Bloomberg — Quando o chef André Magalhães abriu a Taberna da Rua das Flores no centro de Lisboa em 2012, ele precisou usar um fogão portátil para preparar seus tradicionais pratos portugueses.
Em semanas, as filas dobravam a esquina. O restaurante para 24 pessoas rapidamente chegou para simbolizar o “movimento taberneiro” – um esforço de jovens chefs que queriam salvaguardar as clássicas tabernas de Portugal contra o tsunami cultural que está transformando a cidade em um playground para turistas e investidores bem sucedidos.
Na época, Lisboa estava no início de um boom turístico que rapidamente elevou os preços em um dos países mais pobres (ou menos ricos) da Europa.
O problema, sob esse ponto de vista, foi agravado pelo programa Golden Visa do governo, que atraiu quase US$ 7,6 bilhões em investimentos de estrangeiros abastados que puderam obter passaportes da União Europeia (UE) em troca de um investimento de 350 mil euros em imóveis.
O fluxo de dinheiro contribuiu para um aumento nos preços dos imóveis que forçou muitos moradores locais a se mudarem e transformou bairros movimentados em enclaves sem personalidade com imóveis para aluguel de temporada.
Em um ano, os aluguéis em Lisboa saltaram 36%. Os preços dos imóveis residenciais mais do que dobraram desde 2015.
As tabernas – restaurantes familiares que atendem aos bolsos dos cidadãos locais – não conseguiram manter as portas abertas e começaram a fechar e serem substituídos por restaurantes de ramen, restaurantes veganos e hotéis de luxo boutiques que atendem a gostos mais internacionais e orçamentos mais altos.
Mais de 7,7 milhões de turistas visitaram a cidade no ano passado, de acordo com a Secretaria de Turismo de Lisboa – mais de 10 vezes a população do centro da cidade.
O fluxo de turistas e residentes estrangeiros “obviamente ameaça sua identidade cultural quando os cidadãos locais não moram mais lá”, diz Magalhães em uma pequena mesa na frente da Taberna da Rua das Flores quando eu o encontrei para almoçar.
A nova geração de tabernas, representada pela estreita taberna de Magalhães, que costumava ser uma farmácia, representa uma frente culinária portuguesa contra redes internacionais. Elas vão desde a elegante Taberna Moderna, que oferece 80 tipos de gim para acompanhar as refeições, até a Faz Frio, que funciona como taberna há mais de um século.
O que eles compartilham são menus que atualizam pratos tradicionais, como salada de polvo e arroz com pato, através de sutis e significativos ajustes como a substituição de atum por carne bovina em alguns pratos, ou a adição de temperos asiáticos ou africanos. Até agora, a ofensiva culinária está funcionando: as tabernas estão lotadas e ganhando a atenção da mídia gastronômica.
Magalhães começou sua carreira profissional como produtor de cinema e TV e se dedicou à hospitalidade quando assumiu o restaurante do Clube de Imprensa de Lisboa. Esse trabalho ajudou a atrair clientes quando ele abriu a Taberna da Rua das Flores.
Na sua taberna, o cardápio do dia fica escrito em uma lousa à moda antiga, e o serviço do meio-dia é focado em petiscos.
Comecei com mexilhões cozidos a vapor em uma cama de alho, seguido por costelas de porco assadas com migas (um prato feito com sobras) de purê de batata, em vez das tradicionais migas de pão, feitas com banha e pedaços de salsicha.
Magalhães tinha uma pequena tigela de pedaços de moreias crocantes e levemente fritas com maionese de limão – um prato que você não encontraria no cardápio de uma antiga taberna. Mais convencional era o ensopado frio de bacalhau com grão de bico, cebola e ovo – chamado meia desfeita de bacalhau –, um prato icônico que ele mantém no cardápio em homenagem às tabernas tradicionais.
O acompanhamento era arroz com frutos do mar, apresentado com uma grande cabeça de camarão sobre um pedaço grelhado de corvina e que estava cercado de salsa bem verde com a adição incomum de algas marinhas que emergiam do arroz.
O prato mais caro da Taberna da Rua das Flores custa US$ 16, uma pechincha perto dos preços de Londres e Nova York. Ainda assim, em uma cidade onde o salário mínimo é de apenas 760 euros (US$ 829), Magalhães reconhece que os preços de sua taberna não são acessíveis para muitos cidadãos e provavelmente são o dobro dos preços de uma taberna convencional.
“Estamos prosperando e tendo sucesso por causa desse crescimento no turismo”, diz Magalhães enquanto jantamos. “Isso é inegável, mas acredito que é muito importante manter as coisas sob controle e fazer controle de danos” para proteger as tradições locais, diz ele.
O chef leciona gastronomia portuguesa na Universidade Nova de Lisboa e seu interesse pela situação das tabernas foi alimentado por excursões que ele fez com estudantes para documentar as mudanças na paisagem culinária de Lisboa.
Magalhães usou o sucesso da Taberna da Rua das Flores para ajudar os chefs mais jovens a abrir seus espaços. Os cozinheiros estabeleceram uma rede informal que apoia produtores locais e independentes e muitas vezes reúnem encomendas para que um pequeno agricultor possa fazer entregas em Lisboa sem prejuízos, diz ele.
Um dos novos locais que salvou uma taberna existente é a Faz Frio. O local centenário, localizado próximo ao Jardim Botânico da cidade, foi assumido por Jorge Marques em 2018 e apresenta grande parte da decoração original, incluindo imagens de trabalhadores tradicionais portugueses que enfeitam as cabines semi-privativas. É necessário chegar cedo para garantir uma mesa.
As entradas na Faz Frio incluem o pica pau, que se refere aos palitos de dente usados para pegar os petiscos. Tradicionalmente, o pica pau é feito com pequenos pedaços de carne bovina em um molho leve guarnecido com cenouras em conserva.
A releitura de Marques na Faz Frio ostenta um atum levemente tostado em um molho de gergelim e um salpico de vinagre. Seu arroz com pato traz pedaços de chouriço defumado e guanciale, com uma polvilhada de casca de laranja. O camarão salteado ao molho de alho amanteigado está entre os pratos mais convencionais.
O Sal Grosso é, como a Rua das Flores, um espaço estreito com algumas mesas e um cardápio escrito em uma lousa. Era um restaurante popular que fechou durante a pandemia antes de ser ressuscitado pela dupla de chefs Jorge Melgas e Luís Pimenta e está localizada na margem do rio no bairro de Alfama, um dos mais antigos de Lisboa e tradicionalmente um dos mais pobres.
Com seu labirinto de ruas e becos sinuosos, Alfama é hoje um ponto turístico e uma das áreas mais atingidas pela gentrificação. A maioria de seus negócios tradicionais foi dizimada e substituída por lojas de conveniência e restaurantes que atendem aos turistas.
No Sal Grosso, as especialidades da casa são releituras modernas de pratos práticos portugueses, além de ofertas mais originais, como o grelhado de javali com cebolas caramelizadas amanteigadas e a bochecha de porco, braseada no maxilar para mantê-la úmida, servida com migas de tomate.
A taberna também serve migas vegetarianas – pedaços de pão misturados com ervilhas e couve. Para sobremesa, o pudim abade de priscos é uma versão do creme de caramelo criada pelo abade de Priscos no século XIX e engrossada com presunto e banha.
Curiosamente, uma das tabernas mais modernas da cidade é a que mais se aproxima das receitas clássicas portuguesas. O Pica Pau foi inaugurado em outubro pela Plateform, um grupo com quase 150 restaurantes em Portugal, desde a cadeia Zero Pizza até a Alma de Lisboa, que tem duas estrelas Michelin.
Ao contrário de muitas tabernas classicamente projetadas, o interior do Pica Pau é brilhante e moderno, e o pátio contém uma parede de plantas. Ainda assim, seu site proclama que “não é lugar para invenções, criações ou desconstruções”.
O menu traz alguns dos pratos mais clássicos de Portugal, como os pastéis de bacalhau, os rissóis de leitão e, naturalmente, o pica pau de carne. A morcela, uma salsicha defumada, tem uma pele crocante e um recheio rico – ela é notavelmente boa no Pica Pau, principalmente quando lavada com fafide, um vinho tinto da região de Douro.
Observando que várias das novas tabernas de Lisboa ajustaram as receitas tradicionais para atender a gostos estrangeiros, o gerente Gonçalo Aniceto diz que o Pica Pau nunca vai fazer isso. “Você vai muito longe do original. Aqui, não fazemos isso”, diz ele.
- Com a colaboração de João Lima.
Veja mais em Bloomberg.com
Leia também
Por que o Guia Michelin perdeu parte da aura de suas estrelas
Efeito ‘White Lotus’: sua série favorita pode influenciar sua próxima viagem