Bloomberg Línea — A consolidação de alguns setores é uma das principais consequências do momento atual de redução de capital para startups, segundo a visão de investidores e empreendedores. Um movimento nesse sentido acaba de ser dado pela Alice, uma das maiores healthtechs do Brasil e da América Latina, que concluiu a aquisição da carteira de clientes da concorrente Qsaúde, do empresário José Seripieri Júnior, fundador da Qualicorp.
O valor da transação, que será em dinheiro e não prevê troca de equity, não foi revelado. A compra foi aprovada nesta sexta-feira (12) pela Agência Nacional de Saúde (ANS). O destino da Qsaúde não foi informado.
O negócio levará a Alice a consolidar a liderança na América Latina no mercado de healthtechs, como são conhecidas as startups que atuam em saúde. A empresa fundada em junho de 2020 pelos empreendedores André Florence, Guilherme Azevedo e Matheus Moraes passará da carteira atual de 11 mil clientes para perto de 30 mil, com concentração na região metropolitana de São Paulo; a receita saltará de R$ 100 milhões para mais de R$ 250 milhões ao ano.
“A nossa operação vai ficar muito mais robusta e madura. Vamos incorporar a carteira de clientes em uma estrutura já pronta para esse atendimento. A nossa receita vai mais do que dobrar, e os nossos custos, não. Vai gerar um impacto financeiro positivo”, disse André Florence, CEO da Alice, à Bloomberg Línea.
“O caixa que entra a partir do nosso produto fica mais substancial e continuamos com balanço forte. Isso nos dá fôlego financeiro para continuar a operar sem a necessidade de novos investidores.”
Florence não forneceu uma estimativa para ganhos com sinergias operacionais, mas disse que a incorporação da carteira de clientes da Qsaúde vai reforçar o modelo com base em ciência de dados e value-based health care, de remuneração com base em geração de valor (veja mais abaixo).
Para os mais de 16 mil clientes da Qsaúde, preços, cobertura oferecida, tratamentos e produtos contratados seguem os mesmos, segundo o CEO da Alice. Eles terão acesso ao aplicativo da startup para gerenciar a marcação de consultas e de outros serviços. A migração acontece a partir de 1º de junho.
“Quando analisamos os fornecedores de serviços, percebemos que havia muitos em comum entre Alice e Qsaúde. E alguns só eles tinham. Ao longo da negociação, incorporamos esses providers na estrutura da Alice com o objetivo de não causar mudanças para os clientes da Qsaúde”, afirmou.
A Alice, a exemplo da maioria das startups no Brasil e no mundo, teve que readequar a estratégia em 2022 diante das novas condições de mercado, com redução da liquidez de capital. Passou a perseguir um crescimento menos agressivo, preservando caixa para a operação e para oportunidades em M&A (fusões e aquisições) como o anunciado. Também realizou duas rodadas de demissões no ano passado, totalizando cerca de 175 cortes. Atualmente conta com cerca de 600 colaboradores.
“Ao longo do tempo, por causa dos juros altos e da crise de liquidez, naturalmente temos que fazer ajustes na nossa estrutura, justamente para ter fôlego financeiro para fazer movimentos mais agressivos quando as oportunidades se apresentam”, disse o CEO e cofundador da Alice.
“Em momentos de crise, surgem oportunidades para empresas resilientes. Continuamos de olho no mercado”, disse Florence. Segundo ele, a startup levaria de um ano e meio a dois anos para atingir o novo tamanho da base de clientes com o ritmo atual de crescimento orgânico.
A healthtech já era considerada uma das maiores do setor - e até a maior - na América Latina a depender da métrica antes da aquisição. Recebeu um aporte de US$ 127 milhões (cerca de R$ 730 milhões) em uma rodada Série C no fim de 2021, liderada pelo SoftBank Latin America Fund, acompanhado pelo Kaszek e pelo ThornTree Capital Partners - a maior para uma startup de saúde da região nesse estágio.
Desde a fundação, foram US$ 175 milhões em investimento recebido. Na outra ponta, investiu mais de R$ 300 milhões para a construção de uma plataforma digital e o seu modelo.
Segundo Florence, os modelos de negócios das duas empresas são semelhantes, com foco na chamada atenção primária, que são cuidados aos pacientes que antecedem estágios mais graves que demandem internações, por exemplo, coordenação de cuidados e uso de tecnologia para a integração.
A carteira de clientes da Qsaúde é composta em sua maior parte por planos individuais (71% do total), sendo o restante (29%) por planos coletivos empresariais. É um segmento em que a healthtech ingressou em junho do ano passado e que representa 60% do mercado de planos.
No caso da Alice, o modelo é conhecido como value-based health. Foi desenvolvido com base em estudos do americano Michael Porter, professor da Harvard Business School (HBS), um dos maiores especialistas em gestão do mundo.
O modelo, presente no mercado americano, entre outros países, parte da premissa de que o sistema de saúde - bem como as operadoras de planos no caso brasileiro - deve ser gerenciado com foco em resultados traduzidos pela melhora de indicadores de saúde e bem-estar dos pacientes, e não no número de procedimentos e consultas. Isso leva em tese a um ganho de eficiência do sistema, com alinhamento de incentivos para a prevenção e o foco na atenção primária dos pacientes.
Florence e Moraes trabalharam juntos na 99, um dos primeiros unicórnios brasileiros, à frente das áreas financeira e de operações, respectivamente. Azevedo, por sua vez, foi um dos fundadores do Dr. Consulta, uma das primeiras healthtechs do país, que busca facilitar o acesso a consultas e exames a pacientes que não possuem planos, com preços mais baixos e atendimento agilizado.
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