Como a recuperação judicial da Light pode afetar o setor e futuras concessões

Concessionárias de serviços públicos não podem pedir proteção pelo instrumento previsto em lei e aceitação do requerimento da Light pode abrir precedentes

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Bloomberg Línea — A Light (LIGT3) entrou com pedido de recuperação judicial na manhã desta sexta-feira (12) na 3ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro. Além de representar uma nova batalha com credores financeiros, o evento pode desencadear a desconfiança no mercado sobre futuras concessões.

Embora por lei as concessionárias de serviços públicos não possam pedir recuperação judicial (RJ), a companhia de distribuição de energia que atende 31 municípios no estado do Rio já estudava o uso do mecanismo desde o início de fevereiro, conforme antecipou a Bloomberg Línea. O artifício usado foi fazer o pedido por meio da holding, estendendo os efeitos de proteção para as subsidiárias.

“O espelhamento das dívidas das concessionárias à holding exige que a proteção legal alcance as duas frentes para viabilizar a adequada renegociação das dívidas. Estender os efeitos do stay period (período de suspensão das execuções) às concessionárias, portanto, não é nada além de garantir ao processo que ele alcance seu objetivo”, afirma a companhia em petição inicial protocolada pelos escritórios Salomão Kaiuca e Galdino & Coelho.

No último dia 12 de abril, a Justiça já havia concedido à Light a suspensão, por 30 dias, das obrigações financeiras do grupo no valor total de R$ 11 bilhões, o que poderia ser renovado por mais 30. No entanto, diante do impasse e de duras negociações, especialmente com um grupo de credores, a companhia se viu encurralada.

Na petição, a Light destaca que o pedido de recuperação judicial se restringe às dívidas comuns entre a holding e as concessionárias, embora haja o pleito de extensão da proteção às subsidiárias. Acrescenta ainda que não se trata de um pedido para deixar de cumprir as obrigações da concessão.

Sócio da área de reestruturação e falência do Demarest, Guilherme Bechara explicou que, nesse caso, se as concessionárias não estiverem formalmente em RJ e houver alguma obrigação com fornecedor, por exemplo, a companhia pode realizar o pagamento se tiver caixa.

“É possível conviver com a recuperação judicial [da holding], mas é uma situação única, que cria desconfiança no mercado quanto à sobrevivência da companhia”, afirmou o especialista.

Ele acrescentou que, caso a Justiça conceda o pedido, será uma decisão polêmica, já que os efeitos serão estendidos às subsidiárias. “As concessionárias não estão em RJ nem podem estar, então no final do dia isso significa driblar a lei. É uma espécie de recuperação judicial às avessas”, explicou Bechara.

“Uma lei foi criada para impedir exatamente isso que [a Light] está pedindo com outras palavras. É um jogo de palavras”, acrescentou.

Para o sócio da área de M&A do Costa Tavares Paes Advogados, Antonio Tavares Paes, a recuperação judicial da Light vai além do âmbito jurídico. “Envolve elementos jurídicos e financeiros, como acontece em todas as recuperações judiciais, mas também elementos políticos por se tratar de uma concessão”, avaliou.

O especialista em insolvência e contencioso empresarial do GVM Advogados, Pedro Almeida, afirmou que o pedido de recuperação judicial da Light propõe uma verdadeira “inovação” na ordem jurídica, já que a legislação brasileira veda, expressamente, a recuperação judicial para concessionárias de serviços públicos, assim como o faz para instituições financeiras, seguradoras e operadoras de planos de saúde.

“Para contornar a vedação legal, o grupo Light requereu que a recuperação judicial seja deferida apenas em relação à holding do grupo, com a ‘mera’ extensão dos efeitos da RJ às concessionárias de energia. Para sustentar o pedido inovador, o grupo apresentou parecer de renomados juristas, suscitou a necessidade de se fazer justiça no caso concreto e, até mesmo, apelou para a necessidade de manutenção dos serviços de fornecimento elétrico à população”, avaliou Almeida.

“Caso autorizada, a recuperação judicial criará um perigoso precedente para a relativização das vedações da Lei de Recuperações Judiciais, abrindo espaço para que outras empresas legalmente impedidas possam se valer da medida”, destacou.

Na visão de Bechara, uma decisão favorável da parte da Justiça do Rio à Light pode gerar um impacto no setor de energia como um todo. “Há uma forte crença no mercado, com base na lei, de que as concessionárias não podem entrar em RJ. Uma decisão favorável à Light vai ser vista como uma flexibilização [da lei]. Teremos muito escrutínio sobre esse caso”, analisou.

O coordenador do núcleo cível estratégico do Nelson Wilians Advogados, Eduardo Pellaro, chamou a atenção para os motivos citados pela Light que levaram à atual situação financeira debilitada, em especial o furto de energia e os débitos fiscais.

“Esses problemas não são de fácil ou breve solução, seja por se tratar de questão de segurança pública, seja pelo fato de débitos fiscais não se inserirem no procedimento de recuperação judicial, de modo que é necessária a estruturação de um plano complexo para que o soerguimento da empresa seja viável”, disse.

Acionistas

O próximo capítulo da disputa na Light também deve envolver os principais acionistas da companhia. Ronaldo Cezar Coelho é o maior deles, com 20% da empresa. O bilionário Carlos Alberto Sicupira – acionista de referência da Americanas – detém cerca de 10%.

De acordo com uma fonte familiarizada com o assunto, que falou sob anonimato, após o caso da Americanas cresceu a resistência de credores e de instituições financeiras para negociar com a Light.

Ainda recentemente, Nelson Tanure, investidor conhecido por apostar em empresas com dificuldades financeiras, adquiriu uma fatia de 10% na empresa de energia, após os papéis despencarem com os problemas registrados nos últimos meses.

Segundo apurou a Bloomberg Línea com uma fonte familiarizada com o assunto, que falou sob condição de anonimato porque as discussões são privadas, há pressão dentro da Light e por parte de Tanure para substituir a Laplace, contratada no início de fevereiro para fazer a reestruturação da empresa.

Procurado, Nelson Tanure informou por meio de sua assessoria que “a informação não procede”. A Light não respondeu até o fechamento desta reportagem.

A fonte acrescentou que o estilo de atuação de Coelho e de Tanure é completamente diferente, o que pode gerar um embate entre os acionistas na forma de conduzir a situação. Sicupira, por outro lado, deve se concentrar na recuperação da Americanas, apontou a fonte.

No mercado, aumenta a crença de que os principais acionistas da Light apostam na solução do caso, já que a concessão de distribuição no Rio acaba em 2026. Para fontes ouvidas pela Bloomberg Línea, não faria sentido investir tanto tempo – e recursos – em uma recuperação judicial sem um horizonte de sucesso.

Na noite desta quinta-feira (11), a Light reportou um lucro líquido de R$ 107,1 milhões no primeiro trimestre, revertendo prejuízo de R$ 106 milhões no mesmo intervalo do ano passado.

Já o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda) alcançou R$ 670,9 milhões de janeiro a março, alta de 29% sobre o mesmo período de 2022.

Aneel

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) informou em nota que, no caso da Light, não houve pagamentos suspensos ou postergados, o que inclui contratos da distribuidora com geradoras, transmissoras e o pagamento dos encargos setoriais.

A autarquia acrescentou que também estão preservadas integralmente as obrigações com fornecedores de serviços, equipamentos, mão-de-obra e funcionários.

“A atuação administrativa e judicial da Aneel se dará no sentido de proteger o interesse público, assegurando a prestação adequada do serviço de distribuição de energia elétrica e o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, nos termos do contrato de concessão assinado e vigente até 4 de junho de 2026″, destacou a agência na nota.

A Aneel disse que a distribuidora vem sendo monitorada pela agência “em regime diferenciado de acompanhamento de seus indicadores econômico-financeiros”, por meio de um plano de resultados, em que a Light pactua com a autarquia as ações necessárias para assegurar a sustentabilidade da concessão.

“A Aneel seguirá monitorando as condições econômico-financeiras da distribuidora, inclusive quanto à adimplência com todas as obrigações intrassetoriais, e adotará as medidas necessárias, preventivas e/ou coercitivas, para assegurar a prestação adequada do serviço de distribuição de energia elétrica na área de concessão da Light”, afirmou a agência.

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