordenou controles de preços e forçou as autoridades monetárias a implementar taxas de juros reais negativas.

Além disso, vale lembrar que a Argentina é uma das grandes economias mais fechadas da América Latina, com problemas recorrentes de endividamento e controles rígidos de capital.

Diante desse cenário, seria uma surpresa se a Argentina não tivesse uma das taxas de inflação mais altas do mundo.

Durante o governo do presidente Alberto Fernández, essa preferência por métodos nada ortodoxos se traduziu na ausência de qualquer âncora política para controlar a inflação, algo que ele notoriamente resumiu em uma entrevista em 2020: “Francamente, não acredito em planos econômicos”.

A vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner foi além, dizendo recentemente: “Está claro que o déficit fiscal não é a causa da inflação”.

Isso pode ocasionalmente acontecer em países com boas classificações de crédito. Mas certamente não o caso em um país que já deu calote em sua dívida internacional três vezes o ano 2000.

Sim, a Argentina teve uma terrível falta de sorte, sofrendo duas enormes secas em apenas cinco anos que custaram à economia muitos bilhões em exportações perdidas. Mas, com as mudanças climáticas, esses eventos não podem mais ser considerados tão incomuns. Na verdade, eles tornam a necessidade de estabilidade macroeconômica ainda mais urgente.

E para isso, o que a Argentina precisa fazer é só olhar para seus vizinhos em busca de orientação.

Nas últimas três décadas, a América Latina fez grandes progressos para controlar a inflação, uma de suas principais preocupações econômicas no século 20.

Do Brasil ao Paraguai e ao México, a maioria dos países da região implementou políticas semelhantes, com foco em metas de inflação, prudência fiscal, gestão inteligente da dívida e certo grau de autonomia (se não independência total) para as autoridades dos bancos centrais.

Essas políticas foram adotadas e sustentadas com sucesso por governos de direita e de esquerda.

O valor dessa abordagem fica claro pela facilidade com que esses países passaram pelo duplo choque do pico de inflação pós-pandemia e pelo rápido aumento das taxas de juros pelo Federal Reserve, banco central dos Estados Unidos.

Os bancos centrais latino-americanos reagiram rapidamente, aumentando as taxas antes da maioria dos outros países. Apesar de certo ruído político, a inflação já está retornando lentamente à meta sem a turbulência financeira comum em outros períodos da história.

Não há motivos para a Argentina não fazer o mesmo. Até mesmo o Brasil, que sofreu hiperinflação na mesma época que a Argentina há três décadas, agora tem uma moeda sólida e as taxas de inflação mais baixas entre as maiores economias da região.

Obviamente, o principal obstáculo na Argentina sempre foi político. Quem quer que seja o próximo líder do país precisará não apenas definir a política certa, mas também acumular capital político suficiente para sustentá-la.

Talvez o próximo presidente possa apelar para o espírito competitivo dos argentinos: se o vizinho Brasil pode alcançar uma estabilidade econômica duradoura, o mesmo pode acontecer na Argentina.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Juan Pablo Spinetto é editor-chefe de economia e governo da Bloomberg News na América Latina.

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